sexta-feira, 20 de maio de 2016

20/05 ICMS, Guerra Fiscal e Zona Franca de Manaus – um capítulo à parte

Não é de hoje que tributaristas, Fisco e contribuintes convivem com a expressão “Guerra Fiscal”, cujos efeitos financeiros são mais representativos no bojo do ICMS.

Em síntese, o dilema reside no fato de a Constituição Federal estabelecer que a concessão de benefícios fiscais de ICMS é condicionada à prévia autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), por concordância unânime dos demais entes federados. Ocorre que, não raro, as Unidades da Federação concedem benefícios unilateralmente, desobedecendo tal requisito essencial de validade. Tão essencial que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem declarando inconstitucionais os benefícios fiscais concedidos sem prévia autorização. Entendimento que resultou na proposta de Súmula Vinculante 69, cujo resultado pode gerar um verdadeiro colapso institucional [1].

A partir da percepção deste risco, nota-se uma retomada da marcha política no sentido de resolver a questão de forma menos drástica. Muito embora sua importância, não trataremos destas perspectivas da “Guerra Fiscal”, mas de um caso específico que foge aos seus contornos tradicionais: os benefícios concedidos pelo Estado do Amazonas às empresas estabelecidas na Zona Franca de Manaus (ZFM).

Não é novidade que o Polo Industrial da Zona Franca de Manaus, instituído em 1967, é resultado de uma política governamental de incentivos fiscais que alocou naquela região recursos e mão de obra capazes de torná-la atualmente um dos maiores centros industriais do país. Esta política está consignada no artigo 1º do Decreto-Lei 288 de 1967 [2],  cujos efeitos foram conservados na atual ordem constitucional por meio do artigo 40 dos Atos de suas Disposições Transitórias – ADCT [3] e prorrogados até 2023 pela EC 42/2003.

Nesta toada, conferindo eficácia aos ditames constitucionais, a Lei Complementar 24/75, diploma instrumental para elaboração de leis que concedem benefícios fiscais de ICMS,  em seu artigo 15 [4], dispensa expressamente as empresas sediadas na ZFM da prévia autorização do Confaz para fruição dos benefícios fiscais de ICM(S), tornando, portanto, inaplicável neste caso o disposto no artigo 8º, o qual torna ineficaz o crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria beneficiada por incentivo irregular.

De início, entretanto, os Estados defendiam a não recepção deste artigo 15 pela Constituição Federal de 1988 e sustentaram que esta área incentivada estaria enquadrada na regra comum a que se sujeitam todos os demais Entes Federados. Vale dizer, que os benefícios fiscais concedidos para a ZFM não teriam sido recepcionados pela CF/88 e os que lhe são posteriores não seriam com ela compatíveis. Assim, foram lavrados autos de infração glosando os créditos dos contribuintes que recebiam mercadorias gravadas com os benefícios instituídos pelo Estado do Amazonas, mesmo quando originários da Zona Franca de Manaus.

Com a evolução da matéria, o cenário começou a se desenhar no Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT) em sentido desfavorável aos contribuintes. Em suma, insistia-se em igualar a ZFM aos casos clássicos de “Guerra Fiscal”, nos quais há posicionamento sedimentado no tribunal em manter as acusações fiscais.

Os fundamentos para a manutenção da glosa residiam ora sob a citada alegação de que este artigo 15 não teria sido recepcionado, ora sob o argumento – mais desenvolvido – de que, ainda que se considerasse sua recepção, não poderia transferir aos demais entes da Federação os encargos financeiros decorrentes da “carta branca” concedida ao Estado do Amazonas. Com efeito, esta segunda interpretação apenas se presta a contornar a diretriz estampada no texto legal, esvaziando o sentido e os efeitos da norma [5].

Por fim, ainda se chegou a dizer que os benefícios da ZFM seriam concedidos apenas para as mercadorias que nela entrassem. Raciocínio totalmente equivocado. Ora, ao se dizer que os benefícios fiscais da ZFM ficariam adstritos ao seu espaço territorial, qual seria a necessidade de uma Lei Complementar dispor sobre os efeitos destes benefícios aos demais entes da Federação?  Afinal, porque o artigo 15 vedaria expressamente aos demais Estados limitarem ou excluírem os efeitos dos benefícios fiscais da ZFM se o próprio princípio da territorialidade resolveria o assunto, já que as operações beneficiadas seriam apenas internas à ZFM?

Também pela perspectiva constitucional esta linha de raciocínio não prevalece, pois desconfigura de tal forma o Estado Brasileiro e o pacto federativo que não merece tantas linhas para ser combatida, mas a simples citação do artigo 18 da Magna Carta, que prescreve que a República Federativa do Brasil é o resultado da união dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Ou seja, a Federação é “um acordo capaz de estabelecer um compartilhamento da soberania nacional, fazendo com que coexistam, dentro de uma mesma nação, diferentes entes autônomos e cujas relações são mais contratuais que hierárquicas.” [6]

Destarte, o pacto federativo assumido entre estes entes na CF/88 aceita perfeitamente algumas concessões em troca do objetivo visado pela República, que é a manutenção da união nacional por um bem comum maior.

Entretanto, recentemente, o TIT tem demonstrado um movimento que contraria esta tendência inicial e parte considerável das suas Câmaras Julgadoras tem cancelado as autuações que visam glosar os créditos decorrentes de benefícios concedidos pelo Estado do Amazonas [7]. Este movimento se deve, em larga medida, à superação do entendimento de que este artigo não teria sido recepcionado pela Carta Constitucional, pelo E.  STF, quando do julgamento definitivo da ADI 310 [8].

Referido julgado exarou que o quadro normativo pré-constitucional da ZFM foi alçado à estrutura constitucional por força do artigo 40 do ADCT e alcançou natureza de imunidade tributária. Além disso, reconheceu que este arcabouço normativo se aplica também ao ICMS e não pode sofrer limitação semântica, sob pena de afronta ao dispositivo do ADCT.

Ato contínuo, alinhando-se à postura exercida pelo Supremo Tribunal, evitando insitar a litigiosidade desmedida, que acarreta dispêndios excessivos ao Estado e seguindo inclusive tendência de valorização da jurisprudência presente do novo Código de Processo Civil, o TIT tem se demonstrado um tribunal administrativo vanguardista e ponderado.

E veja-se que o faz apenas por possuir sólidos fundamentos. Em primeiro, por conta do contexto histórico-normativo no qual inserida a ZFM. E, nesta senda, assegurar os objetivos que lhe são constitucionalmente outorgados, já que a Magna Carta consagra como objetivos da República, a redução das desigualdades regionais (art. 3º, inciso III), imperativo subjaz a outro princípio constitucional, o da igualdade (art. 5º, “caput”, da CF/88).

Neste cenário, não é difícil concatenar a coexistência da ZFM com os demais entes federados,  atribuindo-lhe caráter privilegiado ante os demais, em razão de sua condição geográfica e econômica menos favorecida e evidenciado o intuito do governo em promover seu desenvolvimento. Afinal, a ZFM representa o esforço coletivo dos demais Estados enquanto nação para suportarem conjuntamente o ônus financeiro de desenvolver aquela área do território nacional.

De mais a mais, não se consegue encontrar qualquer fundamento jurídico que comporte raciocínio que justifique a negação dos benefícios fiscais do ICMS concedidos a empresas situadas na Zona Franca de Manaus.

Neste mesmo sentido, também é categórico o posicionamento de Tércio Chiavassa e Diego Caldas de Simone [9]:

“Diante disso, em face do artigo 15 da LC nº 24/75, os demais Estados estão expressamente impossibilitados de glosarem ou exigirem o pagamento do ICMS beneficiado. Trata-se de, vale repetir à saciedade, de disposição expressa de lei que afasta a exigência fiscal que vem sendo realizada com bastante frequência pelas autoridades fazendárias estaduais. Não é questão de interpretação, nem de determinação dos fatos ocorridos, mas do texto expresso da lei.

Ademais, não se pode perder de vista que a LC nº 24/75 foi integralmente recepcionada pela CF/1988 (e, claro, também o seu artigo 15), conforme expressamente determinado pelo art. 34, parágrafo 8, do ADCT, admitido pela doutrina e reconhecido de forma reiterada e pacífica pelo Supremo Tribunal Federal.” [10]

E, no caso do TIT, deve-se ainda destacar que este não está autorizado a desconsiderar os ditames do artigo 15 da LC 24/75, pois assim o fazendo estaria afrontando expressamente o artigo 28 da Lei Estadual 13.457/2009 (Lei do Processo Administrativo Tributário Paulista), que veda afastar aplicação de dispositivo de lei sob alegação de inconstitucionalidade, exceto quando houver inconstitucionalidade reconhecida por ADI ou via incidental no STF, desde que ocorra a suspensão da execução de ato normativo pelo Senado.

Por esta razão, eventual tentativa de mitigar a aplicação do artigo 15 da LC 24/75 às hipóteses por ele contempladas esbarra na própria lei processual estadual, segundo a qual é vedado afastar aplicabilidade de lei plenamente válida, vigente e eficaz. Deste modo, é esperado que a E. Câmara Superior do TIT, quando se debruçar sobre a matéria, na sua nobre e histórica função de “guardiã da legalidade”, leve em conta a vigência do artigo 15 da LC 24/75, o posicionamento do E. STF sobre a matéria, aplique o preceito vigente no novo CPC (aplicável supletiva e subsidiariamente ao processo administrativo) de valorização da jurisprudência e, assim, siga a interpretação que se construiu nas Câmaras Julgadoras.

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[1] Caso seja editada a Súmula Vinculante nº 69, que estabelece: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional”, haverá um “efeito dominó” em todos os benefícios fiscais concedidos unilateralmente, obrigando os próprios Estados que os concederam, a cobrar de seus contribuintes os valores que deixaram de ser pagos em razão dos benefícios. Por outro lado, realizada esta cobrança do imposto, serão validados os créditos tomados pelos adquirentes das mercadorias beneficiadas, obrigando os Estados a cancelarem as autuações de glosa de crédito indevido do ICMS. Nota-se, portanto, uma inversão alarmante nas provisões das contas públicas estaduais. 

[2] “Art. 1º – A Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância, a que se encontram, os centros consumidores de seus produtos.” (g.n.)

[3] “Art. 40. É mantida a Zona Franca de Manaus, com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição”. 

[4] “Art. 15 – O disposto nesta Lei não se aplica às indústrias instaladas ou que vierem a instalar-se na Zona Franca de Manaus, sendo vedado às demais Unidades da Federação determinar a exclusão de incentivo fiscal, prêmio ou estimulo concedido pelo Estado do Amazonas”. (g.n.)

[5] “67. Interpretar de maneira irrestrita o disposto no artigo 15 da LC 24/75, seria criar a possibilidade de políticas unilaterais irrestritas de benefícios de ICMS, não aprovadas nos limites do pacto federativo, capazes de afetar negativamente os mercados em todo o território nacional, favorecendo empresas, quanto à tributação estadual, em limites superiores e não ajustados ao próprio escopo dos benefícios de tributação federal que se aplicam à Zona Franca de Manaus..” (Processo DRT-16-52596/2011, Rel. Fábio Castilho, da 15ª Câmara Julgadora, em 07.12.2011)

[6] ABRUCIO, Fernando Luiz; FRANZESE, Cibele. Federalismo e políticas públicas: o impacto das relações intergovernamentais no Brasil in BRANDÃO JUNIOR, Salvador Cândido. Federalismo e ICMS: Estados-membros em “Guerra Fiscal”. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 29.

[7] Processo Administrativo decorrente do AIIM nº 4.004.463-4, julgado aos 09/10/2014 pela 6ª Câmara Julgadora; Processo Administrativo ensejado pelo AIIM nº 4.004.464-6, julgado aos 29/10/2014 pela 11ª Câmara Julgadora; Processo oriundo do AIIM nº 4.037.415-4, julgado aos 21/10/2015 pela 8ª Câmara Julgadora; Processo originado pelo AIIM nº 4.050.635-6, julgado em 07/10/2015 pela 10ª Câmara Julgadora; Processo decorrente do AIIM 4.050.642-3, julgado recentemente (05/05/2016) pela 3ª Câmara Julgadora, cujo acórdão ainda não foi publicado. 

[8] STF, ADI nº 310, Rel. Min Cármen Lúcia, DJ 19/02/2014, DJE 09/09/2014.

[9] CHIAVASSA, Tércio; SIMONE, Diego Caldas R. de. Guerra Fiscal e a concessão de Benefícios de ICMS na Zona Franca de Manaus. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 233, RT, fev./2015, p. 144.

[10] Entre outras: ADI nº1.179/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Veloso, doe 19.12.2002, Medida Cautelar em ADI nº 902/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, doe 22.04.1994.

Por Fábio Zanin Rodrigues- Advogado, mestre pela Universidade de Coimbra/Portugal, pós-graduado pelo IBET.

Por Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli - Advogado, mestre e doutor pela PUC/SP. Coordenador do Comitê Tributário do CESA/SP e presidente do Comitê de Sociedade de Advogados da ABAT.

Fonte: Jota

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