Os brasileiros que aderiram ao programa de regularização cambial e tributária instituído pela Lei da Repatriação (Lei 13.254/16) estão anistiados dos crimes fiscais e da evasão de divisas, assim como dos crimes de falsidade documental e de lavagem de dinheiro correlatos. Mas o que isso significa, exatamente? Qual é o alcance prático da anistia criminal na Lei da Repatriação?
A anistia é causa de extinção da punibilidade prevista no inciso II do artigo 107 do Código Penal, que também dispõe sobre a graça e o indulto. A anistia é medida de concórdia e conciliação, segundo Aloysio de Carvalho Filho, indicada para “desanuviar o ambiente social e político, restabelecendo a paz nos espíritos, conturbados por profundas desinteligências de natureza política”[1].
O legislador brasileiro, ao dispor sobre a anistia criminal na Lei da Repatriação, buscou apaziguar os espíritos dessas pessoas, que, ainda que tenham remetido para fora recursos de origem lícita, passaram a viver sob o risco de se verem acusadas de evasão de divisas, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro.
Outros países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) identificaram o mesmo problema, por isso, o órgão passou a recomendar que pessoas não ligadas a práticas criminosas, mediante salvaguardas jurídicas, fossem autorizadas a regularizar a situação fiscal. Seguindo as recomendações da OCDE, o Brasil instituiu um dos programas mais caros e menos benevolentes do mundo, bastando compará-lo aos demais offshore voluntary disclosure programmes dos demais países.[3]
Não se trata, pois, de benevolência injustificada ou gratuita. No caso brasileiro, o programa de repatriação realizado no ano passado trouxe enorme benefício para o país, num momento especialmente delicado da nossa economia. O Governo Federal e os Estados partilharam os R$ 51 bilhões arrecadados, quando o expressivo montante de R$ 170 bilhões foi regularizado.
Gostando-se ou não da Lei da Repatriação, os agentes públicos, inclusive a Receita Federal e o Ministério Público, devem cumpri-la à risca, sem lhe deturpar o sentido ou minimizar o alcance; noutras palavras, sem prejudicar os contribuintes. Caso contrário, estaria o Estado traindo a confiança dos brasileiros.
Tratando-se de anistia, a lei deve ser interpretada de acordo com o seu propósito inspirador, que é o de não punir os que mantiveram no exterior recursos de origem lícita e, até então, não-declarados. Mais de 25 mil pessoas aderiram ao programa em 2016 e, agora, cabe às instituições públicas cumprir a promessa e os anistiar criminalmente.
Na prática, os efeitos da anistia criminal na Lei da Repatriação resultam em que:
i) os órgãos de persecução criminal (polícia e Ministério Público) não podem instaurar investigações criminais contra o contribuinte, baseando-se na informação contida na Declaração de Regularização Cambial e Tributária (Dercat);
ii) Nenhum juiz pode usar a informação contida na Dercat como fundamento válido para motivar sentença contra o contribuinte aderente ou contra terceiros, ainda que o processo judicial seja anterior à adesão ao programa;
iii) A informação contida na Dercat não pode ser usada como prova em inquéritos ou processos em andamentos;
iv) A informação da Dercat não pode justificar a instauração, pela Receita Federal, de investigação fiscal de natureza especial, isto é, o contribuinte que aderiu ao programa não pode ser alvo de devassa ou, de modo algum, ser tratado de forma mais severa que os demais;
v) O contribuinte que cumpriu as exigências do art. 5º não pode perder a anistia criminal a não ser nas duas hipóteses taxativas contidas no art. 9º da lei: se houver prestado informações falsas ou usado documentos falsificados.
O PLS 405/2016, que reabrirá o prazo para adesão ao programa de repatriação e segue agora para a sanção presidencial, institui que a incorreção no valor informado dos ativos não é motivo para a expulsão do contribuinte do programa. A Receita o autuará para recolher os tributos adicionais.
Uma cláusula perigosa, porém, foi inserida no parágrafo seguinte. Estabelece que a extinção da punibilidade (leia-se, a anistia criminal) somente se dará se o contribuinte pagar o valor complementar em 30 dias da data da ciência do auto de infração.
Ora, isso afeta diretamente quem declarou pelo critério “foto”, que apenas informava os ativos existentes em 31 de dezembro de 2014 – em oposição ao critério “filme”, que incluía bens e direitos consumidos até aquela data. O perigo da fixação do prazo de 30 dias para pagar a multa é interpretá-lo no sentido que o contribuinte que não o cumprir não terá sua punibilidade extinta.
Esta interpretação não estaria conforme a Constituição. Toda lei de anistia deve ser interpretada de modo a ampliar a proteção jurídica aos destinatários da norma. Se for obrigado a pagar em 30 dias, o contribuinte será impedido de impugnar o auto de infração pela via administrativa ou judicial, o que fere a garantia de acesso à jurisdição. Além disso, a Lei 10.486/03 prevê a extinção da punibilidade se o pagamento do crédito tributário for feito “a qualquer tempo”, e há decisões do STF admitindo o trânsito em julgado da sentença penal condenatória como marco final[4]. A Lei 12.382/11, que trata do parcelamento fiscal, diz que extinção da punibilidade ficará suspensa durante o período de parcelamento e estará extinta se o pagamento ocorrer até o recebimento da denúncia.
Quem aderiu à repatriação pelo critério “foto” já está beneficiado pela garantia da anistia criminal. Rui Barbosa argumentava que “ninguém contesta ao legislador o direito de recusar certas categorias de indivíduos a mercê da anistia, ou impor a outros, antes de a receberem e para que a recebam, a satisfação de certos requisitos. O que se não concebe, nem se viu jamais, é que, depois de investidos na anistia, e pelo próprio ato que nela os investe, os anistiados continuem a pagar o crime, cujo esquecimento ela ordena”.[5]
A expulsão do programa e a consequente perda da anistia criminal são medidas drásticas que devem ser aplicadas com ponderação, nunca fora das estritas hipóteses do artigo 9º da Lei da Repatriação.
O contribuinte que aderiu e vier a sofrer autuação do Fisco, por suposta incorreção no valor dos ativos, não apenas tem a garantia de que não será expulso do programa, como também não a de que não sofrerá retaliação em virtude da interposição de recurso administrativo, caso discorde do teor do auto de infração. De forma alguma poderá ser compelido ou ameaçado, pela via do processo criminal, a renunciar ao direito elementar de acesso à Justiça.
Felizmente, o Brasil tem tradição de honrar as anistias concedidas no passado pelo Poder Legislativo, protegendo a pessoa anistiada contra acusações fundadas em fatos que a lei determina sejam esquecidos. Isto ocorreu com a Lei 6.683/79, que anistiou os crimes do período militar, em benefício do processo de reabertura política e redemocratização do país, e, recentemente, com a Lei 10.826/03, que promulgou o Estatuto do Desarmamento. Foram igualmente exitosas as anistias concedidas pela Lei 4.506/64 (artigo 82) e pelo Decreto-Lei 94/66 (artigo 5º), que traziam estímulos fiscais para a repatriação de recursos não declarados no exterior, não havendo qualquer notícia sobre processo movido contra contribuinte que tenha aderido ao programa, à época.
Em breve haverá uma segunda chance para os brasileiros que quiserem regularizar ativos no exterior não-declarados à Receita Federal, e a anistia criminal continuará sendo um dos principais incentivos à adesão dos contribuintes. Os órgãos de persecução penal precisam compreender isto e agir de acordo com o verdadeiro espirito da lei: esquecer o passado.
[1] Comentários ao código penal. Vol. IV. Aloysio de Carvalho Filho. Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 126.
[2] Sobre as dificuldades de acesso ao mercado de câmbio, recomendo a leitura do livro de Renato A. Gomes de Souza, Câmbio – dos controles rígidos à liberalização, RJ: Renovar, 2007.
[3]http://www.oecd.org/ctp/exchange-of-tax-information/Voluntary-Disclosure-Programmes-2015.pdf
[4] Por exemplo, STF, AP 516 ED, Min. LUIZ FUX, Pleno, julgado em 05.12.2013.
[5] RUI BARBOSA, Anistia Inversa. Caso de teratologia jurídica, 2ª. Ed. Rio de Janeiro, 1896, p. 80. Apud. Comentários ao código penal. Vol. IV. Aloysio de Carvalho Filho. Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 127.
por Rodrigo Falk Fragoso é advogado criminal, sócio do Fragoso Advogados e professor de Direito Penal na pós-graduação da PUC-Rio.
Fonte: Conjur
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