Em 1998 a Emenda Constitucional nº 20/98 implantou a Reforma Previdenciária a pretexto de que a Previdência Social iria quebrar se nenhuma medida legislativa fosse tomada. Passados menos de dezoito anos o mesmo discurso se repete. Na verdade, o problema de aposentadoria precoce que estaria prejudicando o equilíbrio financeiro da autarquia previdenciária decorreu, em grande parte, da própria Emenda nº 20/98 que não respeitou o direito adquirido assegurado a todos em nível de cláusula pétrea. A Reforma deve ser efetivada sempre para o futuro, nunca atingindo o direito fundamental do trabalhador que ingressou no mercado de trabalho dentro de um determinado regime. Mas, aqui temos a tradição de conferir retroatividade às novas disposições constitucionais, com concordância de parcela ponderável dos juristas. Só não concordam com a retroatividade em grau máximo implicando desfazimento de ato jurídico consumado, ou retroatividade em grau médio atingindo ato jurídico perfeito. Mas, a retroatividade em grau mínimo, que aniquila o direito adquirido, tanto a jurisprudência, como a doutrina majoritária passam por cima não lhe dando acolhida, mesmo diante da cristalina redação do inciso XXXVI, do art. 5º da CF. Alguns confundem direito adquirido com expectativa de direito, que se encontra fora da esfera jurídica, principalmente, em questões ligadas à aposentadoria. Já vimos decisões judiciais sustentando que se o ato de aposentadoria não tiver sido publicado no Diário Oficial não há que se falar em direito adquirido. No caso, mais do que direito adquirido trata-se de ato jurídico perfeito. Cinco anos depois era a vez da previdência pública sofrer uma reforma pela Emenda Constitucional nº 41/03 na mesma linha, aliás, até de forma pior, pois passou a tributar os aposentados mediante a introdução da expressão “previdência de caráter contributivo e solidário”, ignorando a natureza jurídica da contribuição social que tem ínsito o benefício específico atrelado à nova contribuição social. A Corte Maior impôs a aplicação do novo regime aos aposentados e pensionistas.
E a anunciada Reforma Previdenciária do atual governo caminha no mesmo sentido. Se sua tramitação demorar vai ocasionar nova avalanche de aposentadorias precoces que irão pesar na balança financeira da autarquia previdenciária passados alguns anos, a exigir nova Reforma. Mas, isso é problema dos futuros governantes.
Enquanto não se examinar em profundidade e com seriedade a causa do constante desequilíbrio financeiro da Previdência, as reformas não passarão de um mero paliativo para curar a dor de barriga do momento. Se nenhum benefício previdenciário pode ser criado, sem a respectiva fonte de custeio (§ 5º, do art. 195 da CF), é muito estranho que a Previdência volta e meia se encontre em situação deficitária. As fontes de custeio, na realidade, são abundantes apesar de dispersas e confusas, como veremos.
A Seguridade Social, onde se encontram inseridas a Previdência
Social, a Saúde e a Assistência Social, é financiada diretamente pelos entes políticos e indiretamente pela sociedade por meio das contribuições sociais previstas no art. 195 da CF:
- do empregador, incidente sobre a folha, receita/faturamento e o lucro;
- do trabalhador e dos demais segurados da previdência social;
- receitas de concurso de prognósticos;
- do importador de bens e serviços do exterior.
É sabido que o produto de arrecadação dessas contribuições sociais supera o total da arrecadação dos seis impostos federais. O grande problema é a partilha do produto de arrecadação dessas contribuições sociais entre os três setores: Previdência Social, Saúde e Assistência Social. Aparentemente tocaria à Previdência a contribuição sobre a folha, consoante previsão da Lei nº 8.212/91, mas ela vem sendo substituída pela contribuição incidente sobre a receita bruta. Outrossim, com a criação da Receita Federal do Brasil, o INSS perdeu a sua competência arrecadatória.
A Constituição criou uma montanha de contribuições sociais para custear a Seguridade Social integrada pelos três setores previstos no art. 194, porém, não estabeleceu nenhuma diretriz para repartição do produto de arrecadação dessas contribuições sociais entre os três setores já referidos.
Para complicar o quadro, a Constituição prescreveu despesas mínimas para o setor de Saúde que integra a Seguridade Social. De fato, o art. 198 da CF instituiu o sistema único de saúde – SUS – a ser custeado por meio de percentuais mínimos das receitas correntes dos entes políticos, na forma do seu parágrafo 2º:
“§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:
I – no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento);
II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000).
- 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:
I – os percentuais de que tratam os incisos II e III do § 2º”.
Entende-se por receita corrente líquida o total da receita pública (tributária, patrimonial e de serviços) excluídas as transferências constitucionais (FPE e FPM).
Conforme se depreende da dicção do § 3º, cabe à Lei Complementar estabelecer os percentuais que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem observar. A Lei Complementar nº 141, de 13-1-2012, pelo artigo 6º, fixou para os Estados e o Distrito Federal o percentual mínimo de 12% sobre as receitas referidas no inciso II, do § 2º, do art. 198 da CF, ao passo que, para os Municípios fixou um percentual mínimo de 15% sobre as receitas referidas no inciso III, do citado parágrafo 2º.
Pela lógica, se o setor de saúde foi contemplado com recursos mínimos provenientes diretamente da receita corrente líquida da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios deveria levar em conta essa particularidade na divisão do bolo da receita de contribuições sociais entre os três setores, ou, deveria o setor previdenciário, que igualmente integra a Seguridade Social, ser também contemplado com recursos mínimos provenientes diretamente da receita corrente líquida das entidades políticas.
Finalmente, para aumentar ainda mais a confusão, a DRU que retira 30% de toda a arrecadação tributária da União, nela incluídas as receitas de contribuições sociais cabentes à Seguridade Social, vem sendo prorrogada periodicamente desde 1996. Originariamente apareceu com o nome de FSE, depois, FEF e agora simplesmente DRU.
Enquanto não se diagnosticar exatamente a causa do déficit da Previdência, e tudo indica que ela reside na não percepção do produto da arrecadação que lhe caberia por determinação constitucional, ainda que por meio de normas obscuras e confusas, qualquer reforma que se faça, diminuindo ou dificultando a percepção dos benefícios previdenciários, de um lado, e aumentando as contribuições sociais de outro lado, não terá efeito por longo tempo. É preciso fazer a Reforma a partir do diagnóstico correto das causas do déficit previdenciário, a fim de sairmos desse círculo vicioso.
por Kiyoshi Harada - Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
Fonte: Harada Advogados
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