Nas minhas duas últimas colunas, tratei da fragilidade de regras tributárias que foram estabelecidas com o objetivo de fazer face aos graves problemas orçamentários pelos quais passam os estados. Naquelas oportunidades, comentei normas que envolviam especificamente o estado do Rio de Janeiro e que eram relativas à reedição da Lei Noel e à determinação de que o aumento do Fundo de Pobreza deveria ser refletido no Rio Têxtil.
Nesta coluna, continuarei abordando o mesmo tema, mas em um espectro maior. Tratarei das regras recentemente instituídas pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), segundo as quais os estados ficam autorizados a condicionar a fruição de incentivos e benefícios fiscais, financeiros ou financeiros-fiscais[1], ao depósito pelas empresas beneficiárias de montante equivalente a, no mínimo, 10% do valor do benefício, no “fundo de equilíbrio fiscal”, cuja destinação específica consistirá na “manutenção do equilíbrio das finanças públicas”. Alternativamente, ficaram os estados autorizados a simplesmente reduzir o montante dos referidos benefícios em igual proporção.
Desde então, muito tem se discutido a respeito da aplicação dessas regras. Que natureza teriam essas normas? O Confaz teria competência para editá-las? Elas poderiam alcançar benefícios já constituídos, inclusive aqueles concedidos unilateralmente pelos estados, sem o prévio consentimento do próprio Confaz? Disso resultaria a convalidação por esse órgão dos benefícios concedidos sem a sua prévia aprovação? Pelo princípio da anterioridade, essas normas poderiam ser aplicadas já em 2016, ou o referido princípio deveria ser observado? A destinação do percentual de 10% do benefício fiscal ao fundo estadual seria admissível em face da vedação constitucional a que impostos tenham destinação específica?
De forma objetiva, como ocorre em regra nas análises feitas neste espaço, abordarei em seguida cada uma dessas indagações.
Vejamos a primeira: que natureza teriam essas normas? Seria o Confaz competente para editá-las?
Para que possamos definir a natureza dessas regras, temos, antes, que verificar os efeitos que elas produzem. No caso, como visto, o convênio autorizou não somente o depósito ou a redução do equivalente a 10% dos benefícios fiscais criados (ou que viessem a ser criados), como também determinou que a unidade federada que optasse pela alternativa do depósito instituísse, no âmbito da sua legislação, um “fundo de equilíbrio fiscal, destinado à manutenção do equilíbrio das finanças públicas” (onde o referido depósito deverá ser realizado).
Quanto às duas alternativas criadas pelo convênio (depósito de parcela de 10% dos benefícios concedidos, ou simplesmente a sua redução em proporção equivalente), o efeito que elas geram é o de simplesmente revogar parcialmente os referidos benefícios. Trata-se, consequentemente, de matéria inserida na competência normativa do Confaz, nos termos da Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, cujos artigos 1º e 2º, parágrafo 2º, são claros ao determinar que os benefícios fiscais relativos à incidência do ICMS são revogáveis, total ou parcialmente, nos termos de convênios celebrados no âmbito daquele órgão, observado o quórum mínimo de aprovação de quatro quintos dos representantes presentes.
O problema surge com a determinação feita pelo Convênio ICMS 42/16 (que já constava do Convênio ICMS 31/16) de que a unidade federada que optasse pela alternativa do depósito instituísse, no âmbito da sua legislação, o “fundo de equilíbrio fiscal, destinado à manutenção do equilíbrio das finanças públicas”.
Com essa determinação, há, na verdade, o estabelecimento de normas e condições relativas à criação do fundo, em que se dispõe, inclusive, sobre a destinação dos recursos que nele sejam depositados (manutenção do equilíbrio das finanças públicas). Trata-se, portanto, de matéria cujo teor, nos termos do artigo 165, parágrafo 9º da Constituição Federal, é reservado à lei complementar, como se vê no texto abaixo transcrito:
“Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:
§ 9º Cabe à lei complementar:
II – estabelecer (...) condições para a instituição e funcionamento de fundos”.
Note-se que esse dispositivo constitucional não determina que os fundos devam ser criados por lei complementar. Ele impõe, tão somente, que regras dessa natureza devam ser utilizadas na definição das normas gerais relativas à matéria, restando, assim, configurada a inconstitucionalidade/ilegalidade do Convênio ICMS 42/16, por extrapolação da competência acima referida.
Extrapolações, como essa, são frequentes no que diz respeito às normas editadas no âmbito do Confaz, cuja competência está adstrita à criação e à revogação de benefícios fiscais relativos ao ICMS, à disposição sobre regras gerais relativas a obrigações acessórias, à prestação mútua de assistência em fiscalizações etc., não lhe sendo admitido dispor sobre normas gerais de Direito Financeiro ou Tributário, que é matéria reservada a lei complementar. Isso só será possível se e quando houver expressa autorização nesse sentido, como ocorreu na promulgação da Constituição Federal, em 1988, quando se determinou que, enquanto não fosse editada a lei complementar necessária à instituição do ICMS, o Confaz poderia exercer provisoriamente essa competência. Isso foi feito por meio do Convênio ICM 66/88, com excessos que posteriormente tiveram que ser afastados pela jurisprudência dos nossos tribunais.
Ultrapassadas essas constatações, passemos agora ao segundo set de indagações.
Essas novas regras do Convênio ICMS 42/16 poderiam ser consideradas abrangentes de todos os benefícios já constituídos, inclusive aqueles concedidos unilateralmente pelos estados, sem o prévio consentimento do próprio Confaz?
Como é notório, o corpo legislativo de cada unidade da federação normalmente conta tanto com benefícios ou incentivos fiscais que encontram fundamento em convênios, ou na própria Constituição Federal (como é o caso da Zona Franca de Manaus), quanto com aqueles que são editados unilateralmente pelos estados, sem a prévia aprovação do Confaz.
É por meio destes últimos que se instaura a tão comentada guerra fiscal. E é pacífica a jurisprudência dos nossos tribunais no sentido de serem inválidos e, consequentemente, ineficazes os benefícios fiscais criados sem que tenham sido atendidas aquelas regras, vale dizer, sem a prévia aprovação do Confaz[2].
Se não produzem efeitos, não é de se pressupor que tais benefícios (concedidos unilateralmente pelos estados) estejam abrangidos pelas regras constantes do novo convênio, que determinam o depósito ou a redução em montante equivalente a 10% dos incentivos fiscais concedidos.
De fato, não é razoável pressupor que tais regras possam ser interpretadas como se estivessem se referindo a benefícios criados ao arrepio da observância dos procedimentos determinados pela LC 24/75[3].
Porém, sob um outro enfoque, seria válida a interpretação de que, dessas novas regras, resultaria a convalidação pelo Confaz dos benefícios concedidos sem a sua prévia aprovação?
Parece-me que não. De fato, justamente pela impossibilidade da pressuposição acima referida (de que o convênio estaria também se referindo às normas ilegalmente criadas) é que se torna forçosa a conclusão de que essa interpretação de que teria havido convalidação só seria possível se houvesse expressa menção nesse sentido, o que não ocorreu na edição de qualquer dos dois convênios (31/16 e 42/16).
De fato, não seria mesmo de se pressupor que, após editar o Convênio ICMS 70/14 (já por mim comentado nesta coluna), que tão amplamente dispôs sobre como deveriam ser as regras relativas à concessão de remissão e anistia relativas a benefícios criados sem a sua prévia aprovação, viesse agora o Confaz tratar do mesmo assunto de forma tão frugal, convalidando de forma tácita, em meras entrelinhas, benefícios fiscais viciados em sua origem.
Repare o leitor que, mesmo que houvesse a expressa menção a essa convalidação, ainda assim seria questionável a sua validade, por se tratar de tentativa de “constitucionalização” superveniente, na medida em que se estaria atribuindo validade a norma que teria nascido de forma inconstitucional.
Portanto, a meu ver, as normas do Convênio ICMS 42/16 se referem estritamente aos benefícios fiscais que tenham sido criados no âmbito do Confaz e não devem ser compreendidas como convalidadoras dos benefícios que foram criados ao arrepio daquele órgão.
Surge, contudo, uma dúvida: todo e qualquer benefício, desde que aprovado pelo Confaz, estará abrangido pelas regras de revogação parcial em exame?
Como bem salientou o nosso colega de coluna Igor Mauler Santiago, em recente entrevista dada à imprensa sobre a matéria, estão incólumes a qualquer alteração as isenções (e, por analogia, todos os demais benefícios fiscais) que tenham sido concedidas sob condição e a prazo certo.
Tem absoluta razão o nosso querido amigo. Trata-se de direito adquirido do contribuinte, que não pode ser alterado por lei superveniente, como determina o Código Tributário Nacional, no seu artigo 178, abaixo transcrito[4]:
“Art. 178 – A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104” (grifos meus).
A referência feita, no texto acima transcrito, ao artigo 104, inciso III, do CTN, nos leva a outra das indagações a que me referi no início desta coluna, relativa à necessidade de observância ao princípio da anterioridade na aplicação das regras impostas pelo convênio em exame.
Determina o referido artigo 104 que “entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre patrimônio ou a renda, que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178”.
Houve muita discussão nos nossos tribunais sobre o alcance desse dispositivo, tendo, inclusive, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se firmado em sentido contrário à sua validade, sob o argumento de que, “na isenção, o tributo já existe. Por isso, revogado o favor legal, força é concluir que um novo tributo não foi criado, senão que houve apenas a restauração do direito de cobrar o tributo, o que não implica a obrigatoriedade de ser observado o princípio da anterioridade”[5].
Esse entendimento jurisprudencial, do qual resultou o verbete 615 da Súmula do STF (segundo o qual “o princípio constitucional da anualidade não se aplica à revogação da isenção do ICM”), se baseou no fato de que, no Direito Tributário pátrio, a isenção é instituto do qual decorre mera exclusão do crédito tributário, o que faz pressupor a incidência do tributo. Logo, a revogação da isenção não gera o efeito de criar nova incidência, mas simplesmente o de permitir a manutenção do crédito tributário respectivo, por meio da extinção da regra que determinava a sua exclusão.
Contudo, a 1ª Turma do STF, em 2 de setembro de 2014, no julgamento do Ag. Reg. no RE 564.225 – do Rio Grande do Sul, tendo sido relator o ministro Marco Aurélio Mello, passou a adotar entendimento diverso, como se vê no trecho da ementa abaixo transcrito:
“Promovido aumento indireto do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS por meio da revogação de benefício fiscal, surge o dever de observância ao princípio da anterioridade, geral e nonagesimal, constante das alíneas “b” e “c” do inciso III do artigo 150, da Carta”.
Como lembrado pelo próprio ministro Marco Aurélio, no julgamento do precedente acima, decisão semelhante havia sido tomada no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.325/DF, que tratou da aplicação desse princípio à regra contida na lei complementar 102, de 11 de julho de 2000, que postergava a utilização de créditos de ICMS, na aquisição de bens do ativo permanente.
Vê-se, assim, que há amparo em precedente do STF para que se sustente a necessidade de observância do princípio da anterioridade, quando aplicadas as regras de depósito ou de redução contidas no convênio em exame.
Por fim, resta-me examinar a última questão que propus comentar nesta oportunidade, que diz respeito à validade da destinação do percentual de 10% do benefício fiscal ao fundo estadual que se pretende ver criado nas unidades da federação que optarem pela alternativa do depósito.
Ora, na medida em que se revoga parcialmente o benefício fiscal, tem-se revigorada, na mesma proporção, a incidência do ICMS antes inibida pelo próprio incentivo.
Quando se determina que a parcela do benefício reduzida (equivalente, portanto, à parcela de incidência revigorada) terá que ser depositada no “fundo de equilíbrio fiscal”, cuja destinação específica consistirá na “manutenção do equilíbrio das finanças públicas”, tem-se flagrante violação ao disposto no inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal, segundo o qual é vedado vincular receita de impostos a “órgão, fundo ou despesa”.
Houve, no passado, discussão sobre a extensão das consequências e efeitos decorrentes da desobediência dessa regra: se tal inobservância configuraria mero descumprimento das regras de Direito Financeiro (o que impediria tão somente que houvesse a afetação do valor cuja destinação específica se determinasse), ou se dela resultaria a própria inexigibilidade do tributo em si, cuja parcela fosse comprometida com a referida destinação.
A jurisprudência acabou por pacificar-se no sentido de que “a destinação específica contamina o próprio acréscimo”[6], quando a ela vinculado desde a sua origem. Aplicando-se essa jurisprudência ao caso em exame, temos que será inconstitucional a própria incidência decorrente da revogação parcial promovida nos termos do Convênio ICMS 42/16, e não somente a regra que determina o depósito do respectivo valor no “fundo de equilíbrio fiscal”.
Todas essas indagações e comentários servem para demonstrar que, no que diz respeito a iniciativas tendentes a sanar os problemas orçamentários dos estados, continuamos a estar em terreno repleto de armadilhas.
Folgo em ver que, pelo menos, no discurso de posse do presidente interino, Michel Temer, e em entrevistas concedidas pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, o governo federal parece estar atento ao problema e que medidas são estudadas no sentido de rever o pacto federativo, de forma a atribuir-se verdadeira autonomia aos estados, o que lhes ajudará a sair da crise em que se encontram. Como disse o presidente interino, em seu discurso de posse, “a força da União deriva da força dos estados e dos municípios”.
[1] Estão abrangidos por essa regra os benefícios fiscais já concedidos ou que ainda venham a ser concedidos, inclusive os decorrentes de regimes especiais de apuração.
[2] Nesse sentido, cito os seguintes precedentes: ADI 4.276, Tribunal Pleno, relator ministro Luiz Fux, de 20/8/2014; ADI 2.345, Tribunal Pleno, relator ministro Cezar Peluso, de 30/6/2011; ADI 3.794, Tribunal Pleno, relator ministro Joaquim Barbosa, de 1º/6/2011; ADI 3.664, Tribunal Pleno, relator ministro Cezar Peluso, de 1º/6/2011.
[3] Nessa linha, gera perplexidade a notícia recentemente veiculada de que, em reunião extraordinária do Confaz, teriam os secretários estaduais de Fazenda recebido com entusiasmo proposta de convênio pelo qual se determinava a extinção de incentivos fiscais “em vigor” concedidos sem a aprovação do órgão. De fato, para isso, não é necessário convênio.
[4] Sobre o tema, vale citar também o teor da Súmula 544 do STF: “Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas”.
[5] RE 204.026, 2ª Turma, relator ministro Maurício Correia, de 27/8/1996. No mesmo sentido, cito os seguintes precedentes do STF: RE 204.062, 2ª Turma, relator ministro Carlos Velloso, de 27/9/1996; RE 97.482, 1ª Turma, relator ministro Soares Muñoz, de 26/10/1982; RE 102.993-5, 2ª Turma, relator ministro Aldir Passarinho, de 19/4/1985; MC na ADI 4.016, Tribunal Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, de 1º/8/2008; AgRg no RE 562.669, 1ª Turma, relator ministro Ricardo Lewandowski, de 3/5/2011.
[6] RE 97.718-0, Tribunal Pleno, relator ministro Soares Muñoz, de 24/3/1983 - trecho extraído do voto vencedor do ministro Moreira Alves. No mesmo sentido, cito os seguintes precedentes do STF: RE 183.906-6, Tribunal Pleno, relator ministro Marco Aurélio, de 18/9/1997; RE 213.739, Tribunal Pleno, relator ministro Marco Aurélio, de 6/5/1998; AgRg no AI 635.243, 2ª Turma, relator ministro Ayres Britto, de 13/9/2011.
por Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto, presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ), conselheiro da OAB-RJ, diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.
Fonte: Conjur
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