Decadência e prescrição em matéria tributária têm vasta bibliografia e jurisprudência. Há livros inteiros tratando apenas desta matéria e suas aplicações. Nem por isso todas as questões que circundam tais institutos estão pacificadas ou são amplamente analisadas no meio jurídico. Ao menos é o que ocorre com uma situação fática muito particular, ainda que bastante recorrente, que é a /contagem do limite para lançamento (decadência) ou cobrança (prescrição) de tributo decorrente da glosa de crédito de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação ("ICMS") em hipótese de saldo credor.
Essa disputa tem implicação prática, pois resulta fatalmente em inviabilizar a fiscalização, independentemente de haver ou não uma infração, a exceção dos casos de comprovada existência de dolo, fraude ou simulação.
Para nos atermos ao caso objeto deste artigo, tem havido certa confusão na aplicação do direito correlato, exatamente nas situações em que o contribuinte contabiliza créditos e débitos mensalmente, apurando saldo credor do ICMS; ou seja, não há ICMS a pagar através de guia de pagamento propriamente dita, embora ocorram fatos geradores ao longo do mês e se apure o ICMS com entrega pontual de GIA.
Pois bem, no cenário acima, caso o fisco pretenda glosar parte (ou todo) do crédito apurado naquele período, como se faz a contagem do prazo decadencial e/ou prescricional?
Inicialmente sobre a ocorrência ou não da decadência, o Fisco não faz diferenciação para esta hipótese de saldo credor, e entende que nas hipóteses de creditamento indevido o prazo decadencial é sempre o previsto no art. 173, I, do CTN, vez que não há pagamento a ser homologado.
Por sua vez, entendemos que o art. 173, inciso I, do CTN se aplica para os tributos em que não há previsão do pagamento antecipado ou quando, a despeito da previsão legal, o mesmo inocorre, sem a constatação de dolo, fraude ou simulação do contribuinte, inexistindo declaração prévia do débito. É o que se extrai do REsp nº 973.733/SC da Primeira Seção do E. STJ.
Ou seja, a existência ou não de pagamento parcial é desinfluente em razão da apresentação da obrigação acessória GIA, que é passível de homologação.
Os ensinamentos de Gabriel Lacerda Troianelli, citado por Leandro Paulsen, na obra Direito Tributário, 11ª Edição, página 1.037, são elucidativos sobre o tema:
"(?) o que se homologa é a atividade de apuração do tributo efetuada pelo sujeito passivo, e não o pagamento do tributo, que pode, como já vimos, nem mesmo ocorrer, se o contribuinte, no período de apuração, por exemplo, não praticar fato gerador, ou, mesmo tendo tributo devido, contar com créditos compensáveis ou prejuízos que resultem no não pagamento efetivo de tributo. Conclui-se, assim, que não é necessária a existência de pagamento para que se opere a decadência mediante a homologação tácita de que trata o artigo 150, parágrafo 4º do Código Tributário Nacional, bastando, para tanto, que o sujeito passivo tenha efetuado regularmente a atividade de apuração do tributo devido (se houver), com o correspondente registro ou entrega de declaração, na forma que estabelecer a legislação pertinente." (grifos nossos)
Na situação que envolve suposto creditamento indevido em situação na qual há saldo credor, a "homologação" é dirigida à declaração do contribuinte, sendo irrelevante o "pagamento antecipado". Até porque a GIA contempla débitos e créditos, que na somatória podem gerar saldo credor, sem que se dispense a necessidade de verificar, fiscalizar e homologar os débitos e os créditos que compõe o saldo de uma GIA entregue mensalmente pelo contribuinte. Curiosamente, esse ponto é ignorado em muitas obras que pretendem cobrir tudo que se possa discorrer em matéria de decadência.
Ou seja, tanto do ponto de vista contábil como escritural, os créditos de ICMS constituem moeda de pagamento do imposto, porquanto reduzem ou eliminam o montante final a ser pago em dinheiro. Esse é o entendimento do E. STJ:
"(...) 3. O termo "cobrado" deve ser, então, entendido como "apurado", que não se traduz em valor em dinheiro, porquanto a compensação se dá entre operações de débito (obrigação tributária) e crédito (direito ao crédito). Por essa razão, o direito de crédito é uma moeda escritural, cuja função precípua é servir como moeda de pagamento parcial de impostos indiretos, orientados pelo princípio da não-cumulatividade (...)" (STJ. AgRg no REsp 1065234 / RS. 1ª Turma. DJe 01/07/2010)
Assim, nas situações em que não há necessidade de pagamento do ICMS, já que os créditos superaram os débitos, resta ao Fisco Estadual homologar as informações lançadas na GIA, lançando eventual quantia em desacordo com a legislação. Isso decorre do fato de que dentro da GIA, na parte dos débitos do período mensal, são "realizados os pagamentos" via compensação. Ou seja, é desnecessário o preenchimento de uma guia de pagamento propriamente dita.
Com efeito, considerando que o lançamento por homologação é aquele em que a legislação atribui ao sujeito passivo o dever de declarar à autoridade administrativa as operações tributáveis, calcular o montante devido e antecipar o seu pagamento quando aplicável, uma vez que a AUTORA declarou às autoridades em GIA o valor do débito e crédito, mesmo sem a necessidade de pagamento do ICMS pela existência de saldo credor, a regra para contagem da decadência deve ser a prevista no art. 150, § 4, do CTN, posto que temos débitos e créditos para se homologar.
Diante disso, fica evidenciado a necessidade de se enfrentar a situação fática aqui delimitada, vez que o fisco e determinados julgados ignoram que determinados contribuintes, a depender de sua atividade (como os exportadores), acumulam créditos de imposto e não possuem pagamento para antecipar, mas entregam corretamente as suas declarações, que são passíveis de homologação tanto dos débitos como dos créditos que a compõe.
Ora, contar o prazo decadencial como se não estivesse na sistemática dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação é um contrassenso, já que equipara esse contribuinte aos que foram omissos no cumprimento de seus deveres instrumentais, ou que por simples casuísmo tivessem na somatória de débitos e créditos acumulados alguns poucos reais a recolher parcialmente, tratando contribuintes em situação fundamentalmente igual de forma desigual.
Assim, não se pode aceitar tal diferenciação para as situações de creditamento indevido, já que em nenhum dispositivo do CTN está feita esta diferenciação. Não há suporte legal para distinguir o prazo de decadência entre contribuintes do ICMS, só porque um acumula mais crédito, sendo que os dois cumprem fielmente as obrigações principal e acessória. A aplicação da sistemática trazida pelo art. 150, § 4º, do CTN é medida que se impõe.
Ainda sobre o tema, tanto o E. STJ como o E. TJSP consagram a aplicação do art. 150, § 4º, do CTN, na hipóteses de creditamento indevido do imposto estadual:
"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. PAGAMENTO A MENOR EM DECORRÊNCIA DE SUPOSTO CREDITAMENTO INDEVIDO. APLICAÇÃO DO ART. 150, § 4º, DO CTN. SUPOSTA OFENSA AOS ARTS. 19, 20 E 21 DA LC 87/96. REEXAME DE PROVA.
1. A Primeira Seção/STJ, ao apreciar o AgRg nos EREsp 1.199.262/MG (Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 7.11.2011), pacificou entendimento no sentido de que, em se tratando de lançamento suplementar, decorrente do pagamento a menor de tributo sujeito a lançamento por homologação, em razão da verificação de creditamento indevido, é aplicável a regra prevista no art. 150, § 4º, do CTN. 2. O reexame de matéria de prova é inviável em sede de recurso especial (Súmula 7/STJ). 3. Agravo regimental não provido."
(AgRg no REsp 1238000/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 29/06/2012)
Tratando-se de imposto cujo lançamento se dá por homologação, o contribuinte antecipa o pagamento do tributo sem prévio exame da autoridade administrativa. Essa, por sua vez, tem o prazo de cinco anos, a contar do fato gerador, para homologar o lançamento. Expirado esse prazo, sem que a Fazenda tenha se pronunciado, considera-se extinto o crédito tributário, salvo comprovada ocorrência de dolo, fraude ou simulação (CTN, art. 150 e § 4º).
No caso, houve suposto creditamento indevido ou pagamento a menor, já que, sob a ótica da autora, o pagamento do imposto foi integral e, por isso, regular, não configurando hipóteses de dolo, fraude ou simulação. Assim, subsiste como termo inicial para a contagem do prazo decadencial a data do fato gerador, conforme entendimento do STJ.
(Apelação 0005969-85.2010.8.26.0053; Rel. Edson Ferreira, 11/04/2012)
TRIBUTÁRIO. ICMS. ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. 1) Aproveitamento de créditos de ICMS decorrentes de operações interestaduais. Alíquota 12% para contribuintes destinatários localizados nas regiões sul e sudeste (Res. nº 22/89 do Senado Federal c.c art. 155, § 2º, inciso IV, CF). Incentivos fiscais concedidos unilateralmente pelo Estado de Goiás (origem). Imposto recolhido com base em alíquota inferior a 12%. Pretensão do contribuinte em realizar o creditamento com base no valor escriturado na nota fiscal que anota alíquota de 12%. Discordância da Fazenda que reputa legítimo o aproveitamento de créditos com base no imposto cobrado na origem. 2) Prazo decadencial para constituição do crédito tributário referente a creditamento indevido de ICMS que deve ser apurado conforme as regras previstas no § 4º, do art. 150 do CTN. Precedentes do E. STJ. Reconhecimento da decadência do direito da Fazenda constituir créditos cujo aproveitamento indevido tenho ocorrido há mais de cinco anos retroativos à data de lavratura dos respectivos autos de infração. Sucumbência recíproca caracterizada. Custas divididas entre as partes, que arcarão com os honorários dos respectivos patronos. Recurso provido, em parte.
(Apelação nº 0003057-18.2010.8.26.0053; TJSP; 10ª Câmara de Direito Público do TJSP; Rel. Paulo Galizia, 14/10/2013)
Nos casos acima, os julgados reconhecem que uma vez feita a apuração do imposto devido e apresentada ao Fisco a respectiva Guia de Informação e Apuração de ICMS, a utilização de crédito para pagamento do ICMS configura modalidade de extinção da obrigação tributária, devendo, portanto, o período de decadência ser enquadrado na forma de contagem do artigo 150, § 4º do CTN.
Por fim, ainda que o prazo decadencial seja contado pelo artigo 173, inciso I, do CTN, o que só se admite por eventualidade, o prazo para a glosa de créditos indevidos de ICMS deve ter início no primeiro dia do terceiro mês subsequente ao do fato gerador, afinal, (i) no mês seguinte ao do fato gerador há a entrega da GIA, (ii) no mês subsequente ao da entrega da GIA o Fisco Estadual já pode iniciar a fiscalização; e (iii) no mês seguinte a este teria início o prazo decadencial.
A entrega de declaração pelo contribuinte tem o efeito de constituir crédito tributário e, ainda, dar início ao "processo administrativo ou medida de fiscalização" por parte do Fisco, tanto que a partir daí o contribuinte já não pode mais se valer da denúncia espontânea, é intuitivo concluir que, por meio dessa declaração, o Fisco já está habilitado a analisar as informações prestadas, apurar eventuais irregularidades no lançamento e, ocasionalmente, realizar de ofício a sua revisão, via Auto de Infração, nos termos do artigo 149, inciso V, do Código Tributário Nacional.
Por essas razões, o conceito do exercício mencionado no artigo 173, inciso I, do CTN, está afeto ao período de apuração de determinado tributo e, em função de seu encerramento, à possibilidade de o Fisco efetuar o lançamento de ofício pelo conhecimento prévio das informações prestadas pelo contribuinte em suas declarações.
Assim, mesmo sob o rito do art. 173, I, do CTN, haveria que se examinar a decadência conforme a data da entrega da GIA.
Mais ainda, caso não reconhecida a decadência em tais situações de entrega de GIA com saldo credor, configura-se uma situação passível de análise da prescrição, que como se sabe é o direito de cobrar uma dívida existente (devidamente lançada). No caso temos uma suposta dívida tributária constituída por autolançamento ao se entregar a GIA.
Segundo a jurisprudência do E. STJ opera-se a prescrição a contar do autolançamento, consoante previsto na Súmula nº 436: "A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco."
Contando-se o prazo prescricional com base no art. 174 do CTN, e sendo a entrega da GIA a declaração e ato de constituição definitiva, resta claro que o crédito combatido estaria extinto pela prescrição, nos termos do art. 156, inciso V, do CTN. Vejamos:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. EXECUÇÃO FISCAL. ICMS. CRÉDITO TRIBUTÁRIO CONSTITUÍDO POR ATO DE FORMALIZAÇÃO PRATICADO PELO CONTRIBUINTE. DCTF. PRAZO PRESCRICIONAL. CONTAGEM. TERMO INICIAL. VENCIMENTO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. ENTENDIMENTO PACIFICADO NO STJ PELA SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS.
1. Com a entrega da Declaração, seja DCTF, GIA, ou outra dessa natureza, tem-se constituído e reconhecido o crédito tributário, sendo dispensada qualquer outra providência por parte da Fazenda. A partir desse momento, inicia-se o cômputo da prescrição quinquenal em conformidade com o art. 174 do Código Tributário Nacional.
2. Na hipótese dos autos, consoante consignou a decisão ora agravada "o débito foi declarado em 9/8/1999, por meio da GIA - Guia de Informação e Apuração do ICMS -, com vencimento em 20/8/1999 (fl. 79) e não foi pago. No entanto, a ação foi ajuizada em 18/8/2008, quando já transcorrido o prazo prescricional quinquenal". Precedente: Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008 - REsp 1.120.295/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 21.5.2010). 3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1316115/MA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 18/06/2013)
Em conclusão, é possível dizer que na hipótese de apuração mensal de saldo credor de ICMS, os créditos escriturados passíveis de fiscalização e glosa, estão sujeitos à contagem da decadência pelo artigo 150, §4º, do CTN. Ainda que não estivessem, pelo artigo 173, I, a contagem da decadência se daria a partir do mês subsequente à entrega da GIA. E caso assim não se entenda, temos ainda que aplicar o prazo prescricional de 5 anos a contar da entrega das GIAs.
por Flávio de Haro Sanches
Advogado.
Fonte: Thomson Reuters
Nenhum comentário:
Postar um comentário