A compreensão da noção de empresa como uma simples forma de organização dos fatores de produção que busca a maximização dos lucros, ressaltando, portanto, o traço econômico do conceito, de há muito deixou de ser adequado.
Os tempos de um individualismo possessivo já vão longe. Hoje, com efeito, a empresa, inclusive por exigências constitucionais e infralegais, define-se também e especialmente pela sua função social. A empresa tem o importante papel social de promoção da dignidade humana, na mais abrangente acepção que a expressão possa merecer, nos precisos termos do artigo 170 da Constituição Federal, que cuida dos princípios gerais da atividade econômica.
Ademais, a empresa, vista como uma universalidade de direitos e obrigações, invariavelmente reúne importante acervo de informações, técnicas e soluções inovadoras, decorrente do exercício de sua atividade econômica. Esse cabedal também diz com sua função social e seu desenvolvimento e preservação contribuem para a afirmação da soberania nacional, outra exigência constitucional. É justamente esse espírito, de preservação desse valiosíssimo acervo nacional, que fundamenta há quase dez anos a Lei de Recuperação judicial (Lei 11.101/2005). Mais uma vez, atente-se para o disposto no mesmo artigo 170 do texto constitucional.
Zelo pela coisa pública, efetividade de controles no uso do dinheiro público, são exigências de qualquer Estado de Direito
Não bastassem tais observações, para afirmar a imprescindibilidade da empresa como importante vetor de transformação da ordem econômica e social, impende assinalar que não socorre entendimento diverso a hipótese da internacionalização dos mercados, especialmente aqueles marcados por alto grau de desenvolvimento tecnológico, a partir do quê, empresas estrangeiras possam perfeitamente substituir suas congêneres nacionais. Inúmeras são as políticas de governo, consubstanciadas em textos normativos, que conferem nítida primazia às empresas nacionais, sem que isto signifique, de forma alguma, desconformidade com a Constituição Federal. Ao revés, o que se busca é a afirmação da plenitude do desígnio constitucional brasileiro.
Essas constatações assumem especial relevo quando se cuida de discutir os limites da responsabilização administrativa e civil das empresas por atos de corrupção.
Com efeito, os relevantes papéis sociais que cumpre, na dicção do texto constitucional, não autorizam a conclusão de que se possa colocar em risco a própria atividade empresarial, quando se cuida de buscar o ressarcimento por supostos atos de corrupção que possam ter cometido seus administradores e mesmo acionistas.
Acordos de leniência que tragam nitidamente o viés punitivo, importando, na prática, em solução de continuidade da própria atividade empresarial de uma dada sociedade empresarial ou mesmo do grupo econômico do qual faça parte, não podem ser aceitos porque violam, no limite, o texto constitucional. Não se trata, por conseguinte, de ser ou não tolerante com a eventual malversação de recursos públicos, nem, tampouco, com a impunidade. Zelo pela coisa pública, efetividade dos mecanismos de controle no uso do dinheiro público, são exigências próprias de qualquer Estado de Direito. Apenas que, na tutela desses valores, não se compreende que se possa ir além do razoável, para atingir a própria atividade empresarial, colocando-a em risco. Aqui, o equivalente é pensar que se possa antever no sistema punitivo do Estado qualquer viés de vingança ou mesmo que se possa aceitar que a punição sirva para impor sofrimento, inclusive físico, ao apenado. Nada mais equivocado.
Esse ponto há de parametrizar, naturalmente, a fixação da inteligência, por exemplo, dos dispositivos da Lei nº 12.846 (Lei Anticorrupção), de 1º de agosto de 2013 e cuja entrada em vigência se deu a partir de fevereiro do ano passado, não podendo alcançar, por óbvio, fatos que lhe sejam pretéritos. Diz-se natural porque se trata de um diploma legislativo recém-ingresso no ordenamento jurídico nacional, estabelecendo um novo regime jurídico. Cumpre, portanto, aos operadores do direito, notadamente o Judiciário, complementar, por assim dizer, o processo legislativo, integrando a norma no sistema jurídico positivo brasileiro.
Para concluir, no plano das contradições que eventualmente possam assaltar o sistema legal, o seu enfrentamento e superação hão de se dar a partir de juízos de ponderabilidade, que procurem maximizar a força normativa do conjunto do ordenamento jurídico ou, melhor, a "Vontade de constituição" (Wille zur Verfassung) sobre os fatores da realidade. Nessa medida, o papel transformador que a Constituição Federal conferiu à atividade econômica, organizada empresarialmente, deverá ser o norte desse juízo de ponderação e não a alternativa a ser contemplada ou não.
Evidente, portanto, que atenta contra as lições mais preliminares de direito toda e qualquer pretensão de responsabilização da atividade empresarial por atos que supostamente tenham sido cometidos por seus administradores e mesmo titulares, que possam comprometer a própria empresa.
por Sebastião Botto de Barros Tojal e Sérgio Rabello Tamm Renault são, respectivamente, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; ex-secretário de reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (2003/05) e subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República (2005/06)
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor
Via Alfonsin
Nenhum comentário:
Postar um comentário