Um dos aspectos mais caros à atividade jurisdicional é a imparcialidade. Ninguém é 100% imparcial, pois todos são influenciados por seus valores e suas preferências. Espera-se que não haja influência nenhuma dos interesses próprios do julgador, porém, muitas vezes, isso não acontece.
Não é possível controlar objetivamente a parcialidade de cada julgador, a menos que ele destoe demais do aceitável e sua atitude, de tão evidente, possa ser questionada através dos meios legais. É possível, todavia, desarmar os incentivos para a parcialidade, como a implantação de um bom regramento institucional.
Numa visão pragmática, historicamente a influência experiencial dos conselheiros e o fato de estarem vinculados a uma entidade interessada no jogo pode levá-los a agir com menor imparcialidade, ainda que ninguém lhes peça isso. Pior ainda, como os conselheiros provavelmente voltarão a atuar como auditores ou advogados, consultores e contadores, podem se inclinar a decidir de formas que lhes favoreçam em seu ofício.
A visão romântica crê que o Carf será um resultado de debates com pessoas de visões técnicas, heterogêneas e imparciais, mas, apesar de isso se revelar verdadeiro em muitos casos, a pragmática revela também muitos julgamentos terminando empatados, com todos os representantes da Receita Federal decidindo num sentido e todos os representantes dos contribuintes no outro, sendo o resultado final definido pelo voto de qualidade.
O histórico modelo paritário do Carf beneficia muito a Receita Federal. Não há grande ganho para a sociedade como um todo, nem para as próprias entidades de contribuintes representadas por conselheiros, pois a voz deles é reduzida pelo voto de qualidade.
Os contribuintes sonham ainda com uma mudança legal no sentido de que o voto de qualidade passe a ser em seu favor, mas a chance percentual de isso acontecer tangencia zero. A União (Receita Federal) tem plena consciência de que o modelo paritário com voto de qualidade para um único lado é uma baita vantagem que leva à vitória desse lado sempre que ele queira.
É amplamente notório hoje que os contribuintes não têm ganhado praticamente nenhum caso na Câmara Superior de Recurso Fiscais do Carf, que muitos apelidam de “Câmara de Gás”.
Vários desses casos são vencidos por meio do voto de qualidade, que é necessário num órgão com formação paritária, de numeração par, o que não acontece em praticamente nenhum órgão colegiado de julgamento administrativo ou judicial no mundo.
Sendo o número par e o órgão dividido igualmente em uma espécie de representantes das partes, é natural que os julgamentos terminem frequentemente empatados. E, se há empate, alguém terá que decidir duas vezes, pois é preciso dar um resultado à lide.
Havendo voto de qualidade para um dos lados, desequilibra-se demais o jogo. O problema maior não é nem o fato de o contribuinte terminar perdendo bem mais casos do que deveria, pois ele ainda tem a chance de acionar o Judiciário, e esse é exatamente um dos argumentos do Fisco, que não pode fazer o mesmo.
Acontece que o Judiciário é lento, impõe custas, requer depósito judicial na maioria das vezes, dentre outras complicações. Além disso, o julgamento do Carf e os fundamentos utilizados influenciam, como é natural, o Judiciário. Uma das vantagens de aperfeiçoar o Carf é que, provavelmente, o Judiciário seria desafogado.
Pelo seu desejo enorme de resolver o problema da forma menos custosa, o contribuinte com moral frouxa termina encontrando um conselheiro do Fisco ou dos contribuintes com moral frouxa, e vice-versa, e aí vem a corrupção.
Julgam-se no Carf casos que valem muitos milhões e, não raramente, bilhões de reais. São tipos de lides muito específicas, que podem definir o sucesso ou o fechamento de uma empresa, enquanto que, do lado do Fisco, um entendimento repercutindo em cadeia sobre vários casos grandes pode levar a uma considerável queda de arrecadação. Devido à grande importância financeira, os incentivos à parcialidade e à corrupção precisam ser mitigados mais do que em qualquer outro tipo de caso.
Por essas e outras razões, o modelo atual não funciona e precisa ser reformulado com urgência. Há inúmeras saídas possíveis. Como sempre, é preciso fazer um exercício complexo de balanceamento de custos e benefícios, analisando com cuidado os efeitos dominós, ou seja, os colaterais que vão rebatendo após os efeitos primários serem emanados pelas novas medidas.
Para manter o modelo paritário e desviar dos graves problemas levantados acima, seria preciso, por exemplo, ter um presidente concursado em cada turma, criando um curioso modelo ainda mais híbrido de representantes da Receita Federal, dos contribuintes e com um servidor autônomo, talvez vinculado ao Judiciário, para gerir as turmas, possibilitar um número ímpar de conselheiros e tornar o voto de qualidade algo excepcionalíssimo.
De qualquer sorte, ainda que se dê uma solução para a questão grave do voto de qualidade, há diversos outros problemas a serem enfrentados no modelo paritário.
Como é possível controlar o conselheiro representante dos contribuintes para que ele não advogue? Todos que quiserem continuarão advogando. Basta não assinar nada, não aparecer em audiências etc. Eles se colocam como palestrantes ou consultores e continuam exercendo a advocacia por meio dos seus sócios ou de contratados. O conselheiro preso em flagrante há poucas semanas continuava aparecendo no site do seu escritório como “consultor e palestrante”.
Como seria possível provar que um conselheiro representante dos contribuintes está advogando? Ele teria que ser denunciado e, mesmo assim, seriam necessárias gravações telefônicas e afins. É muito complicado. Se não há como provar, essa mera proibição pela OAB não funciona, e é preciso rever o modelo completo.
Se o conselheiro representante dos contribuintes estiver próximo do seu escritório, ainda que não esteja atuando no contencioso, é possível negar que os incentivos são fortíssimos para que sua imparcialidade seja reduzida?
Porém, se o modelo paritário existe há tanto tempo, por que mudar somente agora? Ele nunca mudou porque é cômodo para a Receita Federal, que toma todas as decisões administrativas do órgão e tem a caneta do voto de qualidade. Não é do seu interesse mudar. Do lado dos contribuintes, eles têm o receio de que haja uma mudança para piorar as suas chances de vencer os processos.
A existência de um problema tão grave e por tanto tempo não é nada que cause grande espanto, se pensarmos que os dividendos são isentos do Imposto de Renda da Pessoa Física no Brasil desde 1995, que as despesas com saúde são deduzidas ilimitadamente do mesmo imposto há muito tempo, que os prejuízos fiscais só podem ser compensados com 30% do lucro do período desde 1994, que a tributação do consumo chega e pode até passar de 40% e assim por diante.
O Brasil é repleto de “jabuticabas tributárias”, expressão que é um eufemismo para “absurdos que apenas são encontrados aqui ou aqui e em países extremamente atrasados em termos de políticas públicas”.
Custo a acreditar, até porque já procurei, que exista no mundo um país minimamente desenvolvido que tenha um modelo igual ao do Carf, ou seja, paritário e com voto de qualidade para um dos lados. Precisamos, então, pensar no que fazer com ele.
Se houvesse uma boa consciência socioeconômica da Receita Federal, que levasse a julgamentos menos conservadores dos seus representantes, sobretudo na Câmara Superior, o modelo funcionaria melhor.
Na maioria dos países, os órgãos administrativos de julgamento são formados por membros do Fisco, porém, em vários casos, eles não são concursados vitalícios, mas empregados contratados que se submetem a rigorosas regras de eficiência.
O auditor, nos países desenvolvidos, é bastante desencorajado a autuar a esmo e os julgadores dos processos são muito encorajados a serem imparciais. Parece que estamos longe de chegar a modelos como esses.
Uma possibilidade para o Carf, que já aventei em texto anterior publicado aqui na ConJur[1], seria fazer como no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) de São Paulo e distribuir as turmas com presidentes representantes da Receita Federal e presidentes representantes dos contribuintes, o que dividiria votos de qualidade para os dois lados.
Isso não resolve o problema por completo. Primeiro, porque a Câmara Superior, onde os grandes e mais importantes casos são decididos, tem apenas uma turma por seção. Então, um lado vai continuar mandando sozinho no órgão máximo.
Mesmo que se conseguisse o milagre de os contribuintes passarem a ter o voto de qualidade, isso seria um risco grande para o Estado brasileiro. Imaginem se os seus conselheiros começassem a se alinhar sempre em conjunto e dar tudo a favor dos contribuintes, sendo que a Fazenda Nacional sequer pode questionar judicialmente quando ela perde o caso no Carf?
Haveria, provavelmente, uma erosão brutal de arrecadação e uma distorção completa no sistema tributário. Para que o Carf funcione, é preciso ter mais imparcialidade. Não adianta insistir nessa discussão sobre quem vai ter o voto de qualidade, que significa alguém votar duas vezes, fazendo a atividade jurisdicional colegiada se distorcer. O voto de qualidade deveria ser evitado ao máximo e usado apenas em situações de total excepcionalidade, como já dito.
Por tudo o que se disse até aqui, o modelo paritário apenas funcionaria num país com maior senso social, com mais elevação moral e desprendimento de interesses próprios. No Brasil, os incentivos são muito fortes à parcialidade e ao conflito.
Para que ele funcione, seria necessária uma forte e constante atuação dos órgãos representados no Carf para incentivar uma elevação ao máximo possível da imparcialidade dos julgadores. Mesmo assim, o ideal era que eles tivessem autonomia e não ficassem vinculados a um dos lados. Se a decisão do conselheiro for lhe beneficiar, ainda que indiretamente, em curto, médio ou longo prazo, o grau de parcialidade será muito alto.
A relação tributária do Brasil é uma das mais verticais e conflituosas do mundo. Isso termina se refletindo no Carf. Quando conselheiros se alinham todos de um lado e ganham praticamente todos os casos por voto de qualidade, é até natural que os demais se alinhem do outro lado e fiquem torcendo para que, um dia ou outro, alguém se junte a eles e lhes dê a vitória.
É da natureza humana agir de forma transviada quando sente, ainda que erradamente, uma atitude dessa do outro lado da interação. O Estado brasileiro ainda não reconheceu que precisa tomar as iniciativas e dar o bom exemplo. Assim, talvez a sociedade passe a lhe retribuir mais.
Do lado da sociedade, ela precisa também dar o exemplo e lutar para que o Estado evolua, em vez de olhar para ele seletivamente, segundo os seus interesses.
Deste modo, reforço a ideia do artigo anterior. As razões dele e deste texto têm me levado a crer que uma boa saída pode ser o Carf se tornar um tribunal judicial especial, como nos Estados Unidos e no Canadá, e, nesse caso, é preciso trabalhar para mitigar os potenciais efeitos negativos da medida.
Diz-se que, nesse caso, a Receita Federal tentaria emplacar um depósito judicial para recorrer, o que é um absurdo. Isso já foi julgado inconstitucional pelo STF, pois restringe o direito de defesa, de recurso, de acesso ao duplo grau, e não creio que seria tentado novamente.
O fato de juízes concursados passarem a julgar as questões do Carf não necessariamente elevaria a imparcialidade a nível próximo do máximo, como gostaríamos.
Isso depende de uma preparação de ponta dos juízes, que pode ser avaliada no concurso, mas também objeto de curso preparatório específico antes e durante o seu ofício, para que entendam as perspectivas de Fisco e contribuintes, sopesando bastante os interesses divergentes e buscando o que é melhor para a sociedade como um todo.
O julgamento deve acontecer com o máximo esforço de imparcialidade, considerando aspectos econômicos e de política tributária, pensando no que é melhor para o país, seja na proteção do erário, seja do direito de propriedade dos cidadãos. Em casos limite nos quais surge uma fortíssima dúvida, havendo boa fé, o contribuinte deve ser protegido; havendo planejamentos tributários ou má fé, o Fisco deve ser protegido.
Sem o modelo atual, a maior perda seria de experiências trocadas entre representantes do Fisco e dos contribuintes. O concurso poderia ser, então, direcionado para pessoas com muita experiência prática e com a maior parte das questões pautadas nos próprios casos que seriam julgados no exercício do cargo.
Com uma seleção bem formulada, o oferecimento de uma remuneração considerável, porém crescente ao longo de um plano de carreira, e com mais abertura para exoneração em casos de ineficiência ou falha, seria possível que os próprios conselheiros de hoje e do passado, representantes do Fisco e de contribuintes, tentassem ingressar na carreira, ou mesmo outras pessoas tão ou mais preparadas do que eles.
No entanto, essas são apenas novas considerações que se somam àquelas do texto anterior, as quais submeto ao crivo da sociedade brasileira. Não há aqui qualquer definição de modelo único, mas ideias que podem servir tanto para aperfeiçoar o modelo atual do Carf, como para torná-lo um tribunal especial judicial, como para tomar outra saída ainda não imaginada por este autor, mas que ataque melhor os problemas analisados.
O objetivo aqui é ajudar, contribuir para as discussões. Escrevo como acadêmico, como estudioso interessado em políticas públicas, e não como conselheiro, muito menos como representante de qualquer dos meus colegas, alguns dos quais não ficaram satisfeitos com o meu texto anterior, nem ficarão com este.
Os brasileiros precisam começar a colocar os interesses nacionais acima dos individuais e classistas. Os problemas do país não se solucionarão por mágica. É preciso que cada um se exponha, lute, contenha seus ímpetos de interesse pessoal, tenha senso social, para que, assim, possamos construir uma nação de verdade.
[1] http://www.conjur.com.br/2016-jun-19/villas-boas-aperfeicoamentos-carf-continuara-sendo-ineficiente
por Marcos de Aguiar Villas-Bôas é advogado, conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.
Fonte: Conjur
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