Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Direito GV. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
Todos concordamos que o sistema tributário brasileiro necessita de reformas. Nenhuma voz se levanta para defender o status quo. Até aqui, somos de opinião unânime. Uma grande maioria de especialistas também concordaria que as principais distorções da atual estrutura tributária residem nos impostos sobre bens e serviços, categoria que abrange ICMS, PIS, Cofins, ISS e CIDE. Existem muitos estudos demonstrando a disfuncionalidade desses impostos e o quanto travam a atividade econômica e com ela a prosperidade de todos.
Copiosas propostas têm sido feitas para a reforma desses tributos, sobretudo o ICMS: algumas de iniciativa do governo federal, outras de membros do Senado e Câmara, entidades corporativas, centros de estudos e especialistas em tributação. Algumas dessas propostas são amplas, envolvendo uma reformulação sistêmica; outras, mais limitadas, inclusive a “reforma fatiada” do início do governo Dilma Rousseff.
Todas as tentativas de reformar substancialmente a estrutura tributária fracassaram.[1] A razão dessa dificuldade está no que se chamou de “nó fiscal” atado na Constituição de 1988: a rigidez do gasto público combinada com conflitos federativos, desequilibrio do sistema previdenciário, baixa qualidade da tributação e ineficiência da gestão de governo.[2] O resultado é imobilismo, já que qualquer mudança, grande ou pequena, redundaria em potenciais perdas—reais ou imaginárias—para algum poder tributante (arrecadação) ou grupo de interesse (privilégios fiscais), o que rapidamente deflagra coligações anti-reformas.
Por onde começar a tarefa hercúlea de reformar o sistema tributário? Aumentando a transparência tributária. Como bem colocou Louis Brandeis, juiz da corte suprema americana, em 1914, "a luz do sol é o melhor desinfetante". O sistema tributário brasileiro padece de enorme complexidade, a qual resulta da falta de uma visão sistêmica de longo prazo, da falta de técnica jurídica, de casuismos, e de incompetência e descaso na feitura das leis e regulamentos tributários. Resulta, também, às vezes, da deliberada intenção de enganar o contribuinte.
No último caso se enquadra o cálculo do ICMS. Sua alíquota normal é de 18%, mas numa venda de R$ 100 (antes de calculado o imposto) o imposto que incide não é de R$ 18, como a simples lógica e secular prática nos diria [3], mas R$ 21,95. Ou seja, a alíquota nominal é 18% mas a alíquota efetivamente praticada é 21,95%! Essa anomalia, chamada de cálculo “por dentro”, consiste em incluir o imposto na sua própria base de cálculo.[4]
Na aplicação do ICMS aos serviços de comunicação e eletricidade, o cálculo “por dentro” transforma a já exagerada alíquota de 25% adotado por vários Estados em nada menos que 33,33%. E há Estados que adotam alíquota de 30% para comunicações e eletricidade, com o que na verdade aplicam tributação de 42,86%!
Na esteira do ICMS, a União, ao aplicar as contribuições PIS e Cofins sobre o consumo de eletricidade adotou também o cálculo “por dentro”. Então essas contribuições englobam, na sua base de cálculo, não apenas o valor dos serviços prestados mas também os encargos do ICMS e das próprias contribuições... cada um dos tributos recaindo sobre si mesmo e os demais, numa escalada de incidências.
Não existe nenhum razão técnica ou de política pública que recomende o cálculo de impostos “por dentro”. Tampouco esse tipo de cálculo é encontrado em qualquer dos mais de 150 países que têm imposto geral sobre vendas do tipo valor adicionado (IVAs), gênero do qual ICMS, IPI, PIS e Cofins são espécies.[5]
A única explicação plausível é que sua adoção no Brasil foi feita para criar a percepção entre os contribuintes de que alíquota não é tão elevada. Isso é o que se chama, na economia política da tributação, de ilusão fiscal ou ofuscação fiscal, o oposto de saliência fiscal ou tributária.[6] O uso da tributação “por dentro” é feita para gerar opacidade onde deveria haver transparência; numa palavra, para iludir, enganar o contribuinte. No caso brasileiro, essa disposição de iludir foi tão forte a ponto de o engano ser erigido ao patamar de preceito constitucional (Constituição de 1988 art. 155 § 2º, XII, i, ex vi da Emenda 33 de 2001).
Deveríamos começar a reforma do ICMS pela eliminação do cálculo do imposto “por dentro”. Essa medida traria alguma simplificação, mas sobretudo traria mais visibilidade, sobretudo agora que a legislação (ainda aguardando vigência) impõe o dever de informar aos consumidores o valor dos impostos incluídos no preço. Com a mudança de método, a alíquota teria que ser majorada, para que, atuando sobre uma base menor (mas real), não houvesse impacto sobre a arrecadação.
Não haveria, portanto, que temer perda de receitas para os Estados e Municípios. Tampouco seriam necessários outros ajustes do cipoal legislativo tributário. Mas, importantemente, esse pequeno passo seria um gesto de honestidade do poder público, um avanço no respeito ao cidadão-contribuinte.
[1]Uma excelente análise dos esforços para reformar o ICMS é dada por Ana Paula Vescovi, Paulo Hartung e Ricardo Ferraço, Lições da Reforma do ICMS, apresentada na Casa das Garças (think tank do IEPE- Instituto de Estudos sobre Política Econômica) em 24 junho 2013. Disponível em http://goo.gl/8dgWQi.
[2] Fernando Rezende, Fabrício Oliveira e Erika Araujo, O Dilema Fiscal: Remendar ou Reformar?, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
[3] No caso do imposto de renda sujeito à retenção pelas fontes pagadoras de rendimentos, a base de cálculo é reajustada (grossing up) quando a fonte assume o ônus do imposto deixando de retê-lo (RIR art. 725). Mas isso é feito exatamente para preservar a identidade de alíquotas nominal e efetiva. Portanto não serve de precedente ou justificativa para o cálculo do ICMS “por dentro”.
[4] Obtém-se a alíquota efetiva (t’) percentual a partir da alíquota nominal ou legal (t) aplicando a fórmula t’=t*100/(100-t).
[5] A notável exceção é a Bolívia, que seguiu o mau exemplo brasileiro.
[6] O estudo da ilusão fiscal deve muito ao trabalho pioneiro de Amilcare Puviani, Teoria della illusione finanziaria, 1903. Estudos recentes sobre o assunto incluem Jacob Goldin, “Sales Tax Not Included: Designing Commodity Taxes for Inattentive Consumers”, The Yale Tax Review , v. 122, pp. 258-301, 2012; e Tino Sanandaji & Björn Wallace, “Fiscal Illusion and Fiscal Obsfuscation: Tax Perception in Sweden”, The Independent Review, v. 16, n. 2, pp. 237-246, Fall 2011.
por Isaias Coelho é coordenador de Pesquisa do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Fundação Getulio Vargas; professor de Cursos de Pós Graduação (GVlaw) da Direito GV; consultor do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); mestre em Economia pela Universidade Federal da Bahia e doutor em Economia (Comércio Internacional e Finanças Públicas) pela University of Rochester (EUA). Trabalhou no FMI e foi Secretário Adjunto da Receita Federal na Administração Dornelles.
Fonte: Conjur
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