Vivemos, no Estado do Rio de Janeiro, uma das piores crises econômicas de nossa história, certamente a mais grave de nossa história recente.
A reação do Governo do Estado tem focado de forma pesada em seus servidores – categoria na qual me incluo –, com o atraso sistemático de salários e aposentadorias e a proposta do aumento bastante significativo da contribuição previdenciária paga pelos mesmos – esta rejeitada, por enquanto, pela Assembleia Legislativa do Estado.
Nesse contexto, era natural que surgisse uma onda de objeções e desinformação sobre os incentivos fiscais concedidos pelo Estado, notadamente as desonerações relacionadas ao ICMS.
A segunda e mais óbvia observação é que, como o próprio nome diz, vivemos no Brasil hoje uma “GUERRA fiscal”. Ou seja, os incentivos fiscais de ICMS – principalmente os sem convênio –, são atos nessa GUERRA. A retirada unilateral dos benefícios sem convênio, que não faça parte de um armistício entre todos os envolvidos, equivale a uma capitulação, sendo que a história nos mostra que aqueles que se rendem em uma guerra normalmente sofrem graves consequências.
É só vermos, por exemplo, o que se passa com a implementação do disposto no Convênio ICMS nº 42/2016, que permitiu os Estados e o Distrito Federal reduzirem seus benefícios fiscais de ICMS em pelo menos 10% ou a exigirem um depósito de pelo menos 10% para a sua fruição.
Não vamos discutir aqui a discutível constitucionalidade da medida. O que importa observarmos é como uma medida para recuperação de arrecadação, através de uma “trégua” na “GUERRA fiscal”, tem o potencial de virar um instrumento da própria “GUERRA fiscal”.
Com efeito, até o momento há estados onde o Convênio ICMS nº 42/2016 já foi introduzido e regulamento, e outros onde tal fato não ocorreu. Não surpreenderá se em breve um ponto para a decisão a respeito da localização de uma empresa vier a ser a existência ou não da obrigação do depósito, ou a redução dos incentivos.
E bastante ingênuo – para usarmos um eufemismo – imaginar que o dia seguinte da anulação de todos os incentivos concedidos sem convênio pelo Estado seria a entrada nos cofres estaduais das cifras infladas e não explicadas que vêm sendo divulgadas na mídia.
Em um primeiro momento, é possível até que a arrecadação melhore um pouco. Entretanto, enquanto os outros Estados não fizessem o mesmo, o cancelamento dos benefícios fluminenses resultaria, isso sim, numa migração em massa do hoje já reduzido setor industrial do Rio de Janeiro.
Portanto, no médio prazo a anulação dos incentivos do Estado muito provavelmente resultaria na transferência de empresas para outros Estados, com aumento do desemprego e inevitável queda na arrecadação.
Assim sendo, por mais paradoxal e ambivalente que seja, é natural que o Governo do Estado defenda os incentivos concedidos sem convênio, já que eles são parte integrante da estratégia dos Estados em um contexto de “GUERRA fiscal”.
Um traço característico da concessão de benefícios fiscais em um ambiente de “GUERRA fiscal”, que em Direito Internacional Tributário recebe o nome de concorrência fiscal prejudicial (harmful tax competition), é que, neste contexto, o principal critério para a concessão de vantagens fiscais não é a capacidade contributiva do beneficiado, nem a geração de empregos, mas sim a mobilidade do capital.
Com efeito, em um cenário concorrencial, capitais e fatores de produção móveis irão para o local onde estiver a mais baixa carga tributária. É tão simples quanto isso. Dessa forma, o assombro com que muitas vezes se reage a incentivos dados a setores que, em teoria, dos mesmos não necessitariam, ignora que os benefícios foram concedidos para atrair alguma arrecadação, a qual, sem eles, provavelmente teria se destinado a outro Estado.
Pode-se argumentar que a concessão de incentivos nessas circunstâncias é injusta. Entretanto, justo ou injusto, é “a vida como ela é”, sendo que apenas a coordenação entre todos os Estados e o Distrito Federal pode viabilizar a supressão de benefícios fiscais que beneficiam setores que não deveriam ser incentivados.
Somos, há muito, críticos do formalismo jurídico no Direito Tributário. O argumento “o incentivo foi dado sem convênio, portanto, é inconstitucional” é certamente um argumento formal, que desconsidera o contexto jurídico-econômico mais amplo e as implicações da concessão e do cancelamento de tais benefícios.
E claro que, levada a questão a respeito da concessão de um incentivo fiscal de ICMS sem convênio ao Supremo Tribunal Federal, a Corte, exercendo sua competência para dirimir conflitos de competência entre entes federativos, não terá alternativa que não seja anular o benefício.
De outra parte, uma decisão de um Tribunal local, ou mesmo do Poder Legislativo Estadual, no mesmo sentido, seria, claramente, inoportuna, na medida que forçaria o Estado a competir com os demais sem ter as mesmas condições. A consequência poderia ser, em um espaço de poucos anos, uma onda de desindustrialização do Estado, com o agravamento da crise.
Não há dúvidas de que, no contexto dos incentivos fiscais concedidos pelo Estado, deve haver aqueles que não atingiram seu fim, ou mesmo benefícios cuja concessão se deu de forma fraudulenta. É claro que uma análise criteriosa deve ser feita e que, havendo irregularidades, o benefício fiscal em questão deve ser cancelado. Entretanto, culpar os incentivos fiscais pela atual situação do Rio de Janeiro não parece representar a realidade. Mais absurdo ainda são cálculos que apresentam cifras bilionárias referentes a valores não recolhidos de ICMS como se fossem uma arrecadação desperdiçada.
Esse número ignora que muitas dessas empresas, não fosse pelos incentivos, jamais teriam se instalado no Estado. Portanto, seria mais correto analisar a arrecadação que não existiria e foi viabilizada pelo benefício fiscal.
Os problemas do mundo moderno são complexos e ambivalentes, típicos da sociedade de risco. São problemas imunes a soluções óbvias. A “GUERRA fiscal” criou uma verdadeira concorrência prejudicial entre os Estados, uma “corrida ao fundo do poço” –race to the botton, como se costuma referir na língua inglesa. Não há dúvidas quanto ao fato de que o controle de tais benefícios é frouxo, quando não inexistente. Também é certo que temos que trabalhar para que tais controles sejam aperfeiçoados. Contudo, a anulação unilateral de incentivos fiscais, não parece ser a solução. Seria uma abordagem unilateral a um problema multilateral. Não é só um remédio amargo. É um composto que pode matar o paciente terminal, com a intenção de salvá-lo.
por Sergio André Rocha - Professor de Direito Financeiro e Tributário da UERJ. Livre-Docente em Direito Tributário pela USP
Fonte: Jota
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