Embora já admitido doutrinária e jurisprudencialmente muito antes, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica passou a ser albergado legalmente no direito do Brasileiro, no artigo 28 do CDC. Depois disso outras normas se seguiram, como o art. 34 da lei 12529/2011, e, naturalmente, sua consagração no art. 50 do Código Civil de 2002.
O novo CPC, ao disciplinar o incidente, deixa manifesta a intenção de evitar o denominado “contraditório diferido”, permitindo o respeito ao contraditório e à ampla defesa antes da decisão que acolherá, ou não, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica. Claro que tal circunstância não impede de forma peremptória a adoção do contraditório diferido, porém restringe tais hipóteses às situações de tutela antecipatória previstas legalmente.
Vale notar que a inserção do art. 855-A na CLT após a reforma não modifica significativamente o incidente, fazendo inclusive expressa alusão aos arts. 133 a 137, do CPC (técnica legislativa sempre criticável porque qualquer alteração nos dispositivos referidos pode prejudicar o cruzamento das referências), modificando, como se verá na sequência, apenas alguns procedimentos para adapta-lo em especial às normas e princípios dos recursos no processo do trabalho.
É evidente que além da necessidade de alguma adaptação do instituto ao processo do trabalho, a inclusão através da reforma visa tornar obrigatória a observância do incidente também no processo do trabalho. Mesmo antes da reforma já era defensável a ideia de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica era aplicável no processo do trabalho. Porém, nada impediria que houvesse alguma resistência quanto à aplicação subsidiária do CPC neste particular, o que a reforma visa espancar.
Dessa forma, assim como no processo civil, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, na forma do art. 133, do CPC.
A previsão de iniciativa da parte ou do Ministério Público é compatível com a restrição ao impulso oficial em decorrência da reforma, e também sepulta questão anterior em face de entendimento no sentido de que a desconsideração poderia ser declarada de ofício, mesmo fora do processo do trabalho.
Pelo disposto no art. 134, do CPC, é possível a utilização do incidente tanto na fase de conhecimento, quando no cumprimento de sentença ou de execução de título executivo extrajudicial, destacando o parágrafo segundo do mesmo dispositivo ser a instauração desnecessária se a desconsideração da personalidade jurídica já fora requerida desde a petição inicial, o que evidencia a possibilidade de que os sócios possam ser incluídos na demanda desde a petição inicial, desde que, naturalmente seja requerida a desconsideração da personalidade jurídica para justificar sua inclusão, e, naturalmente, indicados os fundamentos da causa de pedir.
A opção pelo pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa desde a petição inicial, contudo, deve ser adotada com cautela, por dois motivos em especial. O primeiro deles porque a instrução processual trabalhista, como regra, já abrange uma quantidade significativa de fatos a serem instruídos, não sendo raros que se resolvam as demandas pela improcedência das pretensões em especial em razão de carência de provas. O risco que a parte corre nesse caso é que a inclusão seja precipitada e se perca no meio de outros fatos e institutos a serem apreciados e produzidas prova a respeito, redundando numa sentença de improcedência ao final que fará coisa julgada e inviabilizará o manejo do incidente em fase posterior.
Se isso não bastasse, quer na fase de conhecimento, quer mesmo na de execução, a pretensão naturalmente implicará efeitos para fins de honorários advocatícios.
Levando isso em conta, e ainda o risco de uma condenação em honorários e uma decisão de improcedência quanto aos sócios incluídos na petição inicial, como regra a opção por esta estratégia parece bastante temerária, a não ser que haja preocupação real da parte autora no sentido de que não apenas a sociedade ré seria insolvente, como de que os sócios estariam se desfazendo de patrimônio em potencial fraude à eventual execução.
Isso porque no que diz respeito ao fato de que o momento da citação do sócio ou da pessoa jurídica ser a pedra de toque divisória para fins de caracterização de eventual fraude à execução pairam poucas dúvidas. Divirjo, contudo, do entendimento de Guilherme Amaral quando afirma que a desconsideração não implica presunção de fraude quanto às alienações havidas desde a citação[1]. Acompanho Cássio Scarpinella Bueno quando aponta que “o art. 137, neste contexto, aponta uma das consequências do acolhimento do pedido, a de reconhecer a ineficácia da alienação ou da oneração de bens em relação àquele que formulou o pedido. Trata-se, pois, de um caso de fraude à execução (art. 792, V). Coerentemente - e de maneira enérgica, não nego - a fraude verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade foi desconsiderada (art. 792, § 3o)"[2].
Mesmo quando a inclusão dos sócios seja feita em momentos posterior ao dos negócios entabulados é possível a anulação dos mesmos mediante ação pauliana, mas é claro que o esforço nesse caso é muito maior do que o decorrente da presunção relativa de fraude sobre os negócios realizados pelo sócio após a citação.
O art. 134, § 4º prevê que o requerimento de desconsideração, seja na petição inicial, seja através dos incidentes, deverá demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais para a desconsideração, indicando a existência de um juízo de admissibilidade nesse caso. Mas como ressalta Guilherme Rizzo Amaral, “o juízo de admissibilidade do incidente não será um juízo de certeza, nem mesmo de preponderância de provas, mas, sim, de verossimilhança das alegações do requerente"[3].
Obviamente que a decisão poderá ocorrer em dois momentos diferentes, caso a desconsideração seja requerida na petição inicial, ou como incidente no curso do processo. No primeiro caso, será decidida, ao final da fase de conhecimento, com a sentença. Nos demais, exigirá uma decisão interlocutória para resolver o incidente.
Se forem incluídos desde o começo, serão citados e figurarão na relação processual após sua citação. No caso de incidente ulterior, também serão citados, passando a integrar o polo passivo após o ato citatório.
A citação no incidente é necessária porque como regra até a interposição do incidente as pessoas nele inseridas, sejam pessoas físicas ou jurídicas, ainda ostentam a condição de terceiros no processo, passando a integrar como parte a relação processual após a citação. Entendo que essa determinação sepulta em definitivo a discussão a respeito da condição de parte dos sócios cuja desconsideração se requer, afastando, assim, a tese de que a desconsideração não implicaria sua inclusão no polo passivo.
Tanto o CPC, quanto o art. 855-A inserido pela reforma, preveem que a decisão que julga o incidente de desconsideração é interlocutória. Contudo, aqui surge a primeira divergência entre os procedimentos, já que no processo civil a previsão legal é de que a decisão interlocutória em tela poderia ser desafiada por agravo de instrumento, enquanto no processo do trabalho manteve-se o princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias na fase de conhecimento, não cabendo recurso de imediato, consoante o incido I do § 1º do art. 855-A. Da mesma forma, disciplinou-se de forma diversa durante a fase de execução, de forma a se observar o recurso mediante agravo de petição, independentemente de garantia do juízo.
Tanto no CPC quanto no processo do trabalho na forma prevista pela reforma a instauração do incidente implica a suspensão do processo. Essa opção legislativa é criticável em ambos os casos.
Como a responsabilidade dos sócios é secundária nesse caso, não existe motivo razoável para que o curso da demanda seja suspenso até que se decida o incidente em tela. Ora, suponha-se que o incidente de desconsideração seja postulado em fase de execução definitiva já em trâmite perante a sociedade que é devedora principal. Se a norma legal não determinasse a suspensão do processo, nada impediria que se prosseguissem as buscas patrimoniais quanto ao devedor principal e eventualmente elas fossem encontradas e satisfizessem a dívida, tornando inócua, nesse cenário, a inclusão de responsáveis secundários.
Isso não implica que não haveria interesse jurídico em buscar a responsabilização de sócios ou administradores se o responsável primário é solvente e pode cumprir a obrigação.
Primeiro porque uma condição da ação tem que ser passível de aferição e exame em abstrato e não dependente do resultado do mérito de uma decisão, e menos ainda da condição econômica ou financeira de algum litisconsorte. Além disso, tornaria desprovida de sentido a possibilidade de se pretender a desconsideração da personalidade jurídica desde a petição inicial, já que a capacidade da pessoa jurídica de solver uma dívida dependeria, em primeiro lugar, do reconhecimento da dívida; em segundo lugar, da dimensão desta dívida quando confrontada com seu patrimônio e; em terceiro lugar, da situação econômica e financeira da empresa por ocasião da tentativa de cumprimento voluntário ou forçado da sentença. O que é admissível, ao invés, é que se considere prejudicada a discussão relativa à desconsideração da personalidade jurídica quanto não houver condenação da pessoa jurídica ou a mesma já tiver, pelo menos, garantido a execução.
O art. 134, § 3o, do CPC, estabelece literalmente que o incidente implica a suspensão do processo, razão pela qual terá que ser decidido antes da prática de quaisquer outros atos, entre eles as razões finais que antecedem a sentença.
Mesmo que não soe razoável ou lógico juridicamente a suspensão do feito para o processamento do incidente, a verdade é que a suspensão do processo é um direito da parte que integra a demanda, e nesse sentido tanto o devedor principal, quanto os responsáveis secundários poderiam naturalmente se opor a qualquer ato de prosseguimento do processo enquanto não resolvida a questão incidental suspensiva.
Uma vez acolhido o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, os sócios ou administradores passam a integrar a relação processual, “sofrendo efeitos em sua esfera de direitos e contrapondo-se dialeticamente ao autor, de forma que se constituirá em uma das partes da relação processual”[4].
No processo civil a questão é especialmente tormentosa porque como o CPC estabelece que a decisão que aprecia o incidente é uma decisão interlocutória, que desafia agravo de instrumento, poder-se-ia discutir se ocorre ou não preclusão a respeito da defesa a ser exercida em sede de execução caso os sócios indicados não manejem o agravo de instrumento no momento oportuno.
No processo do trabalho, contudo, a solução para a questão se torna muito facilitada em razão da disciplina recursal inserida pelo texto da reforma.
Quanto ao processo na fase de conhecimento, não haveria qualquer preclusão porque a decisão do incidente não seria recorrível de imediato, cabendo às partes interessadas questionarem sua inclusão no polo passivo da demanda por ocasião de eventual interposição de recurso ordinário, inexistindo no processo do trabalho a figura do agravo retido, e não se prestando o agravo de instrumento trabalhista para a finalidade de recurso de decisões interlocutórias.
Mais importante, contudo, é a disciplina quanto ao incidente na fase de cumprimente de sentença, em que, como regra, surge de forma mais frequente e intensa.
Isso porque, como foi destacado anteriormente, a decisão é interlocutória, porém desafia agravo de petição, o que evidencia tratar-se de uma decisão terminativa quanto ao tema. Trata-se de uma modificação significativa em face de jurisprudência que vinha admitindo uma plêiade de mecanismos de defesa para discutir a mesma questão, tais como a adoção de exceção de pré-executividade, seguida potencialmente por um Embargos de Terceiros, além de embargos à execução após todos esses incidentes para, novamente, discutir a inclusão do sócio no polo passivo. E isso tudo para não entrar nas hipóteses em que a parte ainda maneja ação anulatória para a mesma finalidade.
A reforma racionaliza extremamente o procedimento e estabelece um único mecanismo adequado e cabível de defesa, que é a manifestação dos sócios no prazo de 15 dias contra o pedido formulado pela parte Autora, assim como define um único recurso adequado e cabível contra a decisão que julgar o incidente, que é o agravo de petição. É dizer: pela sistemática ora adotada, não há mais espaço quer para a adoção de embargos de terceiros, quer para a discussão posterior via embargos à execução, já que com a citação dos sócios no incidente eles já passam a integrar a relação processual, e como a decisão, embora interlocutória, é terminativa, desafiando agravo de petição, é insuscetível de rediscussão em sede de embargos à execução.
Uma última questão procedimental pode surgir no que diz respeito à eventual adoção do “incidente” por via de ação autônoma. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica trata-se de um incidente processual, e não de um processo incidente, de forma a que a manifesta intenção do legislador é de que ele seja promovido nos próprios autos que lhe deram origem.
Pelo princípio da instrumentalidade processual, parece claro que a adoção da via autônoma para formular o requerimento não traduz qualquer prejuízo ao seu processamento, nada impedindo até que para fins de racionalização de atos processuais o incidente seja processado autonomamente e depois juntados seus atos pertinentes e decisórios aos autos principais, em rigorosa analogia ao procedimento observado quanto aos embargos de terceiros. Alternativamente a ação autônoma pode ser extinta sem julgamento do mérito mas ainda assim aproveitada sua petição inicial como requerimento de instauração do incidente na ação originária, sendo que em todas essas hipóteses a finalidade do incidente parece claramente respeitada e atingida.
[1] AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 213
[2] BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 186
[3] AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. P. 210
[4] RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo. São Paulo: Malheiros, 2016. P. 245
Roberto Dala Barba Filho é juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região e mestre em Direito pela PUC-PR.
Fonte: Conjur
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