Questão que tem surgido com cada vez mais frequência nos escritórios de advocacia criminal, consistente na instauração de investigações policiais e mesmo de ações penais contra empresários em razão do não recolhimento do ICMS-ST regularmente declarado, revela uma face bastante cruel dos efeitos da crise econômica que vem sendo enfrentada pelo país.
Muitas empresas, frente às seguidas dificuldades de caixa numa economia insistentemente recessiva, viram-se forçadas a deixar de recolher aos cofres públicos o ICMS-ST devidamente apurado, motivando o Estado a adotar, por meio do Ministério Público (MP), os mecanismos processuais penais, com toda a sua carga coercitiva, para acusar seus responsáveis de terem praticado o delito tipificado no artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90, que incrimina a conduta de "deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos", cominando-lhe pena de seis meses a dois anos de detenção e multa.
Trata-se de mero inadimplemento de uma dívida fiscal própria, o que não justifica uma persecução penal
Contudo, parece tratar-se, tais acusações, de equívoco interpretativo em relação à tipologia do crime em questão, derivada, inclusive, da pouca familiaridade do MP com as estruturas próprias da apuração e do pagamento do ICMS-ST, que não diz respeito a nenhuma cobrança ou desconto de tributos de terceiros.
O débito decorrente da apuração do ICMS-ST configura dívida que é própria da empresa, enquanto parte do polo passivo de uma obrigação tributária, de forma a não estarem presentes as circunstâncias elementares do referido delito, que só se configuram quando há desconto ou cobrança do tributo de terceiro.
É certo que a Lei Complementar nº 87/96, que regulamenta o ICMS dos Estados e do Distrito Federal, em nenhum momento obriga a empresa a cobrar tal tributo do restante dos integrantes da cadeia produtiva, mas tão somente lhe impõe a responsabilidade pelo seu pagamento.
O que se repassa ao comprador da mercadoria é um mero ônus econômico, decorrente da composição do seu preço final. O tributo, nesta hipótese, compõe o preço final do produto tanto quanto o frete, a mão de obra, a energia elétrica, entre outros gastos com matérias-primas e insumos. O consumidor final, portanto, não tem o dever de recolher o valor do ICMS, somente paga o preço que é formado inclusive com o custo tributário nele embutido. A empresa é, portanto, a única contribuinte responsável pelo recolhimento do tributo.
Com efeito, a única diferença entre o ICMS e outros elementos incluídos no preço final consiste no fato de que é a própria legislação tributária quem obriga o expedidor da nota fiscal a destacar o valor do tributo embutido no preço final do produto (no caso do ICMS no Estado de São Paulo, por exemplo, o artigo 67, parágrafo 3º, da Lei Estadual nº 6.374/89).
Assim, é patente que, ao agir de tal modo, o empresário não deixou de recolher o ICMS devido por terceiro, suposto contribuinte, que teria sido por ele recebido, e do qual seria suposto depositário, mas apenas deixou de recolher o ICMS devido por si próprio, seja pelo entendimento de que a substituição tributária atribuiu-lhe o encargo de contribuinte, seja pelo entendimento de que, independente da classificação que lhe queira dar, é o empresário o único que foi alçado, pela lei, ao polo passivo da obrigação tributária. Tal entendimento, inclusive, possui precedentes favoráveis em nossas Cortes, como se denota da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp nº 1.632.556/SC, Sexta Turma) e do Tribunal de Justiça de São Paulo (Ap. Crim. nº 990.10.246077-0, 4ª CCrim, dentre outros).
Ademais, tratando-se de ICMS-ST declarado, resta demonstrada a inexistência da utilização de qualquer ardil ou elemento fraudulento por parte do empresário. Tudo a demonstrar tratar-se do mero inadimplemento de uma dívida fiscal própria, inclusive já declarada ao Fisco desde o início, o que não justifica, sob qualquer prisma, uma persecução penal.
Leonardo Massud, Leandro Sarcedo e Ricardo Losinskas Hachul são, respectivamente, professor de direito penal da PUC-SP, doutor em direito penal pela USP e advogado graduado pela USP
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Por Leonardo Massud, Leandro Sarcedo e Ricardo L. Hachul
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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