quinta-feira, 19 de maio de 2016

19/05 É preciso extirpar do sistema a trava de 30% de prejuízos fiscais

Em artigo recentemente publicado aqui na ConJur falei sobre a importância de se levar verdadeiramente em conta aspectos de política tributária no momento de legislar, de executar a legislação e de decidir lides tributárias. Ao final, utilizei o exemplo da trava para aproveitamento de prejuízos fiscais.

A trava consiste na limitação de uso de prejuízos fiscais de períodos anteriores em até 30% do lucro real da empresa em ano posterior. Em outras palavras, não importa se a empresa teve um prejuízo gigantesco num período e um lucro considerável no seguinte, pois ela apenas poderá aproveitar prejuízos em até 30% do seu lucro real.

A empresa pode ter um alto prejuízo fiscal, porém, no ano seguinte, com alguma mudança no mercado, nas suas práticas ou em qualquer outro aspecto que afete consideravelmente o seu negócio, ela poderá ter um lucro real alto e, assim, terá que pagar pesados valores de IRPJ e de CSLL, mesmo apesar de ainda estar usando o lucro daquele ano para pagar o prejuízo do anterior, ficando o uso do prejuízo fiscal gerado no passado limitado a menos de 1/3 do valor do lucro real.

A depender do negócio, é mais comum ter oscilações grandes entre prejuízos e lucros, mas a política tributária avançada abomina normas direcionadas para setores específicos e, a rigor, a limitação do uso de prejuízos fiscais pode atingir qualquer pessoa jurídica ou física. Em muitos países, há a possibilidade de compensar prejuízos da pessoa física com sua renda em anos posteriores, mas esse é uma tema para outro artigo.

Em consequência do texto por mim antes publicado, recebi algumas críticas, sobretudo de colegas do Carf que são membros da Receita Federal, que diziam ser a trava apenas uma questão de técnica fiscal e que, ao fim e ao cabo, não afetava realmente quanto é pago por cada contribuinte.

Parece-me difícil negar que a trava muda completamente quanto é pago e que pode prejudicar muito os contribuintes. A trava, sob a desculpa da técnica fiscal de tributação em trimestres ou ano a ano, cria uma desigualação de contribuintes em situações idênticas ou semelhantes, gerando injustiça fiscal, ferindo o princípio da capacidade contributiva e provocando distorções graves na economia, como, por exemplo, desestimular investimentos.

É claro que o Estado tem o direito de realizar cortes de períodos para que haja apuração, declaração, pagamento, cobrança e fiscalização de tributos. No entanto, esses cortes não podem levar a tributar os contribuintes fora da sua capacidade econômica. Ao se distorcer a capacidade contributiva, fere-se o princípio mais importante de um sistema tributário e, assim, a lei é simplesmente inválida.

Essa é uma das razões claras pelas quais as normas de política tributária não são apenas fundamentais para o sucesso socioeconômico do país, mas também para a própria sobrevivência jurídica das medidas tributárias que são tomadas por todos os agentes públicos, de todos os três poderes.

Para que o argumento fique mais claro, buscarei explicá-lo em números, o que, segundo me parece, afastará qualquer dúvida sobre o fato de a trava de 30% distorcer a capacidade econômica e fazer com que os contribuintes paguem tributos com valores diferentes daqueles que seriam efetivamente devidos em caso de terem o mesmo lucro real global e não terem incorrido em prejuízos fiscais.

A análise buscará trazer números que simplifiquem a demonstração e que permitam a sua compreensão até mesmo por pessoas com pouco conhecimento nas regras de apuração do IRPJ e da CSLL, pois muitos empresários, por exemplo, têm interesse direto no tema, uma vez que a trava retira ou diminui o seu capital de giro, os faz pagar mais tributos do que deveriam, prejudicando suas empresas e, portanto, a economia e a sociedade como um todo.

Serão apresentados três quadros em seguida com informações sobre quatro empresas (A, B, C e D). Para facilitar os cálculos e a compreensão, irei desconsiderar que há uma alíquota de 15% de IRPJ mais adicional de 10% e uma alíquota de 9% de CSLL. Por sinal, como já disse em outros textos, é uma péssima política tributária ter duas exações como o IRPJ e a CSLL com quase a mesma base de cálculo, gerando complexidade desnecessária no sistema. Esses dois tributos deveriam ser unificados. Utilizarei aqui uma alíquota única hipotética de 10%, quando ela seria, a rigor, de 34%, tornando os resultados numéricos ainda mais graves.

O primeiro quadro trará o resultado da empresa, se lucro real ou prejuízo fiscal, em números pequenos, aos quais podem ser acrescentados, em se tratando de situações hipotéticas, seis, sete, oito, quantos zeros se quiser. Isso é irrelevante. Importa que estamos tratando de empresas submetidas ao lucro real. Qualquer que seja o porte da empresa, ela terá, provavelmente, ainda mais prejuízos por conta da trava de 30%, se incorrer em prejuízos fiscais.

O segundo quadro apresentará o estoque de prejuízo fiscal de cada empresa. Por fim, o terceiro quadro trará o valor pago a título de IRPJ e CSLL sob a alíquota de 10%. Para facilitar ainda mais a compreensão do problema real e possibilitar considerações acerca da aplicação da trava na incorporação de empresas, consideraremos que todas elas foram criadas em 2015 e serão incorporadas por outra empresa em 2019.

Seguem os quadros:




Vamos às explicações dos resultados. No primeiro quadro, a empresa A oscila lucros reais e prejuízos fiscais, mas tem um considerável lucro real no último ano de sua existência. Sendo assim, ela morre com o estoque de prejuízos fiscais e não pode reduzir a enorme tributação que teve no último ano para mais de 30% da sua base.

A empresa B começa com um lucro alto, depois tem problemas nos dois anos seguintes e volta a dar lucro. A empresa C tem a melhor das situações num sistema com a trava de 30%.

A empresa D está no pior dos mundos, pois ela tem lucro muito alto logo no primeiro ano e depois três anos consecutivos de prejuízos fiscais. Mesmo tendo acumulado bastante prejuízo, conforme demonstra o segundo quadro, não consegue zerar o seu lucro real no ano da sua incorporação, sendo extinta com a maior acumulação de prejuízos fiscais e, portanto, pagando mais tributos do que as demais no total dos cinco anos.

A última coluna do primeiro quadro revela que todas as empresas tiveram exatamente o mesmo resultado global positivo de 25, porém, quando olhamos para o segundo e o terceiro quadros, vemos que elas têm resultados de estoques de prejuízos bem distintos e, o que é pior, tributações, também, completamente diferentes, apesar do mesmo resultado global.

Não voltarei à questão já levantada no último texto de que os países mais desenvolvidos do mundo vêm buscando realizar tributações recortadas em períodos curtos, assim como no Brasil, porém com técnicas fiscais que produzam efeitos semelhantes à cobrança de tributos em ciclos longos, preferencialmente considerando toda a vida do contribuinte. Lá foram citadas duas ótimas referências sobre o assunto, porém várias outras estão disponíveis na internet.

É claro que é preciso fazer cortes para que a apuração, a cobrança e a arrecadação dos tributos se deem periodicamente. O problema é que esses cortes não podem afetar a capacidade contributiva. Não se pode usar as técnicas de cortes de apuração para antecipar ou aumentar a arrecadação da Receita Federal e, portanto, prejudicar os contribuintes.

É preciso fazer o corte e, ao mesmo tempo, criar mecanismos para desfazer seus efeitos negativos sem que criem efeitos ainda mais negativos. Trata-se de desenhar políticas tributárias com uma visão complexa.

A trava de 30% tem dois objetivos principais. Ela garante que a Receita Federal tenha uma arrecadação mais uniforme, evitando que os contribuintes façam grandes compensações de prejuízos fiscais em determinados períodos e zerem os seus lucros reais para não pagar nenhum tributo. Ao fazer isso, e ainda com um limite baixíssimo de 30%, obviamente aumenta-se em muito a arrecadação da Receita Federal, pois os contribuintes ficam eternamente com prejuízos acumulados e, de quebra, não podem utilizá-los na sua incorporação por outra empresa.

Lembre-se que a trava de 30% não é aplicável ao valor do estoque de prejuízos, mas ao valor do lucro real do período. Sendo assim, sempre sobrará 70% de lucro real sobre o qual incidirão os tributos, não importando qual foi o prejuízo nos períodos anteriores.

No exemplo em questão, há quatro empresas com os mesmos resultados, porém com pagamentos de tributos muito distintos, chegando à aberração de a empresa D pagar aproximadamente 70% a mais do que a empresa C. Se essas fossem empresas muito grandes e os números estivessem numa escala de bilhões de reais, estaríamos falando de uma empresa pagando 1,85 bilhões de reais a mais que outra por conta da trava de 30% em um período de apenas cinco anos.

Deste modo, as empresas brasileiras devem se planejar para buscar resultados positivos uniformes, em vez de resultados positivos altos num período e negativos em outros, de modo que essa norma tributária horrorosa pode afetar negativamente as suas tomadas de decisão.

Inúmeros planejamentos são feitos para se tentar o aproveitamento total dos prejuízos fiscais, como o de encerrar uma empresa e incorporá-la dentro de outra. Às vezes, a motivação principal da negociação foi exatamente o aproveitamento dos prejuízos; às vezes, a motivação foi, de fato, negocial. No entanto, em ambos os casos o Carf vem considerando que não se pode aproveitar todo o estoque de prejuízos no período em que acontece o fechamento do resultado tributário da empresa para efeito de incorporação.

Se uma empresa já tem, obviamente, problemas financeiros, societários e outros quando seu resultado é negativo, no sistema brasileiro ela também tem problemas tributários sérios, que ajudam a agravar aqueles primeiros problemas financeiros, societários e outros. Uma vez gerado prejuízo fiscal alto, será difícil de utilizá-lo por completo e o prejuízo se multiplicará para outros anos.

Quando se olha para os sistemas tributários dos países mais desenvolvidos do mundo, não se encontra qualquer trava de valor para uso de prejuízos fiscais. Suécia, Holanda, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Japão e muitos outros países desenvolvidos não travam prejuízos fiscais de suas empresas.

Esses países apenas estabelecem uma limitação temporal para que os prejuízos não sejam carregados à frente indefinidamente. Os Estados Unidos fixam prazo de 20 anos, a Espanha limita em 15 anos e o Canadá limita em 10 anos. Austrália e Nova Zelândia não estabelecem nem sequer limite temporal.

Se o leitor já está achando que o sistema brasileiro é atrasado, não para por aí. Além de as empresas poderem, nos países desenvolvidos, levar os prejuízos à frente (carry forward) e utilizá-los da forma que melhor entenderem; em muitos países, é possível pedir uma restituição do imposto pago em períodos anteriores (carry back). No Canadá, pode-se compensar prejuízos com lucros de até 3 anos anteriores. Nos Estados Unidos, até 2 anos anteriores. Nos países do Reino Unido, pode-se compensar prejuízos com lucros do ano imediatamente anterior.

Caso não houvesse trava de 30%, o primeiro quadro não seria afetado, pois ele apenas traz os resultados das empresas em cada período. No entanto, os estoques de prejuízos e os tributos pagos seriam completamente distintos e, nesse caso, contribuintes em situações idênticas teriam resultado idênticos, exceto no caso peculiar da empresa D, que precisaria ter uma solução também peculiar.

Vejamos o segundo e o terceiro quadros numa situação hipotética sem trava de 30%:



Como se pode notar, nesse caso todos os contribuintes seriam tributados com o mesmo peso, pois têm a mesma capacidade contributiva, quando avaliada num ciclo mais longo do que aquele recorte da técnica de apuração, cobrança e arrecadação. A única exceção seria a empresa D, que teve um lucro muito alto no primeiro ano e depois teve anos consecutivos de prejuízo fiscal, não tendo sido possível desaguá-los no último ano de sua existência.

Nesse caso, para que a tributação seja realmente justa, por mais estranho que pareça, é preciso possibilitar que os prejuízos fiscais acumulados sejam multiplicados pelas alíquotas do IRPJ e da CSLL, constituindo um crédito do contribuinte a ser utilizado para compensação com os demais tributos federais naquele ano e, em caso de acumulação ao final, deveria ser realizado o ressarcimento em espécie do valor correspondente ao que foi pago a maior em IRPJ e CSLL por conta dos recortes trimestrais ou anuais, conforme a opção de apuração de cada contribuinte.

Apresenta-se aqui um conjunto de mecanismos que deveriam ser adotados pelo Brasil. Não é necessário adotá-los de uma vez só, mas, ao menos, é preciso extirpar do sistema, o mais rápido possível, a trava de 30%, que é inconstitucional e não encontra semelhante em nenhum dos países desenvolvidos aqui citados, cujos sistemas tributários são os melhores do mundo e nos quais o conhecimento teórico é o mais avançado do planeta.

Quanto à restituição de tributos pagos em períodos anteriores e à geração de créditos no ano de encerramento de empresas, precisam ser analisados com cuidado, pois aumentarão a complexidade do sistema e gerarão contencioso, sobretudo em se tratando de Brasil, onde o respeito às regras é menor e a litigiosidade é enorme.

Como sempre em política tributária, caímos no problema (que é a solução dos problemas) dos trade-offs. Na dúvida entre privilegiar a capacidade contributiva e a simplicidade do sistema, deve-se tentar atingir o máximo de respeito à primeira sem aumentar muito a segunda. Deve-se sempre buscar eliminar complexidades desnecessárias, mas algumas delas são imprescindíveis para a realização dos fins do sistema!

por Marcos de Aguiar Villas-Bôas é advogado, conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

Fonte: Conjur

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