Cabe à União legislar privativamente sobre diretrizes da política nacional de transportes e sobre navegação marítima e o regime dos portos (Constituição Federal, artigo 22, incisos IX e X). Compete-lhe ainda explorar, diretamente ou mediante delegação, os portos marítimos, fluviais e lacustres (CF, artigo 21, inciso XII, alínea f).
Nesse contexto, editou a Lei 10.233/2001, que cria a Agência Nacional dos Transportes Aquaviários (Antaq) e lhe atribui poderes para disciplinar a exploração da infraestrutura portuária (artigo 27, inciso IV). Esse o fundamento legal da Resolução Antaq 2.389/2012, que regula a prestação dos serviços de movimentação e armazenagem de contêineres e volumes em instalações de uso público, nos portos organizados.
No mais, os serviços de movimentação e armazenagem dos contêineres costumam ser contratados pela empresa de navegação, do que lhe surge a faculdade de cobrar de seu cliente (o importador, exportador ou consignatário) preço apartado do frete para fazer frente a tais despesas: a impropriamente denominada Taxa de Movimentação no Terminal ou Terminal Handling Charge (THC — artigos 2º, inciso VII, e 3º).
Embora busque delimitar os serviços incluídos no Box Rate e no THC, indo ao ponto de excluir, na importação, a movimentação das cargas da pilha de desembarque até o portão do terminal (artigo 2º, incisos VI e VII) — o que enseja a cobrança do chamado THC-2 pelo operador portuário contra o importador[2] —, a resolução acaba por afirmar o caráter exemplificativo da lista, ao admitir a inclusão dessas mesmas e de outras atividades nos mencionados pacotes de serviços (artigos 2º, incisos VI e VII, in fine, e 9º).
É nessa mesma lógica de norma supletiva, e não cogente, que deve ser entendido o diverso alcance que a Resolução confere ao Box Rate e ao THC, este se limitando à movimentação dos bens no exterior da embarcação (do portão ao costado, na exportação; do costado à pilha, na importação), e aquele alcançando também movimentação a bordo (do portão ao porão e do porão à pilha, respectivamente). Essa disparidade se explica pela chamada fórmula 80/20, ajustada em 1989 entre o Conselho dos Armadores Nacionais Europeus e Japoneses e o Conselho Europeu de Expedidores: a teor desse acordo, os serviços de movimentação de contêineres prestados pelo operador portuário deveriam ser remunerados (i) até o trespasse da amurada do navio, pelo expedidor (na verdade, são pagos pelo armador e reembolsados a este pelo expedidor, via THC[3]); (ii) a bordo, pelo armador (que embutirá os respectivos custos no frete)[4]. Ocorre que a fórmula 80/20, que a inspirou, foi abandonada em escala global antes da edição da Resolução[5], pairando hoje grande incerteza quanto ao que deve ser incluído no THC[6], tudo a indicar não haver óbice a que as empresas de navegação incluam nele (e não no frete) os custos com a movimentação dos contêineres do e para o porão dos navios.
Uma última questão de natureza regulatória concerne à relação entre os preços pagos pela empresa de navegação ao operador portuário, a título dos serviços de movimentação e armazenagem de cargas, e os valores por ela cobrados de seus clientes sob a forma de THC.
A União Europeia, conquanto aponte uma tendência à paridade entre essas grandezas, conclui que se trata de um juízo muito aproximativo, regido pelas leis do mercado, e não pelos imperativos do Direito. Isso porque, dentre outras razões, (i) existem incertezas quanto às atividades que devem ser incluídas no THC; (ii) os contratos entre armadores e operadores portuários são sigilosos, e os seus preços variam segundo a sua duração e o porte dos envolvidos; (iii) grandes empresas (de navegação ou não) têm-se dedicado à operação portuária em escala global, com economias de escala de difícil mensuração; (iv) os custos têm caído também em virtude da evolução tecnológica nos portos e do aumento da capacidade dos navios[7].
O tema tem sido discutido também no Brasil. As razões trazidas pela Antaq contra a decisão do TCU que impôs a estrita correspondência do THC aos custos do armador bem demonstram, a nosso ver, a inviabilidade prática dessa determinação[8].
Do longo arrazoado, datado de 4 de julho e ainda pendente de exame pelo TCU, merecem destaque as passagens a seguir, que ratificam no âmbito interno as conclusões do relatório da União Europeia.
Sobre a interpretação do artigo 3º da Resolução 2.389/2012, que atribui natureza ressarcitória ao THC, observa a Antaq que se trata de norma sem sanção, de cunho orientativo, que não suprime a liberdade negocial dos agentes econômicos. Longe de atribuir à agência o dever de “milimetrar os ganhos e perdas alocativas” de cada parte, o comando limita-se a autorizá-la a “sancionar, ex post, as empresas de navegação, caso se conclua que a cobrança foi, por seu modo ou montante, abusiva” (fls. 5 e 8).
A conclusão decorre ainda do próprio funcionamento dos setores em tela: de um lado, é normal no transporte marítimo por contêineres que uma mesma operação — por exemplo, a movimentação de um único cofre de carga — atenda a diversos interessados não relacionados entre si, segundo decisões operacionais tomadas em tempo real pelo armador; de outro, a concorrência entre operadores portuários aumenta o poder de barganha dos armadores na contratação dos serviços de movimentação e armazenagem de cargas, cujos preços são ademais influenciados por fatores personalíssimos (escala, risco, critérios de medição, custo de oportunidade etc.). A conjunção desses fatores torna o controle minucioso dos custos do armador atribuíveis a cada um de seus clientes insuportavelmente complexo e caro, se não impossível tout court (fls. 6 e 9-11).
A questão parece-nos singela: se o THC é, ao lado do frete, uma das duas partes integrantes do preço dos serviços de transporte marítimo internacional via contêineres, é natural — embora, por razões comerciais, isso muitas vezes não ocorra — que o prestador possa auferir lucro por meio dela, assim como faz em relação à outra, nada havendo que o obrigue a divulgar os seus custos e margens, uns e outros protegidos pelo sigilo comercial.
Compreendidas todas essas premissas, resulta natural perceber que a legislação brasileira e a praxe internacional convergem para identificar duas relações jurídicas independentes, ambas tendo por objeto a prestação de serviços:
- relação armador ↔ operador portuário, referente aos serviços de movimentação e armazenamento objeto do THC. Tais serviços sujeitam-se ao ISS, por força do item 20.01 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003, sendo contribuinte o operador portuário;
- relação armador ↔ importador ou exportador, referente ao serviço de transporte marítimo internacional de mercadorias. A atividade, se interna, está sujeita ao ICMS, que incidirá sobre o preço total do transporte: frete + THC[9]. Do contrário, não será tributada, pois o ICMS incide unicamente sobre os serviços de transporte interestadual e intermunicipal (CF, artigo 155, inciso II), excluídos os internacionais.
Não há, portanto, prestação de serviços portuários pelo armador aos seus clientes, sendo descabido falar-se em ISS sobre o valor do THC — o que, alerte-se, levaria nada menos do que à duplicação do imposto.
Os municípios não ficarão a ver navios. Mas não podem embarcar de clandestinos no compartimento dos estados.
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Dos mares aos céus, nossa solidariedade à brava Chapecó e a todos os atingidos.
[1] A referência é ao chamado THC2, referido adiante no texto.
[2] A denominação THC-2 — comum no mercado, mas não adotada pela resolução — parece-nos tecnicamente criticável, pois o artigo 3º define o THC como preço cobrado pelo armador para se ressarcir dos custos suportados perante o operador portuário, enquanto a chamada THC-2 é exigida diretamente por este.
[3] Em lugar de expedidor, leia-se destinatário para a situação específica de THC no porto de destino, quanto a mercadorias embarcadas na modalidade FOB.
[4] A sistemática é explicada em detalhe nos itens 22 a 32 do relatório Terminal handling charges during and after the liner conference era, da União Europeia.
(http://ec.europa.eu/competition/sectors/transport/reports/terminal_handling_charges.pdf)
[5] Terminal handling charges during and after the liner conference era, itens 81 e 93.
[6] Terminal handling charges during and after the liner conference era, item 68.
[7] Terminal handling charges during and after the liner conference era, itens 12, 25, 35, 36, 68 e 71.
[8] Acórdão 1.439/2016/TCU-Plenário, Processo TC 004.662/2014-8.
[9] De fato, segundo a Lei Complementar 87/96:
“Art. 13, § 1º. Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo:
(...)
II – o valor correspondente a:
a) seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição.”
por Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Fonte: Conjur
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