quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Bloqueio de bens independentemente de ordem judicial – se está implantando uma execução fiscal administrativa “aos poucos”?

Está sendo bastante comentada uma alteração recente na legislação tributária federal, que dá à Fazenda Nacional o poder de “tornar indisponíveis” os bens de um contribuinte que, devidamente notificado, não pague em até cinco dias valor que tenha sido inscrito em dívida ativa. Trata-se da Lei 13.606, de 9 de janeiro de 2018, que, entre dispositivos que cuidam de assuntos inteiramente diversos, inseriu os seguintes artigos na Lei 10.522/2002, que disciplina o cadastro informativo de créditos não quitados (CADIN), com o seguinte teor:

Art. 25.  A Lei no 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 20-B, 20-C, 20-D e 20-E:

“Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados

§ 1o  A notificação será expedida por via eletrônica ou postal para o endereço do devedor e será considerada entregue depois de decorridos quinze dias da respectiva expedição.

§ 2o  Presume-se válida a notificação expedida para o endereço informado pelo contribuinte ou responsável à Fazenda Pública.

§ 3o  Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:

I – comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e

II – averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.”

“Art. 20-C.  A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá condicionar o ajuizamento de execuções fiscais à verificação de indícios de bens, direitos ou atividade econômica dos devedores ou corresponsáveis, desde que úteis à satisfação integral ou parcial dos débitos a serem executados.

Parágrafo único. Compete ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional definir os limites, critérios e parâmetros para o ajuizamento da ação de que trata o caput deste artigo, observados os critérios de racionalidade, economicidade e eficiência.”

“Art. 20-D.  (VETADO).”

“Art. 20-E. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editará atos complementares para o fiel cumprimento do disposto nos arts. 20-B, 20-C e 20-D desta Lei.”

Como se percebe, em síntese, a lei estabelece que, uma vez inscrito um valor em dívida ativa, o contribuinte deverá ser intimado para pagá-lo em até cinco dias. Se não o fizer, será possível proceder ao bloqueio de todos os seus bens.

Se forem localizados bens suficientes à satisfação do crédito, o contribuinte poderá ser executado. Se não, para evitar a propositura de ações de execução fiscal inúteis ou inviáveis, a ação não será proposta, passando a Fazenda a fazer uso de expedientes extrajudiciais de cobrança, como o protesto da CDA, o não fornecimento de certidões negativas com todos os ônus daí decorrentes etc.

Aponta-se, em defesa da medida, o fato de que o art. 185 do CTN já estabelece serem fraudulentas as alienações de patrimônio havidas depois da inscrição de um débito em dívida ativa. Assim, a medida em questão teria o nobre propósito de proteger terceiros de boa-fé, que poderiam ser ludibriados comprando bens do devedor e enfrentando problemas depois com a Fazenda, que pugnaria pela ineficácia de tais avenças e pela constrição dos bens correspondentes.

Em reforço a esse argumento, cita-se a ineficácia das execuções fiscais diante de contribuintes inescrupulosos, que esvaziam seu patrimônio para escapar do pagamento de tributos. A medida, assim, teria a finalidade de dar efetividade à cobrança do crédito tributário, em respeito aos princípios da igualdade, da livre concorrência e da proteção ao interesse público.

Exame um pouco mais detido do assunto, porém, revela que a citada alteração legislativa é flagrantemente inválida. Ainda que procedentes as razões invocadas em sua defesa, elas não autorizam medida tão desproporcional, frontalmente contrária a disposições do Código Tributário Nacional e da Constituição Federal.

Primeiro, sabe-se que, à luz do princípio do devido processo legal, ninguém poderá ser privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. No caso, tem-se a indisponibilidade dos bens de um cidadão, que deles fica privado, sem que tenha havido qualquer processo judicial antecedente. Considerando-se que os créditos tributários são constituídos de maneira unilateral, e que nem sempre há processo administrativo de controle interno de sua legalidade, nem mesmo um processo administrativo poderá ter havido, antes de se privar o contribuinte de seus bens, em clara ofensa à sobredita garantia constitucional processual.

Mais clara, porém, é a violação ao art. 185-A do CTN, que dispõe:

Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)

§ 1o A indisponibilidade de que trata o caput deste artigo limitar-se-á ao valor total exigível, devendo o juiz determinar o imediato levantamento da indisponibilidade dos bens ou valores que excederem esse limite. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)

§ 2o Os órgãos e entidades aos quais se fizer a comunicação de que trata o caput deste artigo enviarão imediatamente ao juízo a relação discriminada dos bens e direitos cuja indisponibilidade houverem promovido. (Incluído pela Lcp nº 118, de 2005)

Veja-se. Para tornar bens indisponíveis, da forma como a Lei 13.606/2018 agora pretende, o CTN exige:

a) a propositura de uma execução fiscal;

b) a citação do devedor;

c) o não pagamento da dívida;

d) a não apresentação de qualquer garantia;

e) a não localização de quaisquer bens que possam ser penhorados.

Só depois de atendidos todos esses requisitos o CTN permite que se faça o bloqueio. E, mais importante: bloqueio só dos bens suficientes à satisfação do crédito. Se houver indisponibilidade de bens em montante superior, deve haver a imediata liberação. Na desastrada alteração legislativa aqui examinada, ao contrário, não se exige qualquer paralelo entre a dívida inscrita e não satisfeita em cinco dias e o patrimônio a ser tornado indisponível. Pelo teor dos dispositivos transcritos, seria possível, em tese, tornar indisponível todo o patrimônio do contribuinte, independentemente do valor da dívida inscrita e não paga, que poderia corresponder a 10%, ou mesmo a 1% do patrimônio bloqueado. A desproporcionalidade não poderia ser mais clara. O art. 185-A do CTN, e todos os requisitos por ele exigidos, foram transformados em letra morta. Agora, basta não pagar débito inscrito, no prazo de cinco dias, para que se obtenha o mesmo efeito, em absurdo que dispensa comentários adicionais.

Isso remete, diretamente, ao argumento calcado no art. 185 do CTN, que é, bem se vê, falso. O artigo não afirma fraudulenta qualquer alienação de bens feita por contribuinte que tenha débitos inscritos em dívida ativa. O parágrafo único do dispositivo é explícito em ressalvar não haver problema algum com a alienação de bens, caso o devedor reserve patrimônio suficiente para o pagamento da dívida:

Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.(Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)

 Não é o que faz a nova legislação: uma sociedade empresária com patrimônio superior a 1 bilhão de reais poderá, em tese, ter todos os seus bens bloqueados, se por acaso tiver inscrita em dívida ativa quantia correspondente a R$ 1.000,00 e não a quitar em cinco dias, ainda que a alienação de parte de seus bens esteja longe, muito longe, de comprometer a sua liquidez ou sua solvabilidade.

Percebe-se, portanto, que a Lei 13.606/2018 veicula instrumento truculento, que faz regredir a relação tributária a contextos que deveriam figurar atualmente apenas nas páginas dos livros de História.

Não se argumente, em oposição, com a importância de se satisfazer o crédito público. Essa finalidade sem dúvida é importante, mas não justifica que se adote qualquer meio, desproporcional como este veiculado pela Lei 13.606/2018, em sua consecução. Paralisar todo o patrimônio de um contribuinte, em sede administrativa, por conta do mero inadimplemento, remete às chamadas “sanções políticas”, formas coercitivas de cobrança, à margem do devido processo legal, que a jurisprudência do STF sempre repeliu (Súmulas 70, 323 e 547 do STF). Os agrupamentos humanos organizaram-se em torno de figuras que deram origem ao Estado contemporâneo com a finalidade de, assim, fazer valer as regras de conduta, mais modernamente inclusive em face do próprio Poder Público. Seria um contrassenso, nessa ordem de ideias, invocar os nobres propósitos dessa figura, criada para tornar eficaz o Direito, precisamente para violá-lo.

Hugo de Brito Machado Segundo
Doutor e Mestre em Direito. Advogado. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Professor do Centro Universitário Christus (Graduação e Mestrado).

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