Outro capítulo da cada vez mais grave beligerância fiscal que assola a federação brasileira promete complicar ainda mais a vida de milhões de contribuintes, sempre as maiores vítimas da guerra fiscal entre os estados-membros: a absurda cobrança do ICMS, pelo Estado de destino, sobre mercadorias adquiridas através de vendas on-line por não contribuintes do imposto estadual.
Os estados do Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e Sergipe e o Distrito Federal, assinaram o Protocolo ICMS 21, de 1° de abril de 2011, que autoriza a cobrança do ICMS sobre operação interestadual nas compras realizadas por meio da Internet, telemarketing ou show room.
A cobrança se dá da seguinte forma: o remetente das mercadorias, na qualidade de substituto tributário, será responsável pela retenção e recolhimento, em favor do estado destinatário, da parcela do ICMS devida na operação interestadual em que o consumidor final adquire mercadoria ou bem de forma não presencial por meio da internet.
O imposto será calculado através da aplicação da alíquota interna, sobre o valor da respectiva operação, deduzindo-se o valor equivalente aos percentuais aplicados sobre a base de cálculo utilizada para cobrança do imposto devido na origem. O tributo devido ao estado de origem da mercadoria, relativo à obrigação própria do remetente, é calculado com base na alíquota interestadual (basicamente como é feito há tempos o cálculo do diferencial de alíquota do ICMS).
A cobrança em comento é absolutamente inconstitucional, por uma razão bastante simples: desrespeita de forma flagrante a sistemática de tributação do ICMS prevista na Constituição Federal, onde o imposto é devido ao estado de origem das mercadorias, e não no destino. Nas operações interestaduais, caso o adquirente não seja contribuinte do imposto (o que é o caso das pessoas físicas que adquirem produtos pela internet), será adotada a alíquota interna do estado remetente, ou seja, nada será devido ao estado destinatário. Apenas haverá a repartição do valor cobrado a título de ICMS no caso do adquirente ser contribuinte do imposto. Contudo, pretende-se criar com o Protocolo ICMS 21/2011 um “novo” diferencial de alíquota, à revelia do disposto na Constituição Federal, o que não se admite.
Veja-se que nos consideranda do Protocolo ICMS 21/2011, justifica-se a cobrança com base no aumento da modalidade de comércio eletrônico, que teria “deslocado as operações comerciais com consumidor final, não contribuintes de ICMS”, e que “a crescente mudança do comércio convencional para essa modalidade, persistindo a tributação apenas na origem, não se coadunaria com a essência do principal imposto estadual”. Em outras palavras: alguns estados se sentiram prejudicados com o aumento das vendas pela internet, e apesar de reconhecerem que não há previsão constitucional, decidiram pura e simplesmente ignorar a Lei Maior e, basicamente, “fazer justiça com as próprias mãos”!
Ora, admitir que os estados-membros passem a desrespeitar a Constituição Federal por acharem “injusta” ou “ultrapassada” a sistemática vigente de tributação do ICMS, em face da atual conjuntura de mercado, é abrir caminho para o caos institucional e a implosão da segurança das relações jurídicas, incompatíveis com um Estado Democrático de Direito.
A esperada reforma no sistema tributário nacional em trâmite no Congresso, que dentre outras disposições prevê a cobrança do ICMS no destino, onde o direito ao imposto sobre as vendas interestaduais ficaria com o Estado consumidor, poderia acabar com os inúmeros efeitos nefastos da guerra fiscal, como a cobrança em tela. Contudo, enquanto não há uma alteração da Carta Magna mediante emenda, o texto constitucional deve ser respeitado, sendo irrelevante o que os Estados “acham” acerca da “essência” do ICMS.
Felizmente, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, já possui decisão contrária a esta nova — e arbitrária — modalidade de cobrança. Nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.565, proposta pela OAB Federal, o Pleno do STF suspendeu a eficácia de Lei do Estado do Piauí, que prevê cobrança nos moldes ora explicitados. Segundo o ministro Relator, Joaquim Barbosa, “a alteração pretendida [pelo Estado] depende de verdadeira reforma tributária, que não pode ser realizada unilateralmente por cada ente político da federação”. Espera-se que a sociedade civil brasileira, através de suas instituições, permaneça lutando contra mais esse abuso tributário.
por Leonardo Alcantarino Menescal é advogado, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará, gerente da área de tributos estaduais e municipais do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro e Scaff – Advogados.
Fonte: Conjur
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