Interpretação da PGFN acerca da utilização dos depósitos judiciais vinculados a débitos incluídos no programa
A Lei n° 13.496/17, objeto da conversão da MP nº 783/17, instituiu o Programa Especial de Regularização Tributária (PERT) com o objetivo de oferecer ao contribuinte condições benéficas para saldar seus débitos junto à Secretaria da Receita Federal (SRF) e à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), mediante a aplicação de descontos na multa e nos juros.
Art. 6o Os depósitos vinculados aos débitos a serem pagos ou parcelados serão automaticamente transformados em pagamento definitivo ou convertidos em renda da União.
§ 1o Após o procedimento previsto no caput deste artigo, se restarem débitos não liquidados, o débito poderá ser quitado na forma prevista nos arts. 2o ou 3o desta Lei.
§ 2o Depois da conversão em renda ou da transformação em pagamento definitivo, poderá o sujeito passivo requerer o levantamento do saldo remanescente, se houver, desde que não haja outro débito exigível.
§ 3o Na hipótese prevista no § 2o deste artigo, o saldo remanescente de depósitos na Secretaria da Receita Federal do Brasil e na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional somente poderá ser levantado pelo sujeito passivo após a confirmação dos montantes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL ou de outros créditos de tributos utilizados para quitação da dívida, conforme o caso.
§ 4o Na hipótese de depósito judicial, o disposto no caput deste artigo somente se aplica aos casos em que tenha ocorrido desistência da ação ou do recurso e renúncia a qualquer alegação de direito sobre o qual se funda a ação.
§ 5o O disposto no caput deste artigo aplica-se aos valores oriundos de constrição judicial depositados na conta única do Tesouro Nacional até a data de publicação desta Lei.
No mesmo sentido, preveem os artigos 15 da Portaria PGFN n° 690 e 9° da IN RFB n° 1711, reproduzindo o preceito legal.
Ao interpretar o art. 6º da Lei nº 13.496/17, a PGFN entende que os depósitos existentes em Execução Fiscal serão imputados às inscrições sem os descontos dos encargos legais, conforme se depreende dos esclarecimentos prestados pelo órgão no link Perguntas e Respostas, especificamente nas questões 10 e 111.
Ocorre que o posicionamento da Procuradoria, além de não se coadunar com a finalidade do próprio instituto jurídico do parcelamento especial, despreza a integralidade prescritiva do art. 6º, representada conjuntamente pelo seu caput e parágrafos, e viola os postulados constitucionais da isonomia e da segurança jurídica.
Inicialmente, importa salientar que a Lei Complementar n° 95/982 é clara ao estabelecer que as disposições normativas deverão expressar, por meio dos parágrafos, os aspectos complementares à norma enunciada no caput. Significar dizer, por veicular o art. 6° da Lei nº 13.496/17 um comando jurídico composto, seus parágrafos auxiliam na compreensão do texto do caput, de tal sorte que é impossível interpretar cada enunciado de maneira isolada.
Nessa senda, verifica-se, de pronto, que a interpretação realizada pela PGFN torna inócua a prescrição contida no §2°, pois seria impossível haver saldo a levantar se os valores dos depósitos em juízo fossem alocados aos débitos incluídos no parcelamento sem os descontos. Isso porque duas seriam as situações passíveis de se configurar: a) depósito integral: utilização dos depósitos corresponderia ao pagamento integral da dívida, não havendo que se falar em levantamento de qualquer valor; e b) depósito parcial: considerando-se que esse montante sequer cobre o valor do débito sem os descontos, com muito maior razão inexistiria qualquer valor a levantar.
Aliás, nos casos de depósito parcial, a interpretação pretendida pela Procuradoria mostra-se ainda mais absurda, porquanto, longe de existir saldo remanescente, subsistiria débito a pagar pelo contribuinte que “quis aderir ao PERT sem descontos”. Em outros dizeres, depois de ter optado pela discussão judicial da exigência tributária, com todos os ônus dela decorrentes (despesas processuais, honorários, constrição patrimonial, situação de irregularidade fiscal etc.), o contribuinte, de acordo com a interpretação da Procuradoria, resolveria “pronta e voluntariamente” renunciar ao direito sobre o qual se funda a ação com o fim de aderir ao PERT sem quaisquer benefícios, ter o valor depositado transformado em pagamento parcial e ainda comprometer-se a obter recursos financeiros para quitar débito remanescente.
Nota-se, portanto, que a postura da Procuradoria padece de incongruência lógica: por qual motivo a lei estabeleceria a previsão de levantamento de saldo remanescente se essa situação fosse de impossível ocorrência?
Com o intuito de “justificar” sua postura incongruente, no link “perguntas e respostas” disponível no siteda PGFN – questão 10 -, a Procuradoria esclarece que o “levantamento do saldo remanescente” somente se aplicaria aos casos em que houver depósito a maior. Ora, sabe-se que a situação de depósito a maior é excepcionalíssima – senão inexistente -, traduzindo uma justificativa forçada, distante da realidade concreta da classe contribuinte, o que só vem a corroborar o desvirtuamento praticado pela PGFN em relação aos efeitos do comando jurídico do art. 6º.
A interpretação fazendária compromete também a norma enunciada no §4° do art. 6º, uma vez que, efetivados depósitos judiciais pelo contribuinte, não haveria que se falar em sua adesão ao parcelamento, mas sim em efetivo pagamento do débito na forma exigida em Execução Fiscal. Qual seria a vantagem para esses contribuintes? Nenhuma! E se vantagem não há, porque então teriam desistido de sua ação e renunciado à alegação de direito sobre o qual se funda a demanda judicial, tal como ordena o § 4º?
Decerto, ao contrário do que quer supor a PGFN a partir de uma exegese errônea do art. 6º da Lei nº 13.496/17, inexistiria qualquer razão para o devedor ter incluído no parcelamento débitos garantidos parcial ou integralmente, pois, como dito, se não aplicados os descontos, a adesão ao PERT equivale ao pagamento do tributo nos exatos termos exigidos pelo Fisco, opção jamais vislumbrada para um contribuinte que discute no Poder Judiciário a legitimidade da tributação que lhe está sendo imposta.
Se não bastasse, o entendimento da PGFN vai de encontro com a finalidade precípua do instituto jurídico dos parcelamentos especiais, que é oferecer benefícios revertidos em descontos de multas e juros e, com isso, incentivar o contribuinte a saldar suas dívidas tributárias sem prejuízo na manutenção das suas atividades empresariais e profissionais, especialmente em momento de crise econômica e diante de cargas tributárias elevadas, circunstâncias certamente afetas à realidade brasileira. Os objetivos do parcelamento concedido pelo Governo Federal manifestam-se na própria Exposição de Motivos da MP nº 783/2017, na qual se fez constar que “a proposta justifica-se pela necessidade de proporcionar às empresas condições de enfrentarem a crise econômica atual por que passa o País, permitindo que voltem a gerar renda e empregos e a arrecadar seus tributos”.
Não é diferente o entendimento dos nossos Tribunais que, em diversas oportunidades3, assinalaram que os programas de refinanciamento de dívidas tributárias visam a proporcionar ao contribuinte facilidades no cumprimento de suas obrigações fiscais em favor, também, dos cofres públicos, preservando-se a manutenção das atividades econômicas e a obtenção de recursos pelo Estado.
O entendimento fazendário viola também o princípio constitucional da isonomia. Isso porque, com a conversão dos depósitos em pagamento na forma pretendida pela Procuradoria, os contribuintes que garantiram o juízo por meio de depósitos encontram-se em situação de desvantagem em relação àqueles que providenciaram outra espécie de garantia (por ex.: carta fiança, seguro garantia e bens imóveis), já que apenas estes últimos poderão gozar das reduções previstas na lei do PERT.
Há, ainda, outra forte resistência à interpretação procedida pela PGFN: o desrespeito à segurança jurídica que há de permear as relações entre Fisco e contribuintes.
Primeiro porque, após abrir mão de discutir judicialmente os débitos para usufruir dos benefícios a que tem direito, o contribuinte fica agora sujeito ao alvedrio da Procuradoria, a quem incumbe operacionalizar os procedimentos do parcelamento, podendo acarretar, em casos extremos, a sua exclusão do PERT diante das dificuldades enfrentadas pelo sujeito passivo em honrar a(s) parcela(s) a partir de janeiro de 2018,acaso não efetivadas as reduções de multas e juros.
Segundo porque, na hipótese de os descontos não serem aplicados antes da conversão dos depósitos em pagamento definitivo, não se sabe acerca dos procedimentos a serem adotados para a imputação dos depósitos ao débito inscrito, que engloba principal e encargos legais. Os valores depositados seriam imputados ao principal, aos juros, à multa ou a todos? Em qual proporção? Qual o critério a ser adotado? Com efeito, da leitura da lei instituidora do PERT não há como inferir o modus operandi da amortização da dívida tributária, o que gera enorme insegurança ao contribuinte, pois a mercê das vontades e interesses exclusivos do Fisco.
Enfim, da análise do artigo 6º da Lei n° 13.496/17, a única interpretação possível e coerente com a completude do sistema jurídico é a de que os valores depositados em juízo sejam alocados às inscrições incluídas no PERT tão somente após aplicadas as reduções das multas e dos juros, cabendo ao contribuinte ingressar com as medidas cabíveis junto ao Poder Judiciário a fim de assegurar o seu direito de gozar dos benefícios e impedir que prevaleça o entendimento da Procuradoria da Fazenda Nacional.
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1 Disponível em: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/divida-ativa-da-uniao/todos-os-servicos/informacoes-e-servicos-para-pessoa-fisica/programa-especial-de-regularizacao-tributaria-2013-pert-2013-mp-783-2017/perguntas-e-respostas-pert-mp-783-2017#11 –acesso em 19/12/2017.
2 Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: III – para a obtenção de ordem lógica: c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida.
3 TRF 3ª Região, SEGUNDA TURMA, AMS – APELAÇÃO CÍVEL – 345033 – 0003393-03.2012.4.03.6107, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL CECILIA MELLO, julgado em 24/09/2013, e-DJF3 Judicial 1 DATA:03/10/2013; TRF 3ª Região, TERCEIRA TURMA, AMS – APELAÇÃO CÍVEL – 299339 – 0000225-87.2007.4.03.6100, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL NERY JUNIOR, julgado em 16/08/2012, e-DJF3 Judicial 1 DATA:24/08/2012; TRF 5ª Região, PROCESSO: 00006752720114058107, AC572037/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL IVAN LIRA DE CARVALHO (CONVOCADO), Quarta Turma, JULGAMENTO: 22/07/2014, PUBLICAÇÃO: DJE 31/07/2014 – Página 310; e TRF 5º Região, PROCESSO: 00011393820124058100, APELREEX31313/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO MACHADO CORDEIRO (CONVOCADO), Segunda Turma, JULGAMENTO: 14/10/2014, PUBLICAÇÃO: DJE 16/10/2014 – Página 133.
por Maria Ângela Lopes Paulino Padilha – Doutora e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Professora nos cursos em Direito Tributário da PUC-SP, do IBET e do IBDT. Autora do livro “As Sanções no Direito Tributário” publicado pela Editora Noeses. Advogada no escritório Barros Carvalho Advogados Associados
Marília Bezzan Rodrigues Alves – Mestranda em Direito Tributário pela PUC-SP. Advogada no escritório Barros Carvalho Advogados Associados
Rodrigo Domingues de Abreu Alvarenga – Graduando da Faculdade de Direito da PUC-SP Estagiário no escritório Barros Carvalho Advogados Associados.
Fonte: Jota
Via IBET
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