Existe um tributo municipal que foge um pouco do dia-a-dia das empresas e que, em alguns casos, pode trazer significativos problemas para contribuintes, decorrentes de autuações fiscais inesperadas, ou seja, fora “do radar”. Trata-se do ITBI, imposto de competência municipal que incide sobre a transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição, nos termos do art. 156, II, da Constituição Federal.
Assim, é muito comum que sócios optem por realizar o capital social de suas empresas mediante a integralização de imóveis, muitos dos quais são, inclusive, as sedes dessas pessoas jurídicas, aproveitando-se da imunidade.
Quando da transferência dessas propriedades, os municípios geralmente solicitam uma declaração, ou uma apresentação de documentação inicial que comprove que as atividades da empresa não são predominantemente imobiliárias, justamente pela ressalva feita no § 2º, I, do art. 156 da Constituição, que exclui da hipótese de imunidade as transferências feitas a adquirentes cuja atividade preponderante for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
Após essa solicitação preliminar (e eventual autorização para efetivar a transferência sem o recolhimento do ITBI), os municípios costumam exigir que os contribuintes apresentem documentos contábeis para comprovarem que, após a integralização, continuaram a não praticar, preponderantemente, atividade imobiliária, sob pena de cobrança do imposto.
Ocorre que, por diversos motivos, muitos contribuintes acabam não atendendo essa obrigação acessória, de modo que estão surgindo diversos lançamentos de ITBI sobre essas transferências, em tese, imunes, o que não pode ser aceito pelos contribuintes. Importante destacar que esses lançamentos ocorrem simplesmente em razão do não cumprimento dessa obrigação acessória, e não porque o fisco municipal comprovou que a pessoa jurídica adquirente passou a exercer atividade preponderantemente imobiliária.
Conforme destacamos, o fato de transferir imóveis a pessoa jurídica em realização de capital social caracteriza hipótese de imunidade tributária. Para bem que se possa compreender a completa insubsistência desses lançamentos, cumpre relembrar, rapidamente, os contornos da imunidade tributária.
Nesse sentido, a Constituição poderia ser chamada de a “carta de competências”, tendo em vista sua função precípua em consolidar o poder que advém do povo, por meio do sufrágio universal, e reparti-lo entre os Entes Federativos.
Entre essas competências, destacam-se, para o que importa ao presente caso, as competências tributárias, como a faculdade que as pessoas políticas têm de criar, em abstrato, tributos. Nesse sentido a Roque Antonio Carrazza afirma: “No Brasil, por força de uma série de disposições constitucionais, não há falar em poder tributário (incontrastável, absoluto), mas, tão somente, em competência tributária (regrada, disciplinada pelo Direito). De fato, entre nós, a força tributante estatal não atua livremente, mas dentro dos limites do direito positivo.”[1]
A delimitação dessas competências tributárias é feita tanto em seu aspecto positivo (a autorização para a criação de determinado tributo) quanto negativo (limitações constitucionais ao poder de tributar). Este – aspecto negativo – é o que mais nos interessa para os fins desse artigo (imunidade da integralização de imóveis para fins de tributação pelo ITBI). Nesse sentido, Heleno Torres, afirma: “Essas competências materiais apresentam-se na Constituição por meio de textos (enunciados) que se devem compor com suas limitações (eficácia negativa) para que se tenha a efetiva ‘norma de competência’ ou tantas ‘normas de competência’ quantas possam ser construídas a partir de seus enunciados as quais servirão para garantir a parametricidade da produção de novas normas no ordenamento, como parte da garantia de segurança jurídica das fontes do direito positivo.”[2]
Com efeito, as imunidades representam os limites fronteiriços das competências tributárias, delimitando-as negativamente, expressamente excluindo pessoas ou situações da tributação. As imunidades são, portanto, limitações imperativas aos destinatários das normas de competência (pessoas políticas), que se encontram impedidas de criarem tributos que alcancem determinadas pessoas ou situações jurídicas. Como limitações absolutas que são, as imunidades persistem, independentemente de qualquer conduta, comissiva ou omissiva, do contribuinte; de qualquer ato normativo, decreto ou lei local. As limitações ao poder de tributar, como o são as imunidades, impedem qualquer tentativa de exigência do tributo por qualquer pessoa política.
Esse foi o entendimento consagrado pelo ministro Celso de Mello, nos autos da ADI 712/MG. Disse ele: “O exercício do poder tributário, pelo Estado submete-se, por inteiro, aos modelos jurídicos positivados no texto constitucional, que, de modo explícito ou implícito, institui em favor dos contribuintes decisivas limitações à competência estatal para impor e exigir, coativamente, as diversas espécies tributárias existentes.”[3]
Qualquer tentativa de desrespeitar as limitações constitucionais ao poder de tributar deve ser imediata e incisivamente afastada pelo Poder Judiciário. É o que ocorre quando os municípios lançam o ITBI em casos de imunidade, sem qualquer investigação específica, mas apenas em razão do não cumprimento de obrigação acessória pelo contribuinte.
Para situar a importância da comprovação da atividade preponderante do contribuinte, retomemos a situação albergada pela imunidade tributária prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição.
A regra de competência tributária do ITBI deve ser delimitada pelas limitações constitucionais ao poder de tributar. A competência tributária para instituir este imposto fica delimitada por algumas imunidades específicas. Entre elas, aquela contida no indigitado art. 156, § 2º, I, da CF, que impede a tributação da transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital. Diz o dispositivo constitucional:
“§ 2º O imposto previsto no inciso II [do art. 156 da CF – ITBI]:
I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;” (esclarecemos entre colchetes)
Assim, a competência tributária dos municípios deve ser compreendida à luz de suas limitações constitucionais. Entre elas, a de não tributar a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital.
O que resta, ao final, é comprovar a não ocorrência da situação que afastaria a norma imunizante, e que é utilizada pelos municípios para lançar o imposto, qual seja, de os adquirentes não comprovarem a não preponderância da “atividade imobiliária”.
Isso porque, o referido art. 156, § 2º, I, da CF, ao prescrever a situação de imunidade, expressamente distingue as empresas que praticam atividade predominantemente imobiliária. Qual seria, para fins de configuração da imunidade específica ora analisada, o critério de definição de atividade preponderantemente imobiliária? Nos termos do art. 146, II, da Constituição Federal, cabe à lei complementar regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.
Neste cenário, coube ao Código Tributário Nacional (CTN), que possui o status de lei complementar, definir o que se considera como atividade preponderantemente imobiliária. Confira-se:
“Art. 37. O disposto no artigo anterior [não incidência do ITBI] não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.
§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.”
Portanto, para fins de fruição da imunidade do ITBI ora em análise, pode-se dizer que a pessoa jurídica adquirente possui atividade preponderantemente imobiliária quando mais de 50% da sua receita operacional for proveniente desta atividade.
Na hipótese de ser verificada a preponderância da atividade imobiliária dentro do período indicado nos §§ 1º e 2º, do art. 37 do CTN, será devido o ITBI, nos termos da lei vigente à data de aquisição.
Como se pode perceber, a lei complementar apenas regulou critério previsto expressamente na CF, não trazendo novos requisitos em relação ao disposto na Lei Maior. Como destaca a doutrina de Humberto Ávila, fazendo referência à imunidade disposta no art. 150, VI, c, da CF, mas que entendemos se aplicar perfeitamente ao caso ora em análise, os requisitos indispensáveis ao gozo da imunidade esgotam-se no que determina a Constituição Federal, e ao que for estabelecido pelo Código Tributário Nacional, quando regula as limitações ao poder de tributar, nos termos do art. 146, II, da Constituição. Vejamos as palavras do mencionado autor: “Os requisitos indispensáveis ao gozo da imunidade esgotam-se no disposto da Constituição e, por sua própria referência, ao estabelecido no Código Tributário Nacional. Requisitos outros não podem haver. E assim é, porque a Constituição assim dispôs. A instituição de outros requisitos por norma infraconstitucional ofende o postulado da supremacia da Constituição”.[4]
Portanto, não pode a legislação infraconstitucional instituir outros requisitos à fruição da imunidade disposta no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, que não aqueles dispostos na própria Lei Maior e no CTN. Acontece que ao analisar a legislação fiscal de vários municípios brasileiros, verificamos a existência de outros requisitos para a fruição dessa imunidade.
A título de exemplo, podemos destacar a já mencionada obrigação de a pessoa jurídica adquirente apresentar documentos contábeis para comprovar que não exerceu atividade preponderantemente imobiliária no período indicado nos §§ 1º e 2º, do art. 37 do CTN. Em caso de não apresentação desses documentos, tornar-se-ia devido o ITBI, afastando-se a imunidade.
Como se pode perceber, afasta-se a imunidade do ITBI disposta no art. 156, § 2º, I, da CF, unicamente por causa de uma obrigação acessória disposta na legislação municipal, qual seja, a não apresentação de documentos contábeis em determinado prazo.
Acontece que essa obrigação acessória não se encontra indicada nem na Constituição Federal, nem no CTN, e, como destacado anteriormente, não pode a legislação infraconstitucional instituir outros requisitos à fruição da imunidade disposta no art. 156, § 2º.
Para afastar a imunidade do ITBI, deve o fisco municipal comprovar que a pessoa jurídica adquirente desenvolve atividade preponderantemente imobiliária, considerando o percentual estabelecido no § 1º do art. 37 do CTN.
O que não se pode admitir – e o que vem ocorrendo, de fato – é o lançamento do imposto apenas em razão de o contribuinte não cumprir determinar obrigação acessória, não exigida na CF e no CTN.
Ora, havendo a previsão de imunidade, cabe ao fisco verificar a ocorrência do fato gerador, nos termos, inclusive, do art. 142 do CTN. Para tanto, rememore-se, o fisco possui amplas ferramentas que permitem, sem sobra de dúvidas, verificar a efetiva ocorrência ou não da imunidade (arts. 195 e 196 do CTN). Eventual descumprimento de uma mera obrigação acessória poderia dar ensejo à aplicação de multa, mas nunca, em hipótese alguma, em lançamento de imposto em situação constitucionalmente excluída da competência tributária.
O Tribunal de Justiça de São Paulo concorda com o posicionamento acima exposto, dando guarida a contribuintes que, por uma ou outra razão, não comprovaram administrativamente a preponderância de sua atividade. Confira-se, apenas exemplificativamente, o seguinte caso julgado pela Corte Bandeirante:
“APELAÇÃO – Ação anulatória - ITBI – Incorporação de bens imóveis ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital - Hipótese configuradora da situação prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal – Reconhecimento de imunidade tributária – Sentença mantida - Recurso não provido.”[5]
Nesse caso, o contribuinte omitiu-se na apresentação dos documentos que comprovassem a preponderância de sua atividade, quando assim solicitado pelo Fisco. No entanto, como já destacamos, o fisco municipal deve comprovar o afastamento da imunidade no caso concreto. Foi exatamente assim que entendeu o relator do caso acima, afirmando que: “Insta ressaltar, ainda, que a omissão da empresa autora no que se refere ao fornecimento dos documentos solicitados pela Municipalidade recorrente não tem o condão de afastar a imunidade assegurada pela Lei Maior.”
Judicialmente, os contribuintes que eventualmente buscarem o cancelamento desses lançamentos poderão provar a preponderância de sua atividade por diversos meios, desde a descrição de seu objeto social, a juntada dos balanços e outros demonstrativos contábeis, até mesmo pela realização de perícias judiciais.
Em conclusão, independentemente das condutas dos contribuintes, certo é que os municípios não estão autorizados a lançarem o ITBI quando da transferência de imóveis em realização de capital social, salvo quando comprovarem que a empresa adquirente desenvolve atividade predominantemente imobiliária.
[1]CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 591.
[2]TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica – Metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 451.
[3]STF, ADI 712, Rel. Min. Celso de Melo, julgamento em 07/10/1992.
[4]ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 292.
[5]Processo nº 0047623-24.2010.8.26.0224, TJ/SP, 14ª Câmara de Direito Público, Relator Des. Henrique Harris Júnior, julgamento em 27/11/2014.
por Gustavo Perez Tavares é tributarista do Peixoto & Cury Advogados.
Sérgio Villanova Vasconcelos é tributarista do Peixoto & Cury Advogados.
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário