Conforme tem sido amplamente divulgado pela imprensa, os Estados e o Distrito Federal estão enfrentando uma grave crise financeira decorrente da deterioração das contas públicas, tendo em vista a queda na arrecadação de tributos e o aumento das despesas correntes.
Nesse contexto, no último dia 13 de abril de 2016, foi publicado o Convênio ICMS 31/2006, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que busca vincular a destinação de parte dos incentivos fiscais recebidos pelas empresas para fundos de desenvolvimento e de equilíbrio fiscal estadual e distrital, visando o desenvolvimento e a manutenção do equilíbrio das finanças públicas estaduais e distrital.
Embora a medida ainda não tenha sido implementada na prática, já foi noticiado pela imprensa[1] que, ao menos os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Alagoas e Santa Catarina pretendem adotá-la. Nesse contexto, tendo em vista o nítido caráter arrecadatório da aludida medida, é oportuno analisar sua compatibilidade com a legislação tributária.
Em primeiro lugar, faz-se necessário ressaltar que tal exigência não pode ser considerada uma mera condição para a outorga de isenção, pois seria incongruente sob o ponto de vista lógico. Não faz sentido que o Estado imponha como condição para conferir ao contribuinte um benefício fiscal que este retorne, indiretamente, parte deste mesmo benefício fiscal. O resultado seria a anulação parcial do incentivo.
Diante disso, resta indagar qual seria a natureza jurídica do pagamento a ser efetivado pelos contribuintes. Por se tratar de uma prestação pecuniária compulsória, em moeda, que não decorre de sanção por ato lícito, que deverá ser exigida através de lei e cobrada de forma vinculada pelos Estados e o Distrito Federal, conclui-se que todos os requisitos previstos no artigo 3º do Código Tributário Nacional[2] estão atendidos e, portanto, trata-se de um tributo.
Caracterizada a natureza jurídica de tributo, é necessário verificar se este está em linha com as disposições constitucionais e legais aplicáveis. Diante das características de tal tributo, nos parece que duas interpretações seriam possíveis: (i) trata-se de exigência de ICMS com a vinculação da arrecadação para um fundo específico ou (ii) trata-se de uma nova espécie de contribuição, calculada com base nos incentivos fiscais concedidos, com a arrecadação destinada para o fundo mencionado acima.
A segunda interpretação nos parece a mais correta. Primeiro porque o tributo em questão não tem por fundamento a atividade de circulação jurídica de mercadoria, hipótese de incidência do ICMS, mas sim o fato de o contribuinte receber um incentivo fiscal, situação que em nada se compara com o ICMS, evidentemente. Segundo porque o montante arrecadado terá destinação vinculada a um fundo específico.
No entanto, independentemente da interpretação que se considere correta, entendemos que ambas as hipóteses são inconstitucionais e não poderiam ser exigidas. Isso porque, se considerado tal tributo como um imposto com destinação específica, a inconstitucionalidade há de ser reconhecida por flagrante desrespeito ao inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal[3], uma vez que, salvo hipóteses bem delimitadas na Constituição, a destinação da arrecadação dos impostos não pode ser vinculada.
Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Supremo Tribunal Federal, no contexto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.529/PR[4]; declarou-se a inconstitucionalidade da Lei 13.133/2001, do Estado do Paraná, que instituiu o Programa de Incentivo à Cultura, vinculando parte da receita do ICMS ao Fundo Estadual de Cultura.
Por outro lado, se considerado tal tributo uma nova hipótese de contribuição, a inconstitucionalidade estará igualmente presente, pois exceção feita à contribuição para custeio do regime previdenciário dos servidores públicos estaduais[5], não há, na Constituição Federal, qualquer dispositivo que permita a instituição de contribuição por parte dos Estados e do Distrito Federal.
Resta claro, portanto, que embora tenha características de tributo, a cobrança prevista no Convênio em questão está em conflito direto com a Constituição Federal e não pode ser exigida.
Como um último argumento, os Estados e o Distrito Federal poderiam alegar que se trata de medida compensatória, em observância ao artigo 14, inciso II[6] da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/00). Contudo, não parece ser este o caso, pois, além de não ter sido demonstrado que o desequilíbrio das contas públicas é decorrente de benefício fiscais concedidos ou que serão concedidos pelos Estados e o Distrito Federal, a medida prevista para supostamente compensar a renúncia tributária é inconstitucional, conforme demonstrado acima.
Ainda que tais inconstitucionalidades pudessem ser desconsideradas e que se assuma que o referido tributo é legítimo, é evidente que o recolhimento de tal montante representa um aumento indireto do ICMS, tendo em vista que acaba por reduzir o benefício anteriormente concedido e, portanto, implica aumento da carga tributária do contribuinte. Nesse contexto, somente poderia ser exigido através de lei e, considerando o entendimento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 564.225/RS[7], com observância ao princípio da anterioridade.
Oportuno ressaltar, também, a impossibilidade de cobrança nas hipóteses de incentivo fiscal concedido por prazo certo e em função de determinadas condições, pois é vedada a sua modificação, tendo em vista a ressalva expressamente contida no artigo 178 do Código Tributário Nacional[8].
Há, ainda, outras questões que precisariam ser endereçadas como, por exemplo, se tal tributo seria aplicável para as situações em que o benefício fiscal foi concedido sem a aprovação unânime do Confaz e que, a princípio, seria inconstitucional. Ao lado disso, o tema repercute na guerra fiscal entre os Estados, na medida em que é possível que certos entes optem por não exigir aludido tributo dos contribuintes. Nessa situação, é evidente que as empresas tendem a optar por realizar os seus investimentos nos Estados em que a exigência será dispensada, agravando ainda mais a disputa entre os Estados.
Diante das considerações trazidas acima, embora seja compreensível a intenção dos Estados e do Distrito Federal de buscar novas formas de arrecadação para equilibrar as contas públicas, vê-se que há questões jurídicas e econômicas que devem ser consideradas antes que a exigência prevista pelo Confaz no Convênio ICMS 31/2016 seja efetivamente imposta, sob pena de se criar uma nova disputa judicial entre o Fisco e os contribuintes que certamente será prejudicial para ambos os lados.
[1] Valor Econômico, “Convênio do Confaz levará Estados a reter parte dos benefícios fiscais”, publicado em 20/04/2016.
[2] “Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
[3] “Art. 167 - São vedados:
(...)
IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvada a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;”
[4] Julgado em 14.06.2007.
[5] Artigo 149, §1º da Constituição Federal.
[6] Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
(...)
II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
[7] Publicado no DJE em 18.11.2014
[8] “Art. 178 - A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104.”
por Eduardo Suessmann é advogado de Trench, Rossi e Watanabe Advogados, aluno do mestrado profissional da FGV Direito SP e membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da mesma instituição.
Fonte: Conjur
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