Todos os brasileiros estão preocupados com a economia do país e o desequilíbrio das contas públicas. Por certo, encontram-se todos os poderes da República interessados em solucionar essas questões, para que cessem os seus graves resultados, de forma a fazer com que melhore o PIB, diminua a desemprego e seja reduzida a inflação.
Mesmo que muitos culpados sejam punidos da forma mais severa que permita nosso sistema legal e que venham a ser recuperadas porções relevantes dos prejuízos que tenham causado por seus crimes, não podemos desconsiderar que sem uma ampla reforma constitucional os mesmos erros podem ser repetidos no futuro.
Estamos num Estado Democrático de Direito e temos uma Constituição que, apesar de seus defeitos, devemos obedecer. Esse é o dever de qualquer cidadão que viva no país, qualquer que seja sua nacionalidade, nível escolar ou profissão. Todos são iguais perante a lei. Exatamente por isso os abusos praticados por autoridades devem ser repelidos e punidos.
Ora, no campo da Justiça Tributária tais abusos são cometidos com muita frequência. Muitas vezes quem os pratica tenta invocar a necessidade de combater a sonegação, que coloca em risco a arrecadação, necessária ao bem comum. O argumento é legítimo, mas não justifica os abusos, que nada mais são do que usos indevidos, quase sempre amparados em interpretações subjetivas.
Isso acontece quando a autoridade fazendária, a começar pelo agente que faz o lançamento, altera intencionalmente a verdade dos fatos, o que é muito grave quando se trata de servidor que ocupa cargo de nível superior onde é impossível admitir a ignorância da lei.
No município de São Paulo (na gestão do atual prefeito, um professor de Direito em quem votei nos dois turnos!) já foram lavrados auto de infração contra empresas de outro município que prestam serviços de fornecimento de mão obra temporária para empresas aqui sediadas.
Auditores fiscais, embora permaneçam por alguns anos na posse de livros e documentos da empresa fiscalizada, não se preocupam em apurar os fatos de forma minuciosa, correta e conforme a lei. Em alguns casos ignoram a verdade dos fatos, não fazem pesquisas ou diligências e assim produzem lançamento errados, quase sempre quando se aproxima o fim do prazo decadencial.
No caso de fornecimento de mão de obra temporária para outras empresas, por exemplo, o pagamento do tributo cabe ao tomador do serviço, não a quem o preste. Ao lavrar auto de infração contra quem forneça a mão de obra, os autos servem apenas para inflar as estatísticas da “sonegação”, embora o contribuinte de fato e de direito (o tomador dos serviços), aquele que recolheu o tributo, o tenha recolhido normalmente!
Ora, a competência dos Municípios para exigir o imposto sobre serviços de qualquer natureza está definida na Constituição Federal, em seu artigo 156, inciso III. Esse imposto é regulado pela Lei Complementar 116/2003 e seu artigo 1º afirma que ele “tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador”.
O item 17 desse artigo 1º classifica como tributáveis diversos serviços, definidos de forma englobada, para constituir um grupo, uma relação, uma reunião, um gênero de serviços diversos, melhor especificados e explicitados nos 24 sub-itens. O item 17 engloba todos os “serviços de apoio técnico, administrativo, jurídico, contábil, comercial e congêneres”. Dentre os mencionados 24 sub-itens do item 17, o primeiro é :
“17.01 – Assessoria ou consultoria de qualquer natureza, não contida em outros itens desta lista; análise, exame, pesquisa, coleta, compilação e fornecimento de dados e informações de qualquer natureza, inclusive cadastro e similares.”
O último desses 24 itens é o que compreende:
“17.24-Apresentação de palestras, conferências, seminários e congêneres.”
Auditores fiscais, apesar de manterem em seu poder durante vários anos livros e documentos de empresas fiscalizadas, algumas vezes não verificam de forma minuciosa ou diligenciam na busca da verdade material. Por outro lado, com excesso de serviço e sem condições adequadas de exercê-lo, cometem lamentáveis erros quanto aos fatos.
Em alguns casos chegaram a confundir com “serviços de consultoria” , sujeitos a alíquota de 5% do ISS, com os serviços constantes do item 17.05 da Lei Complementar 116 , a saber:
“17.05 – Fornecimento de mão-de-obra, mesmo em caráter temporário, inclusive de empregados ou trabalhadores, avulsos ou temporários, contratados pelo prestador de serviço.”
Em São Paulo a alíquota do ISS é de 2% (dois por cento) para tais serviços. Isso está no artigo 16 da lei nº 13.701, inciso II :
“Art. 16. O valor do Imposto será calculado aplicando-se à base de cálculo a alíquota de 5% (cinco por cento) para os serviços descritos na lista do "caput" do artigo 1º, salvo para os seguintes serviços, em que se aplicará a alíquota de 2% (dois por cento):
II – serviços descritos nos subitens 1.04, 1.05, 2.01, 6.04, 11.02, 11.03, 12.05, 13.04, 15.09, 17.05 e 17.09 da lista do "caput" do artigo 1º;”
Apesar da clareza da legislação, já foram feitas autuações equivocadas, quando auditores usaram apenas a classificação genérica e não a específica dos serviços tributados. Cobraram pela alíquota maior do que a devida e, pior ainda, de quem não devia pagar o tributo, que é suportado pelo tomador, não pelo prestador. Veja-se que e Lei Complementar 116 no artigo 3º ordena que:
“Art. 3o - O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:
XX – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.05 da lista anexa;”
Determina a Lei Municipal 13.701/2003, em seu artigo 3º, inciso:
“Art. 3º O serviço considera-se prestado e o Imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas seguintes hipóteses, quando o Imposto será devido no local:
XVIII – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.05 da lista do "caput" do artigo 1º;”
O fornecimento de mão de obra implica em viabilizar racionalização do trabalho, de forma a reduzir os conflitos trabalhistas e dar mais flexibilidade às empresas na contratação de trabalhadores. Não se pode aplicar a essa atividade a mesma tributação que às consultorias e assessorias, muitas vezes disponibilizando apenas conhecimento ou experiência de reduzido grupo de indivíduos.
O ISS é tributo indireto, de repercussão (onera o consumidor, tomador ou usuário) cujas alíquotas variam conforme a essencialidade dos serviços. Aliás, esse é o princípio básico dos tributos que incidem sobre produção ou circulação.
Por outro lado, nossos legisladores discutem formas de controlar ou impedir a chamada “guerra fiscal” entre municípios. Existe no Senado um projeto nesse sentido.
Deveriam os auditores conferir as notas fiscais e os contratos em seu poder ou mesmo as empresas tomadoras dos serviços localizadas na Capital, para descobrir a verdade e constatar se são serviços de fornecimento de mão de obra, cujo ISS deve ser recolhido pelos tomadores.
Não pode a Administração pública negar vigência aos princípios da legalidade e moralidade, contidos no artigo 37 da Constituição Federal e também na Lei Orgânica do Município. Resultam tais normas do princípio da verdade material, assim conceituado na nossa melhor doutrina:
“Nada importa que a parte aceite como verdadeiro algo que não o é, ou que negue a veracidade do que é, pois no procedimento administrativo, independentemente do que haja sido aportado nos autos pela parte ou pelas partes, a Administração deve sempre buscar a verdade substancial.” (Celso Antonio Bandeira de Mello,“Curso de Direito Administrativo”, 9ª edição, SP. editora Malheiros, 1997, p. 322/323)
“O princípio da verdade material...está presente também no âmbito dos meros procedimentos administrativos. Decorre, em verdade, do princípio da legalidade, porquanto para bem aplicar a lei - sem importar a quem essa aplicação eventualmente favoreça – a Administração deve conhecer os fatos que reclamam a sua aplicação.” (Hugo de Brito Machado Segundo, “Processo Tributário”, editora Atlas, São Paulo, pág.60).
Os julgamentos administrativos devem ser prestigiados, em benefício dos contribuintes e da própria administração pública. Os primeiros não podem considerar suas defesas e recursos nessa fase como mero instrumento de procrastinação, pois ninguém pode ver sobre seus negócios o peso de uma autuação injusta. A administração, por seu turno, não pode correr o risco de não receber o que lhe é devido ou, pior ainda, sofrer prejuízos financeiros relevantes com isso.
por Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Conjur
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