A publicação da Lei nº 13.606, de 9 de janeiro de 2018, despertou em parcela da advocacia privada tributária e do empresariado um curioso sentimento: a necessidade incontrolável de defesa do "direito fundamental" a que fraudes possam ser praticadas, somente sendo possível seu desfazimento a posteriori e exclusivamente pelo Poder Judiciário. Ou talvez, em sentido mais amplo, do "direito fundamental" ao calote fiscal, cujos supostos titulares desejam apenas poder continuar confortavelmente lamentando os supostos sacrifícios do mercado para manter o lucro (sem, é claro, a necessidade de, nas suas atividades, precisar do Judiciário ou ter a deferência de garantir o devido contraditório) e se gabando da suposta ineficiência do Estado, justamente para defender medidas legislativas que lhes favoreçam.
Estamos, sim, a nos referir à inserção do art. 20-B na Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, cujo pecado capital supostamente consistiria no trecho "tornando-os indisponíveis", constante do final do inciso II do § 3º.
De início, cumpre esclarecer que, diferentemente do que alguns chegaram a afirmar, o Projeto de Lei Nº 9.206/2017 já previa, desde a sua versão inicial, o referido art. 20-B.
A indisponibilidade de bens não está sujeita à reserva de jurisdição e não afronta o direito de propriedade, que não é absoluto
Mas no quê exatamente consiste, afinal, a referida disposição? Nisto: uma averbação pré-executória, precedida de contraditório e ampla defesa, que, para além de viabilizar o ajuizamento seletivo de que trata o também novel art. 20-C da Lei nº 10.522, de 2002 (cujas virtudes, embora notórias, são bem resumidas pelo forte alinhamento ao interesse público pela desjudicialização), evita a consumação de um ato ao qual a legislação fiscal atribui presunção absoluta de fraude à execução e consequente ineficácia.
Ora, o Código de Processo Civil (CPC) há anos permite que a existência de qualquer execução de título extrajudicial seja averbada nos registros de bens ou direitos, com a finalidade de estabelecer uma presunção de fraude à execução. O Código Tributário Nacional, cujo rol de garantias nunca foi exaustivo e, portanto, pode ser complementado ou mesmo, no presente caso, operacionalizado por lei ordinária (art. 183), também há muito antecipou essa presunção para o momento da inscrição em dívida ativa (art. 185), cuja ampla publicidade garante que qualquer adquirente de bens possa se acautelar e, assim, evitar prejuízos.
Com a inscrição em dívida ativa, há presunção de liquidez e certeza da obrigação e possibilidade de ajuizamento da execução fiscal, do qual decorrerá agravamento das condições para o sujeito passivo (inclusive incremento de custos) que, dentre outras consequências, ficará sujeito a medidas judiciais como o bloqueio de ativos financeiros, certamente mais prejudicial do que uma simples indisponibilidade limitada a determinados bens ou direitos sujeitos a registro.
Não fossem suficientes tais circunstâncias, as quais já revelam a naturalidade da medida, ao simplesmente optar por evitar que um problema (fraude) ocorra ao invés de ignorá-lo e depois acabar prejudicando terceiros potencialmente de boa-fé, também é importante lembrar, em nome de coerência, que a legislação brasileira já previa diversas hipóteses até mesmo de expropriação/excussão extrajudicial de bens (medidas que não se confundem, em absoluto, com a previsão contida no art. 20-B), vide, por exemplo, o Decreto-Lei nº 70/1966, a Lei nº 9.514/97 e as hipóteses legais de aplicação da pena de perdimento.
Por outro lado, é evidente que a disciplina do 20-B é insuficiente para assegurar uma adequada aplicação do dispositivo (inclusive no tocante a limites, prazos, possibilidade de parcelamento, de oferta voluntária de garantia etc.), mas foi exatamente por isso que o art. 20-E determinou a sua regulamentação pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgão que possui, assim como os demais integrantes das Funções Essenciais à Justiça, a elevada responsabilidade de defender a Constituição Federal e o interesse público primário, não tendo, portanto, qualquer compromisso com erros e abusos, mas sim com o povo brasileiro, cabendo-lhe corrigir e combater aqueles. Caso, porventura, ainda falhas venham a ocorrer e a situação não seja resolvida administrativamente, sempre restará ao prejudicado a possibilidade de buscar seus direitos junto ao Poder Judiciário.
A indisponibilidade de bens não está sujeita reserva de jurisdição, não dispondo as Comissões Parlamentares de Inquérito de tal prerrogativa simplesmente por não ostentar caráter instrutório-investigativo. Igualmente, também não afronta o direito de propriedade (que não é absoluto e, aliás, é justamente o que responde por dívidas), somente obstando temporariamente, por força de previsão legal, o exercício da faculdade de dispor do bem/direito.
O art. 20-B da Lei nº 10.522, de 2002, não vulnera, enfim, qualquer disposição constitucional, a não ser, é claro, o já mencionado suposto "direito fundamental" a que fraudes possam ser praticadas e não evitadas. O mesmo certamente não se pode afirmar sobre as suas críticas, que partem de ideologia – infelizmente arraigada no Brasil e vilã do crescimento econômico – descompromissada com a concretização dos direitos dos credores, em especial o Estado.
Aos ainda resistentes, propomos um desafio: confiram as experiências do direito comparado, dentro e fora da OCDE, a exemplo dos Estados Unidos, França, Portugal, Espanha, México, Chile, Peru, Bolívia e Argentina.
Filipe Aguiar de Barros e Daniel de Saboia Xavier são, respectivamente, procurador da Fazenda Nacional e coordenador-geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional – CRJ/PGFN; procurador da Fazenda Nacional e coordenador-geral de Estratégias de Recuperação de Créditos – CGR/PGFN
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Por Filipe Aguiar de Barros e Daniel de Saboia Xavier
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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