Em 29 de dezembro de 2017, foi publicada a IN 1.781/2017, que dispõe sobre o regime aduaneiro especial de utilização econômica destinado a bens a serem utilizados nas atividades de exploração, desenvolvimento e produção das jazidas de petróleo e de gás natural. O “Repetro-SPED”, como foi batizado, tem o mesmo objetivo do antigo “Repetro”, regulado pela IN 1.415/2013, que é atrair investimentos internacionais para o Brasil por meio da desoneração da carga tributária federal das empresas que atuam na indústria de óleo e gás. Dentre as principais novidades, o Repetro-SPED condiciona a sua utilização à apresentação de escrituração fiscal digital e traz benefícios como a desoneração de aquisições no mercado interno e de importações de bens para permanência definitiva no país.
Com o mesmo propósito, os estados e o DF também editaram regras de ICMS para acompanhar o Repetro-SPED, notadamente o Convênio ICMS 03/18, em vigor desde fevereiro de 2018, segundo o qual os estados e o Distrito Federal estão autorizados resumidamente a:
(ii) isentar o ICMS incidente na importação de bens ou mercadorias temporários para aplicação nas atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural definidas pela Lei 9.478/97, sob o amparo do Repetro;
(iii) isentar o ICMS incidente nas operações de exportação, ainda que sem saída do território nacional, ou de venda a pessoa sediada no país, dentro ou fora do estado onde se localiza o fabricante, dos bens e mercadorias temporários ou permanentes fabricados no país que venham a ser, respectivamente, admitidos ou adquiridos nos termos dos itens anteriores, bem como as operações antecedentes, assim consideradas todas as operações de fornecimento de bens ou mercadorias realizadas pelos fornecedores e respectivos subfornecedores dos fabricantes nacionais de bens ou mercadorias destinadas às atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural.
Por sua vez, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro promulgou o Decreto 46.233/2018 para incluir o estado nas regras do novo Repetro-SPED e do Convênio ICMS 03/18.
Contudo, a cláusula 9ª, parágrafo 1º, do Convênio ICMS 03/18, reproduzida pelo artigo 8º, parágrafo 2º, do Decreto 46.233/2018, dispõe que, para aderir aos benefícios do ICMS, o contribuinte deve desistir de qualquer ação ou recurso judicial ou administrativo que conteste a incidência do ICMS sobre bens importados sob admissão temporária, referente a fatos geradores anteriores ao início da vigência do convênio.
De pronto, são duas as inconstitucionalidades destacáveis no Convênio ICMS 03/18 e, consequentemente, no Decreto 46.233/2018.
Em primeiro lugar, referidas normas se referem à isenção quando, na verdade, se está diante de uma hipótese de não incidência tributária constitucionalmente qualificada. Na isenção, o legislador decide não tributar fatos econômicos que estão dentro do seu poder tributário. Na não incidência tributária constitucionalmente qualificada, o constituinte decide que alguns fatos econômicos não serão tributados e os retira do poder tributário dos entes federados. Ora, após o Supremo Tribunal Federal ter definido no RE 540.829/SP[1] que o ICMS só incide quando houver eventual transferência do domínio, chega a afrontar o princípio da moralidade administrativa que o Convênio ICMS 03/18 prescreva que o ICMS é “isento” sobre bens importados em admissão temporária, situação onde claramente não há transferência de domínio dos bens.
Em segundo lugar, para que se obtenha a “isenção” do ICMS incidente sobre os bens importados sob admissão temporária, referidas normas exigem que o contribuinte desista de qualquer ação ou recurso, judicial ou administrativo, que conteste a incidência do ICMS sobre a importação dos bens ou mercadorias sem transferência da propriedade referente aos fatos geradores ocorridos anteriormente ao início da vigência da nova regulação, em manifesta violação ao artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Ou seja, a administração impõe ao contribuinte o ônus de ter de pagar um ICMS manifestamente indevido sobre bens importados antes da vigência do Convênio ICMS 03/18. Nessa hipótese, aquele contribuinte que obteve um provimento judicial declarando que o ICMS não incide sobre a importação de bens em admissão temporária fica obrigado a abrir mão desse direito para poder aderir à “isenção” “concedida” pelos estados. Mais do que isso, o contribuinte que desistiu da respectiva medida administrativa e judicial ficará sujeito à cobrança do imposto com acréscimos legais e, infelizmente, a despeito da Súmula 323 do STF[2], poderá ainda sofrer entraves no momento do desembaraço aduaneiro.
É importante afastar, ainda, a ideia de que os regimes especiais são benesses outorgadas pelos estados e, por terem natureza facultativa, os contribuintes não são obrigados à adesão e tampouco à desistência de suas ações ou recursos, judiciais ou administrativos. Essa linha de raciocínio, chancelada pelos tribunais superiores, não é aplicável à hipótese porque não se está a tratar, aqui, de uma benesse concedida pelos estados aos contribuintes, mas, como visto, de verdadeira não incidência tributária de cunho constitucional. Se os estados não têm sequer poder de instituir o ICMS sobre aquilo que não é fato gerador, não podem muito menos isentar aquilo que não está sob a sua competência tributária.
Portanto, é inadmissível que o Convênio ICMS 03/18 viole (i) o direito legítimo dos contribuintes de não pagar ICMS nas aquisições de bens sob admissão temporária, pois se trata de não incidência tributária estabelecida pelo próprio artigo 155, inciso II, da CF/88; e (ii) o direito fundamental de os contribuintes questionarem a incidência do ICMS sobre as aquisições de bens em admissão temporária anteriormente ao início de sua vigência, haja vista que o acesso ao Poder Judiciário é direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXV, da CF/88.
Por todo o exposto, não existindo dúvidas quanto às inconstitucionalidades do Convênio ICMS 03/18, resta aos contribuintes, mais que as medidas judiciais cabíveis, muita coragem e persistência para seguir empreendendo no país.
[1] STF, Tribunal Pleno, relator para acórdão: ministro Luiz Fux, DJe 17/11/2014.
[2] Súmula 323/STF: "É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos".
Carlos Renato Vieira é advogado no Xavier, Duque Estrada, Emery e Denardi Associados e doutorando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Gabriel Bez Batti é advogado no Xavier, Duque Estrada, Emery e Denardi Associados, mestre (LLM) em Direito Tributário Internacional pela WU Vienna e pós-graduado pela FGV.
Fonte: Conjur
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