O cotidiano empresarial, especialmente no que diz respeito às estratégias para formatação jurídica dos negócios imaginados e ajustados pelas partes interessadas, acaba, por vezes, encontrando entraves burocráticos ou legais.
Depara-se, também, com omissões do ordenamento jurídico que dão margem a interpretações diversas e inconclusivas, causando embaraço para instrumentalizar o que se deseja legitimamente na prática.
As sociedades limitadas representam a preferência nacional para formatação dos negócios societários, especialmente de pequenas e médias empresas. A percepção é que as sociedades anônimas acabam por se adequar mais a empreendimentos que implicam investimentos de grande vulto, ou para aqueles que a própria lei exige esse tipo societário (como seguradoras, agentes do mercado financeiro e de capitais). E isso se explica porque as sociedades anônimas implicam custos financeiros e aparato burocrático mais intenso, do que é exemplo singelo e corriqueiro a obrigação de publicar seus atos em jornais e em Diários Oficiais.
Tratando do tema específico aqui proposto, temos que, antes da vigência do Código Civil atual, era costume amplamente reconhecido e aceito o direito de os sócios criarem quotas ordinárias e quotas preferenciais nas sociedades limitadas. Ou seja: nas limitadas era possível, a exemplo do que se pratica nas sociedades anônimas com as ações, haver quotas diferentes para os diferentes interesses dos sócios; aqueles que pretendiam apenas investir na sociedade, sem interferir em sua administração, podiam ser titulares de quotas preferenciais por meio das quais suas vantagens e restrições seriam reguladas em contrato social. Não são poucas as ocasiões em que um investidor de um negócio de médio porte deseja apenas injetar capital na sociedade, sem necessariamente participar de sua gestão, prescindido até mesmo do direito de voto.
Porém, com o advento do Código Civil, vigente desde 10 de janeiro de /2003, o assunto virou polêmica. E o Departamento de Registro de Comércio, atual Departamento de Registro Empresarial e Integração, editou as Instruções Normativas de números 10/2013 e 26/2015 que proíbem a emissão de quotas preferenciais em sociedades limitadas, vedação, a nosso ver, totalmente contrária à liberdade de contratar e à própria natureza e à função das sociedades limitadas. Proibição que ultrapassa, além de tudo, as próprias atribuições legais do registro empresarial, questão que pode até ser tema de outras reflexões, a exemplo de artigo publicado neste mesmo periódico em 5 de outubro do ano passado, de autoria de Armando Luiz Rovai, que tratava dos entraves causados por aquele mesmo departamento.
Por força dessas instruções normativas, as Juntas Comerciais dos Estados não têm aceitado o registro de contratos sociais de limitadas que prevejam a criação de quotas preferenciais que restrinjam, limitem ou proíbam o direito de voto. Em alguns casos até aceitam o registro de contratos com quotas que prevejam vantagens econômicas a determinados sócios, mas não aceitam registrar contratos que de alguma forma confiram direito de voto diverso a determinados sócios. A doutrina diverge, e os juristas não chegaram a um consenso sobre o tema.
Como advogados, muitas vezes nos vemos na situação de ter que ajustar os interesses dos sócios por meio de estratégias e instrumentos jurídicos que seriam desnecessários caso a lei fosse clara e permitisse a disposição do capital social de uma limitada em quotas de diferentes espécies – o que, na prática, como acima salientado, já ocorria frequentemente antes da edição do atual Código Civil. Na vida profissional tenho me deparado com vários casos nos quais as quotas preferenciais acomodariam legítimos interesses de gestores e investidores. Mas, ao longo prazo, parece haver solução para o tema.
Na Câmara dos Deputados Federais, a Emenda nº 192/2013 ao Projeto de Lei nº 1.572/2011, prevê expressamente a criação das quotas preferenciais, por meio das quais os sócios poderão estabelecer os direitos políticos e econômicos de seus titulares. A relevância desse tema foi reconhecida e ressaltada no relatório parcial que acolheu parte dessa emenda.
No Senado Federal, uma comissão de juristas de renome nacional apresentou relatório sobre o Projeto de Lei nº 487/2013, e emitiu parecer sobre a necessidade de aplicação das quotas preferenciais às sociedades limitadas, justamente para que a lei esteja em consonância com a flexibilidade de que esse tipo de sociedade sempre gozou no dia a dia empresarial.
As quotas preferenciais possibilitam e facilitam a formatação de sociedades que possam absorver investimentos, bem assim a formação de joint ventures. O fato de, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, tramitarem projetos de lei nos quais a emissão dessas quotas preferenciais tem previsão clara e inequívoca, só reforça que a matéria necessita de pacificação. E a expressa previsão legal que permita a criação das quotas preferenciais parece ser único caminho para tanto.
Só assim, o tipo societário mais difundido em nosso país poderá usufruir de um instrumento legítimo que permita a conjugação dos interesses e das necessidades dos sócios, administradores e investidores. Considerando a necessidade de investimentos de nosso país, especialmente no momento atual, instrumentos legítimos para estimulá-los são mais que bem-vindos. São, na verdade, urgentes.
por Ana Cláudia Teles Silva Bloisi é advogada e sócia da De Vivo Advocacia
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Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br
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