O ano se inicia com um novo e importante capítulo na tributação da era digital. No apagar das luzes de 2017, diversos Estados publicaram decretos que introduzem e disciplinam a cobrança do ICMS sobre operações com bens e mercadorias digitais, válida a partir de 1º de abril deste ano.
Desde a publicação do Convênio nº 106 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), em 5 de outubro de 2017, os Estados já possuíam as "regras do jogo" acordadas entre si para tal exigência. A partir dali, cada unidade passou a se mobilizar para implementá-las em sua legislação local.
Todo esse cenário de disputa que se estende por mais de duas décadas revela a necessidade urgente de reforma tributária
Quando os bens ou mercadorias digitais forem destinados ao consumidor final, o imposto deverá ser recolhido a favor do Estado (ou DF) onde estiver domiciliado ou estabelecido o adquirente.
Se, por um lado, essa determinação contribui para que não se instaure uma guerra fiscal entre os Estados, a mesma preocupação não se verificou com relação à eclosão de uma guerra fiscal entre Estados e municípios.
A discussão sobre a incidência de ISS ou ICMS sobre bens digitais remete a um conflito bastante antigo envolvendo a tributação de softwares.
Em 1998, o Supremo Tribunal Federal (STF) convencionava de forma paradigmática que softwares elaborados sob encomenda estariam sujeitos ao ISS (software customizado), já que o desenvolvimento de software personalizado configuraria a prestação de um serviço, ao passo que os softwares produzidos em escala comercial, atendendo o público consumidor em geral (software de prateleira) estariam sujeitos ao ICMS, por terem natureza de mercadoria (RE 176626/SP).
Surgiu, naquele debate, a afirmação de que "o conceito de mercadoria efetivamente não incluiu os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinados a sê-lo".
É de se notar que a tecnologia avançou muito de lá para cá. Antes, os softwares eram adquiridos nas prateleiras de lojas de informática e até mesmo em supermercados. Já há algum tempo, os softwares podem ser obtidos via download nos próprios computadores dos usuários. Atualmente, uma infinidade de softwares está disponível na "nuvem", sem que sequer seja necessário o download para acessá-los.
Contudo, 20 anos mais tarde, os contribuintes ainda não possuem qualquer segurança jurídica com relação ao assunto.
No Estado de São Paulo, por exemplo, primeiramente foi revogado o dispositivo que estabelecia que a base de cálculo do imposto estadual nas operações com softwares correspondia a duas vezes o valor da mídia física. Então, foi instituída a redução da base de cálculo do ICMS para 5% do valor da operação, inclusive nos casos em que os programas de computador são transferidos por meio eletrônico, em clara estratégia para "tornar o recolhimento do ICMS competitivo com o do ISS".
Posteriormente, as autoridades fiscais se manifestaram expressamente no sentido de que o fato de atualmente os softwares serem disponibilizados em meio digital (seja por download ou streaming) não teria o condão de descaracterizar sua natureza de mercadoria, uma vez que ainda se trataria de comercialização de software pronto.
Com o recém publicado Decreto Estadual 63.099, o Fisco paulista, acompanhado de outros Estados, consolida essas medidas e passa a exigir o ICMS sobre a circulação de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados (o decreto de SP foi publicado em 23.12.2017, os Estados do Ceará e Piauí publicaram os Decretos 32.475 e 17.572, respectivamente, em 28.12.2017; e o Estado de Goiás publicou o Decreto 9.128, em 29.12.2017. Além destes, os Estados do Amazonas (Decreto 38.370) e da Paraíba (Decreto 37.764) já haviam promovido as alterações.
Por sua vez, as autoridades fiscais municipais já vêm marcando o território da arrecadação do ISS sobre tais operações – e efetivamente arrecadando – há mais tempo.
A posição dos Fiscos municipais, em geral, é de que as operações com softwares estão sujeitas ao ISS com base no item 1.05 da Lista de Serviços (licenciamento de programas de computador). Além dessa rubrica, outras que respaldariam a incidência do ISS em operações digitais seriam os itens 1.03 (processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação, entre outros formatos, e congêneres") e 1.07 (suporte técnico em informática, inclusive instalação, configuração e manutenção de programas de computação e bancos de dados).
Todo esse cenário de uma disputa que se estende por mais de duas décadas revela a necessidade urgente de uma reforma tributária, em que o consumo seja tributado de forma única, sem a dicotomia mercadoria vs serviço, que tende a ficar cada vez mais ultrapassada (o Brasil está quase isolado em termos de países que ainda têm essa sistemática).
Enquanto isso, as empresas que operam no universo digital devem optar por qual bandeira abraçar. Se a questão há de ser resolvida mais uma vez pelo Poder Judiciário (ao que tudo indica, será o caso), talvez seja pertinente antecipar a discussão e definição judicial, evitando-se aguardar que o litígio ocorra já na qualidade de passivo e com as altas penalidades impostas pela legislação fiscal.
Fábio Ramos e Caroline Zing são sócio fundador e associada pleno do Inglez, Werneck, Ramos, Cury e Françolin Advogados.
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Por Fábio Ramos e Caroline Zing
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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