“Quem furta a minha bolsa me desfalca de um pouco de dinheiro. É alguma coisa e é nada. Assim como era meu passa a ser de outro, após ter sido de mil outros. Mas o que me subtrai o meu bom nome defrauda-me de um bem que a ele não enriquece e a mim me torna totalmente pobre.”
(Willian Shakespeare, em Otelo, o Mouro de Veneza, palavras de Iago a Otelo).
Quero agradecer aos leitores, um contabilista e um auditor da Receita Federal, que recentemente trouxeram para o espaço desta revista eletrônica opiniões totalmente divergentes sobre os problemas que atingem as respectivas atividades.
Claro que existe corrupção no país. Trata-se de crime gravíssimo. De tempos em tempos encontramos tais casos amplamente noticiados. Surgem as “máfias” do ISS, do “Habite-se”, das “notas frias” e das “consultorias”, em vários casos com prisões, demissões a bem do serviço público, bloqueio de bens dos meliantes, e haja espaço na mídia para tanta lama.
Quando, há quase 20 anos, fui conselheiro e honrado com os cargos de corregedor e depois presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, verifiquei que na advocacia é assim como na vida canina: notícia é quando o advogado vira bandido.
Afinal, se o profissional cumpre suas obrigações corretamente e observa a ética, não merece ser notícia: apenas cumpre o juramento de honra que fez ao receber a carteira da OAB:
“Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.
Em 2000, na gestão do nosso saudoso presidente Rubens Approbato Machado, ao receber o cargo de corregedor do TED, deparei-me com um comentário que um cidadão fez na TV Globo, dizendo-se vítima de um advogado malandro.
Apurado o caso, tratava-se de um cidadão malandro, que mentia para não pagar os honorários devidos e contratados.
Como na matéria apareceu uma injusta generalização (“ora, advogados são muito espertos”), foi feita uma pesquisa nacional sobre os processos éticos. Resultado: os profissionais punidos por faltas éticas eram 2,5% dos inscritos. Ou seja: 97,5% dos advogados honravam o juramento.
Afirma o auditor que o auto de infração traz “todos os elementos de prova nele contidos, indispensáveis à comprovação do ilícito fiscal”, o que seria base para as denúncias ofertadas pelo Ministério Público. Diz ainda que o Decreto 70.235, de 1972, teria “status” de lei ordinária federal. Não existe isso em nenhum decreto. Ele apenas regulamentou a Lei 9.784 de 29/1/1999.
Não existem elementos de prova em autos de infração. Se existissem, inquéritos policiais não seriam necessários nesses casos, pois investigação de crimes (inclusive de natureza tributária) cabe à polícia (Civil ou Federal).
Enorme quantidade de autos baseiam-se em meros indícios ou presunções, como já comentei nesta coluna em 21 de julho de 2014, com o título "Defesa do contribuinte nos autos de infração do Fisco".
Sobre corrupção, os dois comentaristas, podem ler a de 2 de março de 2015, sobre "Poder, corrupção, mentiras e algumas perguntas".
Quando qualquer profissional (advogados, contabilistas, servidores públicos) trabalha corretamente, o faz para merecer seus pagamentos e, principalmente, ter a certeza de que seus familiares não se envergonharão do parentesco. Isso não é notícia.
Em mais de 40 anos de advocacia, nunca um servidor público (na área fiscal, jurídica ou policial) me apresentou proposta indecente. Dois ou três insinuaram a possibilidade, que fingi não entender, mudando de assunto.
Escrevi em 6 de fevereiro deste ano, sob o título "Crimes contra a ordem tributária: abusos e fantasias do Fisco", ao comentar a Medida Provisória 765, que criou o "Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira", fixado conforme indicadores de desempenho e metas a serem estabelecidos através de um "planejamento estratégico" do Fisco. Nessa ocasião, afirmei:
“Se o contribuinte chega a ser indiciado pelo crime de sonegação fiscal, hoje chamado de “contra a ordem tributária” , muitas vezes ocorrem denúncias em que uma pessoa é processada sem ter efetivamente participado de qualquer ato ilícito, mas apenas por ser ou ter sido sócio de uma empresa”.
Na semana passada, numa comarca da região metropolitana da capital paulista, por fim terminou processo crime contra diretores de uma indústria acusada de créditos indevidos de ICMS por aquisição de matérias-primas com uso de documentos “inidôneos”.
A origem de tudo foi um auto de infração equivocado. A defesa administrativa não foi bem-sucedida, e a suposta dívida foi inscrita. Iniciada a ação penal, por cerca de cinco anos os acusados se defenderam.
Pouco antes da audiência de instrução e julgamento, o Ministério Público pediu a absolvição sumária dos réus, por reconhecer a ausência do ilícito penal. Um deles, idoso, sofreu a injusta acusação, tendo sua saúde prejudicada. A empresa teve custos com as defesas.
A empresa e os acusados, em tese, podem acionar o Estado pelos prejuízos materiais e morais que sofreram. Ainda estão no prazo.
Todavia, não se pode, de forma alguma, atribuir ao agente fiscal procedimento ilegal. Se os auditores federais possuem metas, premiáveis pela MP 765, os estaduais e municipais sofrem pressões ainda piores.
Mas, como Millôr afirmou, “nada está tão ruim que não possa piorar”.
Para que se previnam ante o que vem por aí, vejam os leitores o Projeto de Lei Complementar 25/2017, que está na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, de autoria do governador do Estado, encaminhado no dia 16 de setembro, em regime de urgência.
Sua ementa diz que se pretende instituir um “Programa de Estímulo à Conformidade Tributária”, que a Secretaria da Fazenda carinhosamente apelidou de “nos conformes”.
Assim que me recuperar do susto, talvez consiga analisá-lo tecnicamente, nem que tenha que consultar um psiquiatra.
Os servidores públicos da área tributária recebem vencimentos razoáveis, possuem garantias que não existem para os da iniciativa privada, como aposentadoria integral e a segurança da estabilidade. Isso já é suficiente para obrigá-los a serem eficientes e produtivos no que fazem. Sei que a esmagadora maioria dos servidores públicos assim se comportam.
Corrupção é uma via de duas mãos, com bandidos em ambos os lados. Ninguém é obrigado a propor ou aceitar a prática de crime.
Mas já fui mais de uma vez convidado por um candidato a cliente a tentar fazer “acordo” ilícito, o que não aceitei, e por essa razão o quase cliente escafedeu-se.
Tenho três filhas e dois netos. Não posso permitir que se envergonhem da ascendência. Simples assim. O que eu desejava ter já tenho: casa e escritório próprios, adquiridos e pagos com trabalho. Afinal, como ensinou Kant, a única finalidade da criatura humana é ser feliz.
Fico apenas surpreso por não ter notícia de ações penais que o Ministério Público tenha apresentado ante a possível autoria e materialidade do crime de excesso de exação.
O assunto foi muito bem examinado pelo Sindifisco. Basta procurar na internet, pela expressão “excesso de exação”. A evolução tecnológica que nos viabiliza tantas facilidades funciona para o bem e para o mal. Cabe-nos escolher o nosso caminho. Para isso existe o livre arbítrio.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Conjur
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