O imposto de renda da pessoa física deveria ser o mais justo de todos os tributos e fazer a justiça em sua forma básica: dar a cada um o que é seu e respeitar a igualdade de todos perante a lei, na medida de suas desigualdades.
Ao longo de mais de 40 anos na trincheira da advocacia tributária sempre em defesa os direitos dos contribuintes, já tivemos oportunidade de, na atividade jornalística, denunciar as iniquidades de nossa legislação e os abusos de nossas autoridades fazendárias em todos os seus níveis.
Agora vemos que nossas autoridades, apesar de todos os erros que cometem por serem criaturas humanas, insistem em manter equívoco óbvios e elementares, com o que prejudicam a classe média brasileira e de certa forma estimulam a prática do crime de sonegação fiscal. Tal crime quase sempre implica em outros, como a lavagem de dinheiro, a falsidade ideológica e a evasão de divisas. Ou seja: quem deveria realizar a justiça, que é um dos fundamentos da nossa Constituição, promove a criminalidade. Vejamos alguns exemplos disso:
Deduções ridículas – Para cada dependente o desconto anual é de R$ 2.275,08. A injustiça é flagrante, eis que ninguém sobrevive com cerca de R$ 190,00 por mês, quantia insuficiente para alimentar uma pessoa. A dedução admitida como despesa de educação é um acinte ao bom senso: R$ 3.561,50 por ano, menos que R$ 300,00 por mês!
Em síntese: trata-se de uma legislação de efeitos claramente confiscatórios, na medida em que se cobra imposto de forma a tirar do contribuinte valores essenciais à sua sobrevivência com dignidade.
Governantes sem honra – Todos os governantes deste país, em qualquer nível, inclusive seus ministros e demais auxiliares, são obrigados a cumprir integralmente as disposições da Constituição Federal. Nossa Lei Maior, em seu preâmbulo, que nesta coluna já transcrevemos diversas vezes para que ninguém disso se esqueça, diz que:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”
Pessoas honradas devem cumprir seus juramentos solenes. Basta uma leitura superficial dos artigos 5º e 6º da Constituição para nos certificarmos do descumprimento explícito e reiterado de suas normas.
Foram ignorados os direitos sociais, a justiça, a harmonia social etc, pois a tributação nos onera de forma desproporcional aos nossos rendimentos. Além disso, o que se arrecada em impostos utiliza-se de forma irracional, quando não desonesta. Em nossa coluna de 25 agosto de 2014, sob o título de Impostos, latas de lixo e cozidos nos poderes da República — clique aqui para ler — discutimos a necessidade de que os valores arrecadados sejam aplicados com critério, com seriedade, observadas as prioridades da sociedade.
Estímulos à sonegação – Nenhum brasileiro sente-se confortável ao deixar de pagar os tributos devidos. Pagá-los é dever cívico e nosso povo ama seu país e já demonstrou esse amor inúmeras vezes ao longo de nossa história, até com sacrifício da própria vida. Mas ao sofrer uma tributação injusta e imoral e, pior ainda, cujo produto é mal aplicado, mal administrado, sem prioridades corretas ou mesmo desviado de forma criminosa, fica estimulado a sonegá-lo.
Mas não é só a injustiça da cobrança que nos causa sofrimento. Isso também ocorre quando somos vítimas de injustiças provocadas pela má fé, pela desorganização e mau funcionamento do serviço público.
Por exemplo: o protesto de CDA (certidão da dívida ativa) tem ocasionado muitas injustiças. Já ocorreram casos de contribuintes (inclusive pessoas jurídicas) que pagaram dívidas inexistentes apenas para não sofrer um protesto que lhes prejudica o crédito e os coloca nos famigerados cadastros de inadimplentes.
Outro caso são as verdadeiras indústrias de multas de trânsito, aplicadas sem critérios adequados e sem que o autuado, quando se defenda, tenha um julgamento digno desse nome.
Uma jornalista, que havia recebido duas multas no mesmo dia em horários em que comprovou estar em seu trabalho e o veículo no estacionamento, teve sua defesa indeferida e recebeu ameaça de inscrição no CADIN, esse instrumento de chantagem criado como arma do terrorismo tributário. Preferiu pagar o que não devia, quase R$ 200,00, para livrar-se da ameaça. Dias depois, num assalto, teve prejuízo cerca de R$ 1.000 e comentou de forma bem humorada que pelo menos dessa vez o ladrão estava armado.
Prejuízos para a classe média – No país do carnaval há muitas fantasias. Nossas autoridades maiores, a começar pela presidente, são verdadeiros foliões, com a diferença que suas folias duram o ano inteiro e são pagas por todos nós.
O próprio conceito de classe media varia ao sabor da demagogia do momento.
O site da revista Exame de 20 de setembro de 2012 registra que o governo federal comemorou uma suposta ampliação da classe média através de pesquisa e assinala que:
“A pesquisa usa apenas o critério de renda, definido pelo governo no começo do ano: classe média é quem vive em famílias com renda per capita de R$ 291 a R$ 1.019.
Dentro dessa faixa, a classe média “baixa” tem renda de R$ 291 a R$ 441 por cada membro da família, a média de R$ 441 a R$ 641 e a classe média alta teria renda superior a R$ 641 e inferior a R$ 1.019. Outro critério é a “vulnerabilidade econômica”, ou seja, a probabilidade de retorno à condição de pobreza.”
Mesmo que se faça a atualização desses valores com base na inflação real, verdadeira, e não nesses fantasiosos índices divulgados pelo governo, claro está que esse conceito é apenas um devaneio demagógico, fantasia carnavalesca ou resultado de alienação mental.
A Constituição, no artigo 6º, que define os direitos sociais de todos os brasileiros, registra que:
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Esses direitos são assegurados a qualquer cidadão, ante o princípio da isonomia. Se fizermos cálculos muito modestos do valor de custo desses direitos, fica evidente ser ridículo o resultado dessa suposta pesquisa que nada mais revela além da enorme vocação de nossos governantes (não só os atuais mas todos eles desde sempre) para a mentira, o engodo, a farsa.
Não vamos entrar no questionamento da má aplicação dos valores arrecadados. Num país onde verbas públicas são destinadas a financiar blocos de carnaval, festas desnecessárias, clubes de futebol, igrejas e tantas outras coisas que só deveriam ser custeadas pelos seus apreciadores ou adeptos, pagar impostos começa a ser desestimulante.
Para que esse quadro possa mudar a longo prazo, precisamos de uma ampla reforma constitucional, onde sejam respeitados os princípios básicos da tributação: proporcionalidade, simplicidade e estabilidade. Nisso tudo deve-se considerar que, num pais como o nosso, qualquer carga tributária acima de 25% do PIB é uma extorsão.
Tal percentual será viável quando forem cortados os gastos excessivos, especialmente cabides de empregos, repartições inúteis, aposentadorias faraônicas e precoces, investimentos mirabolantes , empresas públicas desnecessárias ou deficitárias etc.
Será ainda imprescindível que sejam eliminados protecionismos ou incentivos tributários a quem deles não necessite, como são os casos de partidos políticos, entidades sindicais, organizações religiosas, empresas de comunicação, clubes sociais ou desportivos e tudo o mais que não seja absolutamente necessário para o funcionamento de um país que se pretenda sério e onde o povo tenha de forma efetiva o direito de ser feliz. Mas o direito à felicidade não pode ser apenas mais um item nessa colcha de retalhos que ainda chamamos de Constituição.
por Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Conjur
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