Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
O dilema colocado por Marshall, na decisão do caso Marbury vs. Madison, “se a Suprema Corte permitisse a aplicação de leis inconstitucionais, ela, ao mesmo tempo que destruiria a Constituição, se autodestruiria”, alertou historicamente para o perigo da autodestruição da Suprema Corte americana: à medida que a Suprema Corte tornasse irrelevante a Constituição, ao mesmo tempo, a própria corte se tornaria também desimportante, abdicando de sua função de guardiã da Constituição e ferindo a divisão dos Poderes, para submeter-se, na prática, à flexibilização constitucional demandada pelos interesses contingentes do Poder Executivo: ou seja, a Suprema Corte seria apenas mais um foco desorientado e incoerente de manipulação do poder político de plantão.
Pesquisa empírica realizada no NEF – Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito de São Paulo da FGV, demonstra que o Supremo Tribunal Federal não corre o risco da histórica advertência de Marshall. Verificou-se que a jurisprudência do STF nos casos de declaração de inconstitucionalidade de norma de incidência tributária para efeito de restaurar a supremacia da Constituição mediante o exercício da repetição do indébito tributário é invicta: em todos os casos nega-se a modulação dos efeitos ex nunc, garantindo-se a ampla reparação da legalidade, permitindo a repetição do indébito ex tunc, segundo os limites pré-fixados de decadência e prescrição previstos no Código Tributário Nacional.
Em 100% desses casos, o STF não admitiu a modulação dos efeitos ex nunc, conforme o quadro-resumo:
Caso
| Declaração de Inconstitucionalidade | Modulação de Efeitos | Valor
Envolvido
|
Empréstimo Compulsório sobre Veículos | Sim | Não | CR$ 39,8 bi (US$ 3.6 bi) |
FINSOCIAL | Sim | Não | R$ 37,95 bi |
Progressividade do IPTU | Sim | Não | X |
ICMS Importação PF | Sim | Não | X |
Ampliação da Base de Cálculo do PIS e da COFINS | Sim | Não | R$ 29 bi |
FUNRURAL | Sim | Não | R$ 11 bi |
Idêntica pesquisa, nos casos de declaramação de constitucionalidade de norma instituidora de tributo, efetuada sobre a base de dados do STF revela que a corte mantém coerência institucional também quando o Fisco é vencedor no mérito: em todos os casos o Supremo negou pedido de modulação de efeitos do contribuinte para que o tributo seja exigido apenas ex nunc do reconhecimento da constitucionalidade. Ou seja, em perfeito alinhamento aos casos de declaração de inconstitucionalidade de norma de incidência tributária, seguindo o mesmo padrão das decisões referidas na conclusão anterior.
Resultado de pesquisa jurisprudencial revela que em 100% dos casos de declaração de constitucionalidade de norma de incidência tributária, o STF não admitiu a modulação dos efeitos ex nunc, conforme o quadro-resumo (v. Item 5):
Caso
| Modulação de Efeitos | Argumento Central para Não Modular os Efeitos |
FINSOCIAL sobre receita bruta de prestadoras de serviço | Não | A modulação sequer foi cogitada |
Creditamento de IPI por insumos sujeitos à alíquota zero, isentos ou não tributados | Não | Não há insegurança jurídica |
COFINS sobre faturamento de sociedades de profissão regulamentada | Não | Não há insegurança jurídica |
Portanto, verifica-se, com base em 100% da jurisprudência do Supremo, nos nove casos encontrados sobre controle de constitucionalidade de lei instituidora de tributo, que todas as decisões foram tomadas no sentido de garantir a restauração da legalidade e a supremacia da Constituição, mediante eficácia ex tunc do controle de constitucionalidade. Em controle de constitucionalidade de norma de incidência tributária não há espaço para modulação de efeitos porque não há incerteza jurídica: as hipóteses de controle e ulterior invalidade de normas tributárias (e seus respectivos efeitos) já estão previstas e reguladas pelo Código Tributário Nacional, quando dispõe sobre os limites da repetição do indébito, em conformidade com os prazos de decadência e prescrição em matéria tributária.
Certifica-se, assim, que em matéria tributária, o controle de constitucionalidade não gera insegurança jurídica. Muito pelo contrário, consolida e garante a segurança jurídica que, em matéria tributária, está no respeito à estrita legalidade como limite constitucional ao poder de tributar, matéria tão relevante para o Estado de Direito que recebeu do constituinte capítulo próprio: “Das Limitações do Poder de Tributar”. Além disso, o legislador complementar do Código Tributário Nacional cuidou exaustivamente de todos os efeitos decorrentes de eventual declaração de inconstitucionalidade de norma instituidora de tributo: delineando o instituto da repetição do indébito tributário e os respectivos limites ao seu exercício mediante os prazos de decadência e prescrição (arts. 165-169 do CTN). Desta forma, os efeitos do controle de constitucionalidade relativos a normas instituidoras de tributos são incompatíveis com a ideia de modulação de efeitos regulada pelo artigo 27 da Lei 9.868/1999, pois os reflexos tributários já encontram regime e tratamento próprio, sendo disciplinados exaustivamente pelo CTN, não ensejando, dessa forma, qualquer insegurança jurídica ou excepcional interesse social.
Nossas pesquisas sobre os debates legislativos que orientaram a edição do artigo 27 da Lei 9.868/99 demonstram que o objetivo do legislador foi outorgar ao STF instrumento de calibração para tratar de casos recalcitrantes em áreas em que os efeitos de declaração de inconstitucionalidade não foram previstos nem regulados (casos de lacuna normativa), que, em razão disso, demandavam a modulação dos efeitos do controle de constitucionalidade em nome da própria segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Pesquisa em casos positivos de modulação dos efeitos ex nunc revela que o posicionamento do STF é claro nesse sentido: a prospecção de efeitos é última opção, cabível apenas nas hipóteses de grave insegurança jurídica ou de violação de outro princípio da ordem constitucional que consubstancia excepcional interesse social.
Nesses grandes precedentes, a repercussão econômica do caso, por si só, nunca foi considerada elemento suficiente para justificar a atribuição de efeitos prospectivos às decisões. Para determinar a modulação, o STF sempre se pautou por razões de lacuna normativa, alteração de entendimento jurisprudencial e, em última instância, de insegurança no sistema jurídico, ex vi do quadro-resumo:
Caso
| Houve Modulação de Efeitos? | Argumento Central Para Modular os Efeitos |
Vereadores de Mira Estrela | Sim | Insegurança jurídica |
Defensoria Pública atende servidores no RS | Sim | Insegurança jurídica e Relevante interesse social |
Infidelidade Partidária | Sim | Insegurança jurídica |
Investidura de servidores públicos em MG | Sim | Insegurança jurídica e Relevante interesse social |
Decadência e prescrição de contribuições previdenciárias | Sim | Insegurança jurídica |
Regras de rateio do FPE | Sim | Insegurança jurídica |
Instituto Chico Mendes e medidas provisórias | Sim | Insegurança jurídica e Relevante interesse social |
Conflito de competência para julgar matéria de previdência privada | Sim | Insegurança jurídica e Relevante interesse social |
Conforme demonstrado, a jurisprudência do STF é inabalável e invicta no sentido de negar a modulação de efeitos em matéria de repetição de indébito tributário. O artigo 27 da Lei 9.868/99 foi criado para resolver casos de insegurança jurídica e de interesse social que se justificam em face de legítimas expectativas normativas frustradas pelo controle de constitucionalidade do STF. É descabido e juridicamente torpe admitir que o Fisco crie tributos em desrespeito à legalidade e à segurança jurídica mediante a edição de norma inconstitucional, para depois de reconhecida a patente inconstitucionalidade perante o STF, pleitear a convalidação dos efeitos de sua ilegalidade em nome da segurança jurídica. Portanto, é completamente descabida a pretensão do Fisco federal pleitear a modulação dos efeitos da decisão do STF que decretou a inconstitucionalidade da parte do artigo 7º, inciso I, da Lei 10.865, que se referia à inclusão do ICMS e do próprio PIS/COFINS-Importação na base de cálculo dessas contribuições: quem cria a insegurança não pode alegá-la em benefício próprio. Devendo os alegados R$ 34 bilhões envolvidos na causa, servir tão-apenas na dosimetria da pena dos responsáveis por tamanho dano ao cidadão contribuinte.
por Eurico Marcos Diniz de Santi é coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF/Direito GV) e da especialização em Direito Tributário da GVlaw; professor da graduação, Pós-GVlaw Tributário e Mestrado da DireitoGV; mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP; ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo - TITSP e ganhador do Prêmio “Livro do Ano” pela ABDT, em 1997, e do Prêmio Jabuti "Melhor Livro de Direito" em 2008.
Fonte: Conjur
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