Nos diversos ramos do Direito existem conceitos que são fundamentais para os que lidam com problemas jurídicos, como advogados, procuradores de entidades públicas e magistrados. No Direito Tributário, estão entre estes o conceito de isenção, o de não incidência e o de imunidade tributária, embora infelizmente nem sempre sejam utilizados corretamente mesmo pelos que se dizem especialistas, razão pela qual resolvemos escrever este pequeno artigo no sentido de prestar modesta colaboração aos que pretendem saber o que realmente significa isenção, não incidência e imunidade tributária e assim evitar equívocos na utilização de tais conceitos.
Não obstante inexistente distinção prática imediata quanto ao resultado, que é o de não ser devido o tributo, não incidência, imunidade e isenção não se confundem. E para certos efeitos a distinção é de suma importância.
Vejamos como se distingue a não incidência da isenção, e qual a importância dessa distinção.
A não incidência configura-se em face da própria norma de tributação, ou norma descritora da hipótese de incidência do tributo. Esta norma descreve a situação de fato que, se e quando realizada, faz nascer o dever jurídico de pagar o tributo. Tudo o que não esteja abrangido por tal descrição constitui hipótese de não incidência tributária. Em outras palavras, tudo que não é hipótese de incidência tributária é, naturalmente, hipótese de não incidência tributária. Objeto, pois, da não incidência são todos os fatos que não estejam abrangidos pela própria definição legal da hipótese de incidência.
O legislador muitas vezes trata como de não incidência casos de isenção e isto tem efetivamente ensejado dúvidas intermináveis. Assim é que alguns agentes do fisco, por absoluta ignorância, só reconhecem situações de não incidência diante de regra jurídica expressa. O equívoco é evidente. Não se há de exigir uma regra indicando casos de não incidência. Basta a existência de regra jurídica definindo a hipótese de incidência, isto é, a hipótese que, se e quando concretizada tornará devido o tributo, e tudo que como tal não esteja definido será, obviamente, hipótese de não incidência.
Existem, todavia, situações em que poderiam ser suscitadas dúvidas a propósito da configuração, ou não, da hipótese de incidência tributária. Nestas situações o legislador, espancando as dúvidas, diz expressamente que o tributo não incide. São hipóteses de não incidência juridicamente qualificada. A lei, nestes casos, exerce função simplesmente didática, preventiva de litígios. A rigor, mesmo sem a norma que afirma a não incidência, ela estaria configurada. É o caso, por exemplo, das operações das quais decorre a transferência de propriedade do estabelecimento industrial, comercial ou de outra espécie, nas quais o imposto não incide porque não existe circulação de mercadorias, mas a lei, para evitar dúvidas, explicita essa não incidência.[1]
Isenção é a exclusão, por lei, de parcela da hipótese de incidência tributária. Objeto da isenção, portanto, é a parcela que a lei retira dos fatos que realizam a hipótese de incidência da regra de tributação.
O ICMS, por exemplo, tem como hipótese de incidência, entre outras, as “operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares.”[2] Um fato que não caiba nessa hipótese, nem nas outras que a lei enuncia, é caso de não incidência do ICMS. Desnecessário que uma lei o indique como tal. Entretanto, se a lei exclui da incidência do imposto uma operação relativa à circulação de mercadorias, fato que estaria, não fora essa lei, incluído na hipótese de incidência tributária, ou se diz que determinada pessoa, ou categoria de pessoas, não será devedora do imposto, tem-se uma isenção, que é, assim, uma exceção à norma de tributação.
Ausente a norma isentiva, a situação de fato nela descrita estaria, automaticamente, abrangida pela norma de tributação.
Há quem afirme que a lei, ao conceder ou prescrever a isenção de um tributo, revoga no todo ou em parte outra lei que estava prescrevendo a tributação de um determinado fato, e por isto quando a lei isentiva é revogada não há uma volta da lei anterior que previa a tributação, pois nosso ordenamento jurídico não acolhe a repristinação. Assim, “para que haja a volta da tributação do fato objeto da lei isentiva é necessário que a lei descreva novamente a norma jurídica tributária ou encampe o conteúdo da que havia sido revogada pela lei que concedeu a isenção.” Tal raciocínio é colocado como premissa para a tese segundo a qual “a lei que restabelece a exigência de um tributo que havia sido objeto de isenção deve, necessariamente, submeter-se ao princípio da anterioridade, pois a Constituição prescreve expressamente que nenhum tributo poderá ser exigido no mesmo exercício em que foi criado ou aumentado (art. 150, III, b, da CF).” [3]
Tal conclusão é doutrinariamente incensurável, não obstante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário. A premissa, porém, não nos parece compatível com a lógica jurídica, além de nos parecer desnecessária para atingir conclusão, que é correta, como a seguir procuraremos demostrar.
A norma isentiva geralmente é editada na mesma data, e reside na mesma lei que alberga a norma definidora da hipótese de incidência tributária. Editadas na mesma data, no mesmo instante, integrando a mesma lei, não se pode dizer que a norma isentiva revoga a norma de tributação. O aparente conflito entre a norma de tributação, aquela que descreve a hipótese de incidência tributária, e a norma de isenção, não se resolve pelo critério cronológico, mas pelo critério da especialidade. A norma que descreve a hipótese de incidência tributária é mais genérica, mais abrangente, relativamente à norma de isenção que descreve uma situação mais específica, que, embora abrangida pela norma de tributação, aponta um dado específico, cuja presença impede a incidência daquela norma genérica.
Uma norma especial não revoga uma geral, nem esta revoga aquela. Convivem, prevalecendo a norma especial, cuja incidência impede a incidência da norma geral. É o princípio da especialidade, útil para a superação dos conflitos aparentes de normas nas várias áreas do Direito.
Revogada a norma de isenção, a norma de tributação passa a incidir sobre o que servia de suporte fático da norma isentiva, e isto significa um aumento do tributo, submetendo-se, por isto mesmo, ao princípio da anterioridade.
A imunidade, por seu turno, é uma limitação constitucional ao poder de tributar. Ou mais exatamente, é um obstáculo criado pela Constituição à incidência da norma jurídica de tributação. Quando a Constituição define o âmbito de um tributo, está limitando o poder de tributar. É desnecessária uma norma na Constituição afirmando que esse tributo não poderá ter como hipótese de incidência algo que esteja fora daquele âmbito. Trata-se de uma exclusão que é naturalmente decorrente da descrição do próprio âmbito constitucional do tributo. Não se trata propriamente de imunidade. Mas a Constituição pode afirmar que o tributo não incidirá sobre determinado fato, ou não será exigido de determinada pessoa, mesmo estando esse fato compreendido no âmbito constitucional do tributo, vale dizer, mesmo estando esse fato compreendido entre aqueles cuja tributação está constitucionalmente autorizada.
No que concerne ao ICMS, exemplo de imunidade é a norma que impede a incidência do imposto sobre as exportações de produtos industrializados. Já a norma, da Lei Complementar nº 87, que diz não incidir o imposto sobre operações e prestações que destinem ao exterior produtos primários, é típica isenção. Mesmo estando, como no caso estão, no mesmo dispositivo de lei, são normas de natureza diversa: uma, apenas repete o que está na Constituição, a dizer que o ICMS não incide na exportação de mercadorias, como tal entendidos, nesse contexto, os produtos industrializados, e a outra a incluir nesse regime jurídico “inclusive produtos primários e produtos industrializados semi-elaborados, ou serviços.”[4]
Distingue-se a isenção da imunidade porque a primeira está em norma infra-constitucional, enquanto a segunda está sempre na Constituição. No exemplo acima mencionado, tem-se que a primeira parte do dispositivo reproduz norma da Constituição ao afirmar a não incidência do ICMS sobre a exportação de mercadorias (desde que se trate de produtos industrializados), enquanto amplia aquela norma, que passa a abranger quaisquer mercadorias, mesmo aquelas qualificadas como produtos primários, ou industrializados semi-elaborados, e até os serviços. Na parte em que faz essa ampliação, deixa configurada uma isenção tributária.
A diferença entre isenção e imunidade decorre da posição hierárquica das normas que as definem. Ainda que a Constituição diga que tal fato é isento do imposto, na verdade não se trata de isenção, mas de imunidade.[5] E mesmo que a lei viesse a definir certa situação como imune ao tributo, ter-se-ia, com certeza, caso de isenção, e não de imunidade.
Podemos dizer, em síntese, que:
a) Isenção é exceção feita pela lei à regra jurídica de tributação.
b) Não incidência é a situação em que a regra jurídica de tributação não incide porque não se configura a sua hipótese de incidência. Pode ser: pura e simples, se resulta da clara inocorrência da hipótese de incidência da regra de tributação; ou juridicamente qualificada, se existe regra jurídica expressa dizendo que não se configura, no caso, a hipótese de incidência tributária.
c) Imunidade é o obstáculo criado por uma norma da Constituição, que impede a incidência de lei ordinária de tributação.
[1] Lei Complementar nº 87/95, art. 3º, inciso VI.
[2] Lei Complementar nº 87/96, art. 2º, inciso I
[3] Clélio Chiesa, ICMS Sistema Constitucional Tributário – Algumas Inconstitucionalidades da LC 87/96, LTR, São Paulo, 1997, p. 177.
[4] Lei Complementar nº 87/96, art. 3º, inciso II.
[5] Aliomar Baleeiro, em palestra feita na PUC de São Paulo, reportando-se à norma do art. 160, § 5º, da Constituição de 1969, que foi reproduzida pelo 184, § 5º, da CF/88, observou, com inteira propriedade (Revista de Direito Tributário, ano 1, nº 1, p. 71):
“O art. 160, § 5º, da Constituição, quando trata da, a meu ver, imunidade do proprietário de terras que é desapropriado para efeitos de reforma agrária, recebendo o pagamento em apólices, em títulos da dívida pública, estabelece uma imunidade. Mas o redator escreveu isenção. Se o texto constitucional excluiu qualquer imposto sobre esse proprietário nessas circunstâncias, é óbvio que aí não se trata de isenção, mas de imunidade; não depende de uma lei de qualquer Estado ou da União, a garantia de esse proprietário ficar protegido contra imposto sobre essas terras. Entretanto, o legislador escreveu isenção.
por Hugo de Brito Machado é Doutor em Direito. Mestre em Direito (Direito e Desenvolvimento). Especialista em Direito Público. Contabilista. Advogado. Ex-Procurador da República. Ex-Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5. Região. Conferencista. Consultor Tributário. Parecerista. Professor Titular de Direito Tributário da UFC.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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