“A lei perverteu-se por influência de duas causas bem diferentes: a ambição estúpida e a falsa filantropia.”[1]
A Constituição Federal de 1988, apesar de ser um primor no seu artigo 5º e seus incisos, estabelecendo inúmeras garantias e direitos ao cidadão, principalmente no que se refere à persecução penal, apresenta inúmeras sandices ao longo de seu extenso corpo. Dentre elas se encontra uma que, na aparência, e somente na aparência, parece uma proposta louvável, justa e correta, mas que na sua essência não passa de uma medida maldosa, injusta e errada. Trata-se do Imposto Sobre Grandes Fortunas, previsto no art. 153, VII da Lei Maior. Muitos são os que se queixam do fato deste imposto nunca ter saído do papel. Eu registro esse fato com alegria, pois tal imposto é um triplo erro: moral, jurídico e econômico. Comecemos por este último.
“Até que ponto o direito pode tirar de quem possui e que não quer dar? O que quer dizer, em termos mais elevados: Até que ponto a força pode substituir o amor? A resposta é infalível: Se a quem devesse dar lhe fosse tirado o que não quer dar, esgotar-se-ia nele o estímulo de produzir mais além do limite a partir do qual lhe seria tirado o que produz. Em termos econômicos: não somente a distribuição depende da produção, mas também a distribuição reage sobre a produção. Em termos jurídicos: o direito, a fim de equilibrar a riqueza dos homens, não pode operar mais além do limite no qual o tirar de quem produz compromete a iniciativa de produzir.”[4]
Do ponto de vista jurídico, o erro não é menos grave: consiste em utilizar a lei para um fim ao qual não corresponde a sua verdadeira finalidade. Hugo de Brito Machado é categórico: “A finalidade do direito tributário não se confunde com a finalidade do tributo, e a distinção – aliás, evidente – é muito importante. (...). A finalidade do direito tributário não é a arrecadação de recursos financeiros para o Estado, mas o controle do poder de tributar a este inerente. (...). A finalidade essencial do direito tributário, portanto, não é a arrecadação do tributo, até porque esta sempre aconteceu, e acontece, independentemente da existência daquele. O direito tributário surgiu para delimitar o poder de tributar e evitar os abusos no exercício deste.”[5]
Finalmente, o mais grave dano que esse imposto provoca, a meu ver, é de ordem moral: pretender introduzir a caridade e a solidariedade através da força. Corrompe-se, desta forma, não só a lei, mas, ao mesmo tempo, as próprias noções de caridade, fraternidade e solidariedade. O francês Jean Barbeyrac, ao traduzir e comentar a obra de Pufendorf, penetrou no âmago da questão: “Há alguns deveres de um tipo que a sua própria natureza exige que sejam deixados inteiramente livres, como o de beneficência, que não é mais beneficência a partir do momento em que, para alguns propósitos, está envolvida a coerção.”[6] A instituição do imposto sobre fortunas equivaleria, assim, ao nível mais horrendo de perversão da lei, causada por aquilo que Bastiat brilhantemente chamou de falsa filantropia.[7] A verdadeira filantropia é, por definição, espontânea, voluntária e anônima. Brota no coração do homem não em razão das (nefastas) interferências do Estado nas relações privadas, mas a despeito delas. Aliás, estas interferências acabam por produzir o contrário: introduzem a cizânia e as desavenças entre os homens. Tocqueville, ao estudar A democracia na América, demonstrou que o individualismo nos Estados Unidos não só não era incompatível com a solidariedade, mas com ela caminhava de mãos dadas:
“Quando os homens sentem uma piedade natural dos males uns dos outros, quando relações espontâneas e frequentes os aproximam cada dia sem que nenhuma suscetibilidade os divida, é fácil compreender que, se preciso, eles se prestarão ajuda mútua. (...). Tudo isso não é contrário ao que disse a propósito do individualismo. Acho até que essas coisas, longe de se repelirem, se harmonizam.”[8]
O Imposto Sobre Fortunas, em suma, pertence àquela categoria de medidas que são aprazíveis e sedutoras, fáceis de serem defendidas. Qualquer pessoa gosta de se apresentar publicamente como um abnegado, preocupado com o bem estar dos mais carentes e com a desigualdade social, defendendo a taxação sobre os ricos. No entanto, o austríaco Ludwig Von Mises deixou bem registrada a hipocrisia desses fariseus: “Ao apoiar o princípio da igualdade como um postulado político, ninguém pensa em repartir sua renda com os que têm menos.”[9]
[1] BASTIAT, Frederic. A lei. Instituto Ludwig Von Mises, 2010, p. 13.
[2] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Editora Topbooks, p. 357. (acréscimo em parênteses não consta do original).
[3] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Editora Topbooks, p. 367.
[4] CARNELUTTI, Francesco. A morte do direito, Editora Líder, p.21.
[5] MACAHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, Editora Malheiros, 34ª Edição, 2013, p.52. (sem grifos no original)
[6] PUFENDORF, Samuel. Os deveres do homem e do cidadão de acordo com as leis do direito natural. Editora Topbooks, p. 453. (sem grifos no original)
[7] Remeto o leitor à fantástica obra de Frederic Bastiat: A lei, na qual o autor trata do assunto com uma genialidade incomparável. A obra pode ser baixada gratuitamente diretamente do site: http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=17.
[8] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro II, Editor Martins Fontes, p. 217. (sem grifos no original)
[9] MISES, Ludwig Von. Ação Humana, Instituto Ludwig Von Mises, p. 948. (sem grifos no original)
por Nadir Mazloum é advogado do Lopes, Rezende & Mazloum Advogados.
Fonte: Conjur
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