Não houve na história tributária recente do Brasil um malfeito mais "ilegal", porém "politicamente correto", do que a guerra fiscal do ICMS entre os Estados.
Ilegal porque o Supremo Tribunal Federal (STF), depois de muitos anos de espera e engavetamento, ia decretá-la inconstitucional e editar uma Súmula Vinculante constrangedora.
Não houve na história recente do Brasil um malfeito mais "ilegal", porém "politicamente correto", do que a guerra fiscal do ICMS
Comecemos pelo Fundap, fundo que o Espírito Santo (ES) decidiu criar suspostamente de desenvolvimento regional, mas que tinha por objetivo "devolver" o ICMS devido na importação ou na revenda por meio de financiamento, com juros negativos.
Houve uma corrida de tradings e outras empresas, reais ou fictícias, para servirem de ponte entre a importação por esse Estado e os demais.
O volume cresceu a tal ponto em que pairavam dúvidas se os portos do ES teriam estrutura para suportar esses estoques e se as estradas comportariam o aumento dos fretes.
Os juros eram tão auspiciosos que houve um momento, pasmem, em que o Espírito Santo quis resgatar esses créditos e ofereceu um deságio de 90%. Nem assim obteve adesão, porque esse deságio seria imediatamente tributado pelo IRPJ, enquanto os juros negativos não eram renda contabilizada.
Não durou muito e São Paulo (SP) deu o troco e editou duas Portarias (CAT) em 1993 vedando o crédito excedente a 4,6% da base de calculo das mercadorias vindas do ES. Outros Estados como Minas Gerais (MG), indignados com essa "farra", também colocaram obstáculos semelhantes.
Outro problema surgiu quando nem todos os navios aceitavam parar naquele Estado e, então, os importadores decidiam desembaraçar as mercadorias no Rio de Janeiro (RJ) ou em Santos, porém, designando "importador jurídico" o estabelecimento do ES. Um "non sense" total.
Imaginem quantos litígios fiscais foram desencadeados na defesa contra a glosa do crédito pelo Estado de destino e/ou na cobrança de 100% do ICMS da importação pelo Estado de destino, porque o importador de fato não estava no ES.
Outros Estados se acharam no direito de copiar a ideia e daí Santa Catarina (SC) replicou o modelo, tendo Itajaí como porto de incentivo, com as mesmas benesses.
Mas houve incentivos hilários, que parecem "piada pronta".
O Distrito Federal (DF) não tem porto e daí necessitava ser criativo para concorrer com os Estados marítimos.
Em determinado momento um grande atacadista reuniu em SP mais de 300 fornecedores e, apoiado em pareceres de tributaristas respeitados, propôs que as mercadorias seriam transportadas de SP até determinado local no DF, com alíquota reduzida de ICMS, onde seriam depositadas e depois transferidas para o seu Estado de destino.
Simplesmente por "dormir" no DF, o governador local lhes devolvia expressivo percentual do ICMS devido pelo valor incremental. Isso porque revelou-se posteriormente que as mercadorias nem mesmo eram retiradas dos veículos, eles apenas estacionavam por algumas horas no DF, trocavam as notas fiscais e seguiam em frente.
Resultado: todos os fornecedores paulistas desse atacadista, com destino ao DF, foram autuados pelo ICMS/SP da diferença de alíquota, porque a ponte "quebrou".
Em novembro de 1993, São Paulo decidiu editar uma resolução de efeitos gerais, glosando o crédito que excedesse "o valor correspondente ao montante do ICMS efetivamente cobrado pelo Estado do remetente".
Ao longo do tempo quase todos os Estados aderiram à guerra fiscal, de uma forma ou de outra. Ao final, os resistentes e "chatos" ficaram SP e MG.
Os decretos concedentes, que eram sucessivamente atacados por Adin’s, foram substituídos por Tare’s (Termos de Ajustamentos de Regimes Especiais "secretos"), assinados pelos contribuintes e secretários de Fazenda estaduais, e mais difíceis de serem identificados e judicialmente alvejados.
O medo da Súmula do STF não era só pela legitimidade da glosa do crédito dos Estados de destino mas e, principalmente, porque os Estados concedentes deveriam cobrar os incentivos pretéritos dos beneficiários. O DF avisou que se recusaria cobrar R$ 8 bilhões (de 2000 a 2008), que o MP local dele exigia, sob risco de improbidade administrativa.
O cerco foi se fechando e o Supremo deu um prazo para os legisladores encontrarem uma saída honrosa, caso contrário a Súmula iria fazer estragos.
Então a Lei Complementar nº 160/17 veio para fazer tudo terminar em pizza. Mas faltou combinar com os "russos", e São Paulo continua não aceitando os créditos subsidiados dos outros Estados, mantendo o contencioso.
Lembramos de Gabriel Garcia Marques, em sua "Crônica de Uma Morte Anunciada", porque alguns fatores acenavam no sentido de que a guerra fiscal não daria certo: o Dieese fez um amplo estudo mostrando que mesmo nos casos em que havia fábricas sendo instaladas, os incentivos concedidos não cobriam os custos de implantação de infraestrutura que eram demandados, como, por ex., a adequação das necessidades públicas dos municípios. Segundo essa entidade, nem mesmo os empregos e o giro econômico dos salários justificavam essa renúncia fiscal. Além da persistente contingência pela recusa parcial dos créditos.
Espera-se que a abertura da "caixa-preta" dos incentivos acabe por encerrar a guerra fiscal, porque ou os Estados terão que conceder idênticos incentivos dos titulares dos Tare’s aos competidores, e mais se quebrarão, ou terão que rever essa regra, destruindo a confiança que ela visou proporcionar aos agentes econômicos envolvidos.
Plinio J. Marafon é sócio de Marafon, Soares, Nagai & Marsilli Advogados
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Por Plinio J. Marafon
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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