A legislação brasileira sobre as sociedades já se tornou um cipoal cultivado em terreno pantanoso, onde ninguém entende ninguém. Isso pode afastar investidores tanto nacionais quanto estrangeiros. Mais uma asneira fazendária alimenta essa situação: a Instrução Normativa 1.470 de 30 de maio de 2014. Vamos tentar decifrá-la.
A Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, em seu capítulo I diz que regula as características e natureza da Companhia ou Sociedade Anônima.
Anônimo, como se vê em qualquer dicionário (Aurélio, por exemplo) é aquele que oculta seu nome. Mas o artigo 20 da lei que trata da sociedade anônima diz que suas ações devem ser obrigatoriamente nominativas!
Neste caso o anonimato brasileiro é onde todos se identificam ou expõem o seu nome! Eis aí nova versão do famoso Samba do Crioulo Doido ou, para sermos politicamente corretos como exigem pessoas engraçadas, o Samba do Afro-Descendente Mentalmente Prejudicado.
Perdoem-nos os leitores que exigem linguajar sério em assuntos tributários. Nossos legisladores e as autoridades tributárias procedem como se não fossem sérios. A recente Instrução Normativa 1.470 em seu intróito diz que:
O Secretário da Receita Federal do Brasil, no uso da atribuição que lhe confere o inciso III do art. 280 do Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal do Brasil, aprovado pela Portaria MF nº 203, de 14 de maio de 2012, e tendo em vista o disposto no inciso XXII do art. 37 da Constituição Federal, no § 2º do art. 113 e nos arts. 132, 135 e 199 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional (CTN), nos arts. 2º, 4º, 5º e 8º a 11 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, nos arts. 1º, 3º e 5º da Lei nº 5.614, de 5 de outubro de 1970, no inciso II do art. 37 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995, nos arts. 80 a 82 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, no art. 16 da Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999, nos arts. 2º e 6º da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, nos arts. 2º a 4º, 7º a 9º, 11 e 16 da Lei nº 11.598, de 3 de dezembro de 2007, e no art. 863 do Decreto nº 3.000, de 26 de março de 1999 - Regulamento do Imposto de Renda (RIR).
Parece ser emblemática a última abreviatura que traz: RIR. Tratar-se-ia a norma administrativa de hilariante anedota, não fosse mais uma aberração jurídica destinada a atrapalhar a vida das pessoas interessadas em desenvolver a economia.
A simples relação de todas as normas contidas no intróito dessa IN é por si só elaborada para ampliar a clientela de psiquiatras, já que enlouquece qualquer pessoa, especialmente os contadores.
A IN 1.470/2014 é ilegal, pois contraria toda a legislação que ela própria invoca para tentar legitimar o que é ilegítimo. Seu artigo 52 revoga diversos atos administrativos. Nesse balaio de gatos, revoga especialmente o item 4 da IN 179, de 30 de dezembro de 1987 que “dispõe sobre as normas de tributação das sociedades em conta de participação (SCP)”.
Esse item 4 diz que “não será exigida a inscrição da SCP no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda - CGC/MF.”
Vejamos de que tratam as normas em que se pretende fundamentar essa alucinação das autoridades fazendárias. Examinemo-las na ordem hierárquica, a mesma adotada na suposta justificação dessa coisa aí.
Constituição Federal
Ordena seu artigo 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”
Lei Complementar 123
Seu artigo 2º determina o “tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte” e em nenhum momento menciona o assunto aqui examinado. No artigo 8º assegura a essas empresas que não lhes serão aplicadas exigências não previstas em lei. No artigo 11 proíbe exigência que exceda o estrito limite dos requisitos pertinentes à essência do ato de registro, alteração ou baixa da empresa.
Código Tributário Nacional
Os artigos 132, 135 e 199 do CTN tratam, respectivamente, da fusão e incorporação de empresas; responsabilidade de sócios; e convênios entre União, estados e municípios.
Leis Ordinárias
A Lei 5.614/1970 dá poderes ao Ministro da Fazenda a respeito do CNPJ. Afirma que ele poderá delegar tais poderes ao Secretário da Receita Federal.
Lei 9.250/1998 — No artigo 37, inciso II, diz que Secretaria da Receita Federal pode fazer convênio com os estados, Distrito Federal e municípios, objetivando instituir cadastro único de contribuintes, em substituição aos cadastros federal, estaduais e municipais.
Lei 9.430/1996 — Nos artigos 80 a 82 cuida da falta de apresentação das declarações e demonstrativos (artigo 80), das empresas que não existam ou sua inscrição no CNPJ tenha sido declarada inapta (artigo 81) e o artigo 82 diz que não produzem efeitos os documentos emitidos por esta última.
Lei 9779/1999 — Seu artigo 16 diz que compete à Secretaria da Receita Federal dispor sobre as obrigações acessórias relativas aos impostos e contribuições por ela administrados, estabelecendo inclusive forma, prazo e condições para o seu cumprimento e o respectivo responsável.
Lei 10.522/2002 — O artigos 2° e 6° apenas cuidam do Cadin.
Lei 11.598/2007 — Trata só da Redesim (Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios).
Decreto 3.000/1999 — O artigo 863 cuida da extinção da pessoa jurídica.
Instruções revogadas
Ficam sem efeito: item 4 da IN 179/1987; IN 1.183/2011; IN 1.210/2011; IN 1.398/2013 e IN 1.429/2013.
Vamos decifrar essas coisas:
A IN 179, de 30/12/1987, “dispõe sobre as normas de tributação das sociedades em conta de participação (SCP)”. O item 4 diz que “não será exigida a inscrição da SCP no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda - CGC/MF”.
A IN 1.183, de 19/8/2001, no artigo 4º afirma que “todas as pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil, inclusive as equiparadas, estão obrigadas a inscrever no CNPJ cada um de seus estabelecimentos localizados no Brasil ou no exterior, antes do início de suas atividades”.
Essa mesma IN, no artigo 5º, inciso XVII, estabelece que são obrigados a se inscrever no CNPJ, também as outras entidades, no interesse da RFB ou dos convenentes.
A IN 1.398, de 16/9/2013, altera a 1.183 e diz que inscrição também é obrigatória para quem realize outras operações estabelecidas pela Coordenação-Geral de Gestão de Cadastros (Cocad) da RFB.
A IN 1.429, de 23/12/2013, não menciona as sociedades em conta de participação.
Todas essas “delegações de poderes” feitas ao ministro, atribuindo-lhe competência para eliminar ou instituir obrigações — ele resolveu “delegar” ao seu subordinado, o secretário da Receita Federal, 15 dias depois de recebê-la, através da Portaria Ministerial 118, de 28 de junho de 1984. Ou seja: um decreto-lei dá poderes de “legislador” a um ministro, que obviamente não foi eleito pelo povo e ele resolve “transferir” esse poder a um subordinado!
A Constituição Federal sempre foi muito clara no sentido de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, se não em virtude de lei”.
O artigo 7º do CTN determina que a competência tributária é indelegável. Isso, obviamente, não se aplica apenas à obrigação principal, que é uma obrigação de dar, ou seja, de pagar o tributo, como também é aplicável às obrigações de fazer, que são as acessórias. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.296/PE:
“A nova Constituição da República revelou-se extremamente fiel ao postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder a delegação legislativa externa em favor do Poder Executivo...Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar.”
O princípio da legalidade é absoluto e a administração pública não pode dele afastar-se em nenhuma hipótese, como se vê do artigo 37 do texto constitucional. Assim, obrigação criada por ato administrativo é absolutamente ilegal.
Além disso, o Código Civil em seus artigos 991 e seguintes define as SCP sem que as obrigue à identificação do sócio oculto. Ainda que apurem seus resultados mediante contabilidade, não possuem personalidade jurídica.
O artigo 52 da IN 1.470 pode revogar o item 4 da IN 179, de 30 de dezembro de 87, mas não pode legitimar obrigação que na sua origem já era ilegal. Um erro não corrige outro. Quando um ato ilegal revoga um outro ato igualmente ilegal, isso não confere a qualquer deles a legalidade que nunca possuíram.
Há quem diga que esta coluna “pega pesado”. Na verdade quem assim age é o poder público que nos impõe carga tributária elevada sem retorno adequado, burocracia insuportável e normas instáveis, obscuras, inseguras, que mudam e se revogam a todo instante, transformando a administração tributária em instituição psiquiátrica!
Todos esses absurdos e abusos vão gerar contenciosos que a ninguém aproveitam. Não se constrói dessa forma um país que precisa crescer e necessita de investimentos que a cada momento se assustam com essas loucuras todas.
por Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Conjur
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