A incidência do ICMS sobre “descontos” concedidos nas vendas de celulares está na pauta da Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas – a terceira e última instância do contencioso administrativo tributário paulista. O julgamento, iniciado em junho, é acompanhado com atenção pelas operadoras de telefonia (que contestam milionárias autuações relacionadas ao tema), e atrai os olhares de todas as empresas que fornecem mercadorias sob condições vantajosas, com o objetivo de impulsionarem a comercialização de outros produtos ou serviços.
Segundo se costuma dizer – com base no discurso cotidiano – a operadora de telefonia “subsidia” a compra de celular concedendo, ao cliente, um “desconto” sobre o “preço original” do produto. Para fazer jus ao “desconto”, o cliente deve comprometer-se a manter ativo o plano de telefonia por determinado período, sob pena de ter de pagar uma multa rescisória (não raramente correspondente ou proporcional ao “desconto” outrora concedido).
Seduzidas pelo discurso cotidiano, as autoridades fiscais têm defendido que o valor do “desconto” deve sujeitar-se à incidência do ICMS, pois é concedido sob a condição de que o plano de telefonia seja mantido em vigor pelo cliente durante o prazo mínimo de “fidelização”. Tratando-se, pois, de “desconto” condicionado, não haveria base legal que justificasse a exclusão de tal montante da base de cálculo do imposto.
O desconto a que se refere a lei tributária não é o concebido pela linguagem da propaganda ou do marketing
Em contrapartida, as operadoras de telefonia argumentam que o “desconto” é incondicionado, logo, não deve integrar a base de cálculo do imposto. Advertem, ademais, que previsão da multa rescisória não pode justificar a conclusão de que o “desconto” é condicionado, uma vez que aquela cumpriria a função de “desincentivar” a rescisão do plano de telefonia por iniciativa (ou culpa) do cliente.
No quadro que assim se delineia, tanto as autoridades fiscais quanto as operadoras de telefonia deparam-se com dificuldades para sustentarem suas teses. A mais grave delas remonta à premissa que ambos os lados assumem como ponto de partida de suas postulações: a de que a venda “subsidiada” pressupõe a concessão de um “desconto”.
Tal premissa não resiste a uma reflexão mais detida.
Seria ingenuidade deixar-se influenciar pela imprecisão do discurso cotidiano para o exame de questões tão complexas. As propagandas veiculadas na televisão, assim como os cartazes afixados nas vitrines de revendedores credenciados às operadoras de telefonia, podem falar de “desconto”. Nada disso, porém, mostra-se relevante ou determinante para atribuir à prática comercial em questão a qualificação técnico-jurídica do desconto.
O desconto a que se refere a lei tributária não é aquele concebido pela linguagem da propaganda ou do marketing; trata-se, à evidência, de instituto jurídico. Há desconto se, e somente se, o devedor torna-se titular de obrigação de dar coisa certa (e.g. o preço), e, em momento temporalmente e logicamente ulterior, o credor perdoa parcialmente a dívida preexistente. É juridicamente impossível pensar-se no desconto sem que preexista a obrigação a ser descontada.
Assim, quando as partes do contrato de venda e compra de celular determinam o preço da transação, fazem-no em consideração a um valor inferior ao de mercado (“tabelado”) já no momento em que se constitui a relação jurídica. Aí, desconto não há porque a dívida já nasce “descontada”.
Excluída a figura atécnica do “desconto”, fica fácil compreender que entre o contrato de venda e compra de celular e o contrato de prestação de serviços de telefonia opera-se a coligação contratual. Tal fenômeno não é novo na experiência jurídica brasileira, sendo paradigmáticos os casos, já tantas vezes examinados pela jurisprudência, de contratos gratuitos (e.g. comodato de refrigerador próprio para cerveja) coligados a contratos onerosos (e.g. fornecimento de cerveja).
Voltando ao tema dos celulares, o contrato de venda e compra assume, perante o contrato de prestação de serviços, uma posição de “dependência” – ou, melhor dizendo, de “sujeição”. Ele sofre os efeitos da coligação à medida que a formação do preço é influenciada pela contratação concomitante do plano de telefonia. O mesmo sucede quando, em outro momento, a multa rescisória (que não perde a sua natureza, nem extrapola o contrato de prestação de serviços) tem a capacidade eminentemente prática de restaurar o equilíbrio financeiro do contrato de venda e compra. Do ponto de vista puramente econômico, não seria errado dizer que a multa rescisória tem a aptidão (por efeito da coligação contratual) de “complementar” o preço do celular.
O ICMS não deve incidir sobre “descontos” imaginários. Na realidade, nem faz sentido discutir (como tem ocorrido no caso dos celulares) sobre o caráter condicionado ou incondicionado de descontos que não existem. A coligação de um preço “geneticamente baixo” a uma multa rescisória não apenas descreve corretamente (sob a perspectiva do direito civil) a operação realizada pelas operadoras de telefonia, como proporciona uma solução mais coerente e consistente para a controvérsia tributária que ela suscita.
por Luiz Carlos de Andrade Júnior é doutor em direito civil pela Faculdade de Direito da USP, advogado da área tributária do Koury Lopes Advogados (KLA)
Fonte: Valor Econômico.
Via Notícias Fiscais
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