No mês passado o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a inclusão do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICMS) nas bases de cálculo das Contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS).
Este julgamento do STF surpreendeu a comunidade jurídica em razão da tradição brasileira de inclusão dos tributos sobre vendas no conceito de receita bruta e, inclusive, do ICMS em sua própria base de cálculo.
O primeiro aspecto, além de ter uma relação intrínseca com a lógica das normas e dos registros contábeis, também tem consequências jurídicas importantes. O ICMS incidente sobre as operações de vendas de mercadorias, destacado na Nota Fiscal, não pertence ao vendedor, segundo o STF. Contudo, juridicamente falando, a obrigação de pagamento desse ICMS ao Estado é do vendedor, ou seja, o vendedor não é um mero intermediário entre o comprador e o Estado (que recebe o ICMS). Se assim fosse (ou, se assim for), o não pagamento do ICMS pelo vendedor configuraria (ou configurará) crime de apropriação indébita.
O raciocínio utilizado para qualificar as receitas de terceiros (ou o repasse de receitas) passa, necessariamente, pelo arranjo jurídico das figuras do principal e do agente. Somente o agente (intermediário), do ponto de vista jurídico, é que recebe algo que não lhe pertence e tem a obrigação contratual de repassá-lo a terceiro. O raciocínio do STF não foi propriamente esse (que reflete a perspectiva jurídica para diferenciar receitas próprias e receitas de terceiros e que, aliás, é a seguida pelas normas contábeis). De acordo com o que vimos no julgamento, a premissa do STF seguiu a lógica econômica de que nos tributos sobre vendas de bens e serviços, as empresas são meros agentes arrecadadores, já que o consumidor final é o verdadeiro pagador. Dentre os argumentos apresentados pelos contribuintes houve acertada referência às normas contábeis para excluir os tributos sobre vendas do conceito de receita. Mas, é importante anotar que a perspectiva contábil e a perspectiva econômica da tributação sobre o consumo trazem conflitos jurídicos relacionados à definição de contribuintes (de fato e de direito) e responsáveis.
O julgamento do STF impacta diretamente outras situações similares, de incidência de tributos sobre tributos. Além do ISS, o próprio PIS e a própria COFINS, assumindo natureza de tributação sobre o consumo, também deveriam ser excluídos do conceito de receita, pois não se traduzem como somas que, economicamente, pertencem ao vendedor. Ao decidir esses temas, o STF estará dando um pontapé importante para a reforma tributária que está sendo discutida no Congresso.
Não há dúvidas de que, atualmente, o PIS e a COFINS estão mais próximos da tributação sobre o consumo que da tributação sobre a renda, o que justificaria plenamente sua fusão com o ICMS e o ISS. A originária utilização da receita bruta não deixava dúvidas de que se tratava da tributação das operações com bens e serviços (sobre o consumo, portanto). A combinação com elementos de tributação da renda surgiu quando da migração para a receita total. Entretanto, há previsão de exclusão das bases de cálculo do PIS e da COFINS das receitas com vendas de ativo imobilizado, participações societárias e ativos intangíveis e, além disso, aplicação de alíquota zero para parte das receitas financeiras. Isso faz com que, na prática, não haja quase nenhuma diferença entre a receita bruta e a receita total (apenas um grande contencioso em torno dessas definições).
A possibilidade de aplicação do raciocínio do STF ao ISS e às próprias contribuições, portanto, não é um mero acaso. É produto da feliz adoção da racionalidade econômica da tributação sobre o consumo para formação dos raciocínios jurídicos (embora alguma profundidade sobre as consequências jurídicas disso não fosse dispensável). Isso deixa bastante claro, também, que as divisões entre ISS (municipal), ICMS (estadual) e PIS/COFINS (federal) são estritamente jurídicas, decorrem de arranjos políticos para distribuição de competências, mas acabam sendo artificiais, pois feitas desconsiderando-se a realidade econômica que se pretendia tributar (o consumo, não importa de que).
A re-união da tributação sobre o consumo também não caria mal para tornar a aplicação da norma contábil sobre o reconhecimento de receitas (Pronunciamento do Comitê de Pronunciamentos Contábeis n. 47), mais operacional e neutra. Não há uma discussão sobre o tema que deixe de tocar na dificuldade da segregação das obrigações de desempenho (que parcela do preço representa a venda de bens, que parcela representa a venda de serviços) diante de seus impactos na tributação do ICMS e do ISS[1] e na apropriação de créditos de PIS e COFINS. O deputado Luiz Carlos Hauly, relator da reforma tributária, já fez essa proposta[2]. O Centro de Cidadania Fiscal[3] também está debruçado sobre o tema há alguns anos, reunindo economistas e juristas de renome para produzir o novo modelo de tributação sobre o consumo no Brasil, alinhado aos padrões internacionais. Sem dúvida, a decisão do STF traz um ânimo adicional para repensarmos a estrutura do sistema tributário nacional, o que com certeza colaborará para o alinhamento da contabilidade brasileira ao padrão internacional.
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[1] Já falamos sobre esse tema no último artigo da série Direito e Contabilidade do JOTA
[2] http://oglobo.globo.com/economia/relator-apresenta-pontos-principais-de-reforma-tributaria-20966746.
[3] http://ccif.com.br/.
Vanessa Rahal Canado - Sócia da Área Tributária do CSMV Advogados. Professora da FGV DIREITO SP. Mestra e Doutora pela PUC/SP. Coordenadora do GEDEC – Grupo de Estudos em Direito e Contabilidade. Membro do GAJ-CCiF – Grupo de Arquitetura Jurídica do Centro de Cidadania Fiscal
Fonte: Jota.info/
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