Ainda jovem, quando chegou a Paris para estudar direito agrário, o juiz do trabalho Francisco Pedro Jucá imaginou que encontraria acadêmicos encastelados nos prédios da Universidade. Mas, de bota e macacão, o professor ensinou no primeiro dia de aula que não se entende direito rural, nem florestal, com a unha limpa. “Foi um choque de realidade, um tapa no focinho”, conta.
Segundo o magistrado, que atua na 14ª vara trabalhista do Fórum Ruy Barbosa, criou-se no Brasil uma perniciosa cultura de isolamento do juiz. “Temos que sair do gabinete e conhecer o chão da fábrica”, afirma.
Em sua visão, a magistratura padece ainda de outro problema: a subvalorização do juiz de primeiro grau, que seria considerado um “quase juiz”. “Aparentemente, só temos um único juiz de primeiro grau no país, que se chama Sérgio Moro”, provoca.
Pesquisador de Direito Público, o juiz se diz favorável à PEC 241, conhecida como a PEC do Teto. “Foi havendo uma progressiva deterioração de contas ao longo de anos e anos. Só se pode gastar o que se tem no bolso”, diz.
Jucá é juiz do trabalho desde 1987, quando ingressou no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, do Pará e do Amapá, e desde 1999 atua no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo. Aos 62 anos, diz que não se pretende se aposentar tão cedo.
“Se eu estiver inteiro, devo ir até os 75 anos porque não reconheço a mim o direito de monopolizar uma experiência que não adquiri sozinho”, diz.
Leia a entrevista com o juiz Francisco Pedro Jucá:
Rapaz, o problema é o seguinte: nós superespecializamos os magistrados, que perderam a noção do conjunto, se afastaram da realidade. A crítica tem procedência, mas eu não crucifico ninguém. Não diria que é uma leviandade ou falta de cuidado da Justiça do Trabalho, não chego a esse ponto.
O senhor está dizendo que os juízes estão descolados da realidade?
Por causa da superespecialização, eles se descolam um pouco da economia, do mundo real. O juiz tem que sair do gabinete e conhecer o chão da fábrica. Quando eu estudava direito agrário, tive a oportunidade de estudar em Paris. Desembarquei com a ideia de que iria encontrar um professor de borla [enfeite na beca] e capelo [chapéu de reitores e doutores honoris causa], com um livro grosso na mão. Ele nos esperou mandando vestir macacão, bota e levou para o campo experimental. A primeira lição na primeira aula, no primeiro dia, foi a seguinte: “não se entende direito rural, nem florestal, com a unha limpa”. Foi um choque de realidade que eu guardo para o resto da vida. Um tapa desse no focinho aos vinte e pouco anos é uma lição extraordinária. Agora tem um outro lado. Nós criamos uma cultura de isolamento do juiz. Tenho que me trancar aqui, chegar às nove e sair as oito e não vejo o mundo. Quando eu vejo o mundo, isso é entendido como ócio, descaso e vagabundagem. Não é. O juiz julga e aplica a lei à realidade. Qual o pressuposto que ele precisa além da lei? A realidade! A magistratura precisa ter experiência de vida.
As faculdades parecem não se preocupar com este tipo de experiência.
Agora você meteu o dedão na ferida. Tem que botar esse assunto na mesa e resolver. Nós estamos vivendo uma cultura apostilosa. Virei professor em 1981, há 35 anos. Tenho visto uma deterioração triste do ensino. Nas poucas vezes em que dou aula de Direito do Trabalho tenho uma leitura obrigatória: “Os Trabalhadores” e “Mundos do Trabalho”. E esse incompetente do Eric Hobsbawm não fala uma linha sobre a CLT. Meu amigo você não vai entender a CLT nem a pau se não entender a formação do mundo do trabalho industrial. Não perca o seu tempo. Essa formação humanística faz uma falta dramática para o juiz, para o advogado, para o promotor e para o ser humano. Você não pode compreender Direito sem compreender história, sem ter noções de sociologia, sem ter noção das categorias básicas da ciência política. É preciso formar profissionais com uma visão sistêmica do Direito. Toda vez que eu isolo uma norma, a chance de eu errar é 250%.
O juiz deve se preocupar com o impacto social e econômico das decisões?
Acho que sim. E tem uma discussão legal e constitucional expressa neste sentido: o interesse individual não prevalece sobre o geral. E o contrário, lamentavelmente, acontece demais na Justiça do Trabalho. Para justificar a tua hora extra que está aqui me aturando, eu executo o site até quebrar. Seu problema está resolvido, mas seus outros colegas vão ficar na rua da amargura. Sob o aspecto formal, fiz justiça – lavo as mãos pelo sangue dos inocentes. Mas eu não soube fazer a adequação, a ponderação.
E é papel do juiz de primeiro grau fazer esta ponderação?
Sim! Precisamos parar com isso. Temos um problema grave no Brasil. O juiz de primeiro grau é o juiz de piso, de ingresso, é o quase juiz, o sub-juiz. O que está acontecendo aí nessa sala de audiências não me interessa, afinal vou discutir tudo isso aí no recurso. Isto é muito ruim para o país. Aparentemente, só temos um único juiz de primeiro grau no Brasil e o nome dele é Sérgio Moro.
Que tipo de impacto este tipo de decisão da Justiça do Trabalho provoca?
Não vou ser weberiano a ponto de dizer que a ética da consequência precisa ser levada em conta em tudo. Mas é preciso medir as consequências. Por exemplo, a penhora e retenção dos Boeings da VASP em pista foi um problema dramático. Esses aviões se perderam. O avião foi feito para voar. Retendo ele em pista, deterioro tudo e facilito a obsolescência do equipamento eletrônico. Se esses aviões fossem recuperados não poderiam voar hoje porque o equipamento está defasado. Nessa brincadeira se perderam alguns não tão poucos milhões de reais. Se tivéssemos mantido os aviões voando e operando com hipoteca judicial, teria a chance de vendê-los com vida útil para algum outro país. Não seria o preço justo e de mercado, mas como não seria sucata, resolveria uma parcela considerável dos problemas da VASP. Sob o aspecto formal tenho o poder de parar o avião, o navio, o carro. Mas tenho que fazer uma segunda pergunta: essa atitude resolve ou agrava o problema?
A Justiça do Trabalho é pró-trabalhador?
Não. O que acontece e que cria esta imagem, na minha visão, distorcida é que nós temos um hábito cultural de cumprir a lei como nos parece melhor e é mais conveniente. Naturalmente se eu descumpro a lei com muita frequência, com muita frequência eu sou trazido à Justiça. Se eu não ajo em conformidade com a lei, com frequência eu, juiz, sou obrigado a agir. Isso não significa que o juiz seja a favor de A ou de B.
Os empresários reclamam que são muito condenados.
Será que eles são muito condenados ou será que cumprem pouco a legislação? Ou eles precificam o conflito? Isso é uma outra questão que precisa ser enfrentada e que a Justiça do Trabalho não está enfrentando. É a precificação de conflito. É o raciocínio de qual é o custo do conflito. Vou te dar um exemplo grosseiro. Eu não vou pagar hora-extra para o pessoal que trabalha no site do JOTA. Por que eu tenho vinte pessoas, quem encher o saco eu mando embora, se o cara for para Justiça eu vou pagar hora-extra só para ele e, ainda assim, tenho uma chance de ganhar ou de fazer um acordo e pagar menos do que eu devo. Se o site explodir – e isso é o que eu desejo – e tiver 2 mil colaboradores, desses 2000, devo brigar com uns 500 e perder 250. Destes 250, com uns 100 eu faço acordo. Quer saber de uma coisa? Quanto me custa os 150 casos em que eu vou perder? O empresário, então, coloca isso na estrutura de custos e manda a lei para o quinto dos infernos. Isso acontece com uma frequência muito maior do que se imagina. No momento em que eu precifico, com competência técnica, e absorvo esse custo, eu praticamente me descomprometo a cumprir a legislação.
O que fazer num caso como este?
O juiz não age de ofício. O Ministério Público do Trabalho e o Poder Executivo, que é detentor do poder de polícia, de fiscalização, de controle, deveriam ter uma atuação maior. Se houvesse uma fiscalização maior, menos passional e mais intensa não resolveria o problema. Isso é utopia. Mas diminuiria dramaticamente. Ao mesmo tempo em que recorro a isso, preciso prestigiar essas decisões. No momento em que ponho em dúvida a decisão do auditor, o pedido do Ministério Público do Trabalho, a reclamação do sindicato, eu desprestigio o sistema e acabo atraindo tudo para mim. Um volume que não sou capaz de processar.
De onde vem essa visão do empresariado de que a Justiça é pró-trabalhador?
Não se pode atribuir tudo, exclusivamente tudo, mas uma parte substancial de nossos problemas está numa herança escravagista mal resolvida que desaguou na desvalorização do trabalho. O homem médio faz uma reforma na sua casa, diz que o material não foi caro, parcelou o pagamento, mas que a mão-de-obra foi um roubo. Gastou R$ 4 mil no material e R$ 1,5 mil na mão-de-obra. O que extraio daí? O material tem valor, o trabalho não. Os sábios das finanças públicas hoje atribuem a inviabilidade do Brasil ao custo previdenciário e ao custo da folha de funcionalismo. São dois custos altos e que precisam ser racionalizados e, portanto, tem que ter teto. Mas eu esqueço que a dívida pública consome 40% do orçamento. Isso não é despesa? O que eu pago de aluguel é custo, cerveja não é custo.
Por que o senhor é a favor da PEC 241?
Não tem outra alternativa. Para não dizer que sou populista, a proposta de emenda do teto tecnicamente é desnecessária porque a Constituição determina como princípio das finanças públicas o equilíbrio orçamentário. Mas, como no Brasil um princípio enunciado precisa estar com todas as letras grandes, escritas em vermelho, e ainda assim a gente tem dificuldades… É preciso entender que a emenda do teto não vai cortar verba nenhuma. Só vai dizer: eu não gasto o que não tenho. A expansão de despesa sem arrecadação significa aumento de dívida, que significa aumento de serviço da dívida, que significa sangria maior no orçamento. É muito menos nocivo à sociedade que eu concentre recursos para alguma coisa do que disperse com despesas estéreis como é o caso de juros. A emenda pode ser sintetizada com uma única frase: só vou gastar o que tiver no bolso.
As associações de classe provavelmente não vão gostar desse posicionamento do senhor…
O local da disputa política pela repartição das verbas é o orçamento. E aí a sociedade vai ter que tirar as suas máscaras e sair do seu conforto. Porque eu vou ter que discutir a divisão das verbas no orçamento como todos os países do mundo fazem. Isso vai obrigar os governos, este e qualquer um, a elencar prioridades claras e destinar recursos para elas, abrindo mão de outras coisas. Essa história de que está tentando barrar a Lava Jato não faz sentido. Processo tem vida própria. Não existe isso. É lenda. E também não acho que viole a separação de poderes porque não está tendo negativa de orçamento. Estou propondo dividir entre nós três o que tenho no bolso. Se tenho muito, divido muito. Se tenho pouco, divido pouco. Como qualquer um de nós faz em casa.
No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, em que o governador chegou a propor aumentar a contribuição previdenciária…
Sob o aspecto formal é uma barbaridade porque a Constituição veda, de maneira expressa, tributação confiscatória. Se eu tomar metade do que te devo, eu tomei de você, tirei da sua mão. Se a deterioração das contas do RJ fosse gravíssima, a gente dava uma festa aqui agora. Ela é trágica. O caixa acabou, não tem caixa. O Estado está vivendo de receita corrente. Essa deterioração começou nos últimos 10 anos. Houve um acréscimo nisso ao se considerar como receita uma potencialidade de receita de royalties de petróleo que não veio. E olha que não estou falando em corrupção, roubo. Se isso fosse o único problema, estaria resolvido lá em Curitiba e viraríamos uma Suíça hoje à tarde. O problema é que se você zerar toda a corrupção no Brasil hoje, não vai mudar muita coisa. Os números são grandes e nos assustam, mas em termos proporcionais estão longe de ser o grande problema. A gestão incompetente na Petrobras foi muito mais arrasadora do que o desvio. Simples assim.
E quanto à reforma trabalhista? Qual a sua visão?
Que tem que reformar, tem que reformar. Precisa atualizar. O mundo mudou. Se você for o tarado do computador, você senta aqui nessa mesa e fecha a Folha de S. Paulo sozinho. Eu tenho que me ajustar aos novos tempos. Meu pai era da Força Aérea Brasileira. Você sabia que tinha um cara no avião que ficava com um compasso e transferidor fazendo cálculos manualmente? Era o engenheiro de voo. Esse profissional deixou de existir porque não há mais necessidade. O plano de voo é feito em terra. Quando o cara aciona o motor para decolar, já está previsto, com alternativas e tudo, o que vai acontecer até o próximo pouso. Se não acontecer um míssil, uma tempestade inesperada, uma coluna de gelo no ar, ele não vai precisar nem mexer. A atualização que eu digo da legislação trabalhista é essa. Não digo reformas, mas atualização. Também está na hora de começar a enfrentar outra situação. Eu dispenso igual tratamento ao boteco do Seu Zé e à multinacional como empregadores. Pode até funcionar, mas não é justo nem razoável. A capacidade de um é completamente diferente da do outro. O custo administrativo que o Bradesco pode suportar não é o mesmo que o mercadinho da Zona Leste consegue aguentar. Eu preciso relativizar isso sob pena de estar sendo injusto com os dois – privilegiando um que não precisa e crucificando outro que está com a faca no peito. Essa discussão precisa ser enfrentada.
Fonte: Jota
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