Estabelecer um diálogo com a área de fiscalização do Banco Central é o passo que falta para os auditores de balanços reduzirem a insegurança jurídica referente ao limite de sua responsabilidade em casos de erros ou negligência profissional.
Há o entendimento entre executivos da área, que preferem não ser identificados, de que é o conteúdo dos relatórios elaborados pelas comissões de inquérito do Banco Central que provocam os indesejados pedidos de arresto de bens de firmas do setor.
Os auditores entendem que devem ser responsabilizados caso fique evidenciado que o trabalho realizado foi feito inadequadamente, mas entendem que é desproporcional serem acusados em pé de igualdade - e chamados para a dividir a conta - com administradores que realmente fizeram as fraudes contábeis não identificadas.
Com o intuito de esclarecer como funciona o trabalho de auditoria e a extensão da sua responsabilidade, o Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon) contratou pareceres da especialistas na área e chamou órgãos reguladores para a discussão. O professor de contabilidade da FEA-USP Nelson Carvalho fez a análise técnica e o advogado Luiz Leonardo Cantidiano tratou do aspecto jurídico.
O início formal do debate ocorreu ontem, durante um painel no primeiro dia da 4ª Conferência Brasileira de Contabilidade e Auditoria Independente, que atraiu uma plateia de cerca de 500 profissionais do setor, em São Paulo.
Em linhas gerais, Carvalho procurou detalhar os processos do trabalho de auditoria - que envolve planejamento, verificação de sistemas de controles internos, questionamentos à administração e a realização de testes por amostragem - e demonstrar que o modelo não é a prova de falhas. "Auditoria não é seguradora e o relatório do auditor não é a apólice", afirmou o especialista.
Já Cantidiano enfatizou que a responsabilidade do auditor é subjetiva, que é a regra geral no Código Civil, em que danos causados por culpa ou dolo devem ser provados com a identificação do responsável e do nexo causal, que aponte a relação entre a ação ou omissão da parte e o dano. Ele ressaltou que fraudes contábeis decorrem de atos e omissões dos administradores da empresa, e não do auditor que chega depois, cabendo a ele apenas registrar em seus papéis de trabalho que foi diligente no serviço realizado.
Entre os reguladores que participaram do encontro, os representantes da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Ministério Público de São Paulo mostraram ter uma visão convergente com a dos profissionais do setor, ao menos na essência, de que o auditor tem um papel diferente de diretores, conselheiros e acionistas controladores de empresas e instituições financeiras que realizam fraudes contábeis.
Ana Novaes, diretora da CVM, procurou tranquilizar os auditores e deixou claro que a autarquia "assina embaixo" da visão apresentada por Carvalho e Cantidiano. "Para aqueles que estão com medo de perder a casa, posso dizer que fazendo seu trabalho direitinho, nosso procurador não vai fazer nada contra vocês", disse Ana.
A menção à casa dos profissionais se justifica pelo fato de os sócios das empresas de auditoria terem que responder com os bens próprios, de forma ilimitada, em processos que apurem sua responsabilidade por danos causados por causa do seu trabalho, seja por dolo ou culpa.
Relatórios de comissão de inquérito do BC são base legal para pedidos de arresto de bens de firmas do setor
A diretora da CVM procurou ressaltar que a autarquia tem usado de maneira ponderada seu poder de regular o trabalho de auditoria. Ela destacou que nos últimos cinco anos e meio, foram abertos 37 processos administrativos sancionadores pela CVM contra profissionais da área, sendo que 15 foram julgados e apenas um resultou em suspensão e proibição da prática pelo período de três anos. Dos outros casos julgados pela CVM, dois tiveram os réus absolvidos, enquanto nos demais as punições variaram de R$ 13,5 mil a R$ 500 mil.
A diretora da CVM concorda com a avaliação apresentada por Nelson Carvalho de que não é papel primário do auditor procurar a existência de fraudes. Mas ressaltou que existem casos de desvio que chamam a atenção de qualquer pessoa média, mesmo sem ser auditor, citando como exemplo o caso de uma empresa que, sem ressalva do auditor, reconheceu como ativo, no valor de centenas de milhões de reais, títulos emitidos no início do século passado pelo Estado do Rio, que reconhecia dever apenas R$ 2 mil.
Também presente no evento, o promotor de Justiça Eronides Aparecido dos Santos, do Ministério Público de São Paulo, disse que o órgão tem interesse em sair processando auditores, mas destacou que precisa seguir a lei.
O promotor atuou no caso do banco Cruzeiro do Sul e foi o primeiro a incluir os auditores, no caso a KPMG e a EY, no rol daqueles que deveriam ter os bens tornados indisponíveis, em conjunto com os ex-administradores acusados de praticar as fraudes. O juiz do caso, no entanto, preferiu ouvir a defesa das firmas antes de aceitar o pedido.
Neste ano, um novo caso teve desdobramento semelhante, envolvendo a KPMG e o serviço de auditoria do banco BVA.
Santos destacou que a base de atuação do MP foi o relatório da comissão de inquérito do Banco Central, que apontou responsabilidade dos auditores. E afirmou que o artigo 3º da Lei 9.447, de 1997, diz que, se o BC indicar em relatório que existe responsabilidade das firmas de auditoria, o MP deve pedir o arresto de bens dos envolvidos, conforme prevê o artigo 45 da Lei 6.024, de 1974.
Os auditores questionam, contudo, que não tem tido direito de defesa nos inquéritos do Banco Central. Procurado pela reportagem, o BC não se manifestou.
Embora reconheça que a lei não trata claramente disso, Eronides Aparecido dos Santos entende que seria do interesse dos auditores que houvesse uma inversão do ônus da prova em processos de responsabilidade contra os auditores independentes.
Dessa forma, segundo o promotor, o tratamento seria equivalente ao que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem definido em relação aos administradores e acionistas controladores de instituições financeiras.
A inversão do ônus da prova é colocada numa situação intermediária entre tratar os casos como responsabilidade subjetiva e a responsabilidade objetiva, em que se determina a culpa apenas pela função que alguém desempenha. "Esse modelo mantém o incentivo à realização de esforços para o auditor trabalhar corretamente e ao mesmo tempo dá a ele o direito de demonstrar que sua conduta não foi culpável", afirmou Santos.
O promotor argumenta ainda que é menos custoso e mais rápido ter o auditor produzindo as provas, já que ele é especialista na área, em comparação com o que seria feito por um terceiro sem esse conhecimento. "Não quero onerar o mercado. Mas ninguém melhor do que os senhores para trazer a prova", afirmou.
Santos disse que entende o problema de segurança jurídica que pode se causar ao obrigar uma empresa idônea a provar em juízo que é idônea. "Mas o fato é que temos um banco quebrado, uma fraude apurada pelo BC e um relatório do agente corregulador dizendo que a auditoria errou aqui e acolá. Nesse caso, com interesse público se sobrepõe ao privado, apresento a ação guarda-chuva com um pedido maior e o judiciário faz a depuração das responsabilidades depois", afirmou, lembrando que tem oito dias para apresentar a ação após receber o relatório.
Fonte: Valor Econômico
Via Seteco
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