Nos últimos anos, o Brasil tem vivenciado uma seríssima crise de insegurança jurídica no que tange ao ICMS, problemática que passou a ser conhecida como guerra fiscal.
As desigualdades econômicas e sociais brasileiras, com a concentração das indústrias em alguns poucos estados, induziram os demais entes políticos à instituição de incentivos fiscais inconstitucionais e ilegais que, rapidamente, se disseminaram por todo o território nacional.
Tais incentivos vão desde a redução das alíquotas do imposto incidente na importação de bens e mercadorias, à concessão de créditos presumidos, determinação de redução de base de cálculo e outros artifícios jurídicos que acabam por impactar os estados de destino das mercadorias incentivadas.
E a pergunta que deve ser feita é: pode a evidente desigualdade econômica existente entre os estados legitimar a concessão de incentivos fiscais totalmente alheios ao sistema jurídico nacional?
Se, para os estudiosos do Direto, a resposta imediata e óbvia é um sonoro “não”, para empresários e grande parte dos estados que possuem arrecadação módica e que lutam para se desenvolver a conclusão é diametralmente oposta.
Mais sério que isso, é constatar-se, na prática, que investidores estrangeiros estão optando por não se instalar no Brasil, bem como que projetos de empresas nacionais estão engavetados à espera de que a situação se torne minimamente clara e segura.
Além disso, está-se diante de uma crise institucional, que tem levado secretários da Fazenda de estados a afirmar, nas palestras que vêm proferindo ao longo do Brasil, que, por conta dessa celeuma, não veem mais vantagens em o Brasil ser uma República Federativa, formada pela união indissolúvel dos estados.
Veja-se que se fala, ainda que em discurso retórico, em quebra do pacto federativo, sob o entendimento de que a união não faz mais a força, sendo ela prejudicial aos interesses de cada estado.
Quando se chega a esse ponto, constata-se que guerra fiscal é uma denominação branda para a situação que se vivencia atualmente no Brasil, justificando-se uma análise legislativa, sistêmica e crítica do assunto.
Estrutura constitucional e legal do ICMS
Nenhum imposto brasileiro foi tão detalhado na Constituição Federal quanto o ICMS, o que se deu por intermédio do seu art. 155, II, §2º.
Tratando-se o Brasil de um país com extensões continentais, constituído por 26 estados, além do Distrito Federal, fazia-se, de fato, necessário um regramento completo e rígido, de forma a se evitar justamente o que se tem neste momento, a saber, o conflito de competências, o desrespeito às instituições e a insegurança jurídica.
Da leitura do inciso I, do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, constata-se que a característica essencial do ICMS é a sua submissão à não cumulatividade.
Em decorrência dele, há estreita relação entre os estados da Federação, dado que aquele em que está localizado o contribuinte que adquire mercadorias advindas de outra unidade federada está obrigado a suportar o crédito referente ao valor que foi destacado em nota fiscal e recolhido ao estado de origem.
Igualmente em razão do caráter nacional do ICMS, a Constituição Federal, em seu art. 155, § 2º, IV prevê que resolução do Senado estabelecerá as alíquotas aplicáveis às operações e prestações interestaduais, previsão em decorrência da qual foi editada a Resolução 22/89, determinando que a alíquota aplicada às operações interestaduais entre contribuintes é de 12%, exceção feita às operações e prestações realizadas nas regiões Sul e Sudeste, destinadas às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e ao estado do Espírito Santo, em relação às quais a alíquota a ser aplicada é de 7%.
A existência de tratamento diverso dado às alíquotas internas e interestaduais nos termos acima tem origem no princípio federativo e na busca pelo fim das desigualdades sociais e econômicas no Brasil.
Nesse sentido, o imposto não será recolhido apenas para o estado de origem de mercadoria ou para o de destino. Diferentemente, quando a operação entre contribuintes envolver mais de um estado, parte do imposto será devida ao estado de origem, parte ao de destino.[1]
Paralelamente, o art. 155, §2º, XII, g da Constituição Federal prevê que cabe à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Esse papel competiu à Lei Complementar nº 24/75, recepcionada pela atual Constituição Federal, de acordo com a qual:
a) qualquer incentivo fiscal concedido com base no ICMS, dos quais resulte sua redução ou eliminação, direta ou indireta, serão outorgados nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos estados e pelo Distrito Federal;
b) tais convênios serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os estados e do Distrito Federal;
c) as reuniões realizar-se-ão com a presença de representantes da maioria das unidades da Federação, sendo que a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos estados representados.
Como se vê, a delimitação constitucional do ICMS clara e objetiva, não havendo dúvidas sobre os limites da competência tributária a ser exercida pelos estados.
Porém, o que se tem na atualidade é, de um lado, o absoluto desrespeito a referidas regras, sob a alegação de busca de desenvolvimento pelos estados concessores de incentivos inconstitucionais e ilegais, e, de outro, a impotência dos contribuintes, que veem estagnados projetos de novos investimentos, bem como permanecem com a dúvida sobre a possível perda de todos os investimentos feitos ao amparo de normas estaduais, hoje sabidamente inconstitucionais. Além disso, convive-se com a indefinição do Supremo Tribunal Federal quanto aos limites das declarações de inconstitucionalidade de incentivos fiscais já proferidas.
Insegurança jurídica
A guerra fiscal iniciou-se de maneira sorrateira, mediante a concessão, em baixa escala, de incentivos fiscais inconstitucionais e ilegais, principalmente nas regiões Centro-Oeste e Nordeste.
Em um primeiro momento, e sob um enfoque exclusivamente econômico do ente concessor dos incentivos, o que ocorreu foi o início da estruturação industrial de estados notoriamente voltados ao agronegócio, principalmente nos municípios limítrofes aos estados tidos como desenvolvidos.
Tal processo também se deu em estados que passaram a fomentar a importação por intermédio de seus portos, mediante a concessão de incentivos fiscais igualmente inconstitucionais e ilegais, de tal forma que o ICMS devido na entrada das mercadorias passasse a ser diferido, sendo a saída subsequente realizada por percentuais muito inferiores à alíquota interestadual mínima prevista pelo Senado Federal, nos termos descritos no item II.1 acima.
Dada a constatação empírica de que pessoas jurídicas eram, de fato, atraídas a se instalar nos estados concessores de incentivos fiscais, a outorga de novos benefícios se disseminou, transformando-se em verdadeira febre nacional.
Ocorre que, como já mencionado, a concessão de referidos incentivos é realizada às custas dos estados adquirentes das mercadorias industrializadas ou meramente distribuídas a partir dos concessores.
Justamente por se estar diante de prática inconstitucional e ilegal, os incentivos fiscais não são destacados nas notas fiscais de venda de mercadorias, restringindo-se seus registros aos livros dos contribuintes, passíveis de serem verificados exclusivamente pelos estados nos quais estão instalados.
Como consequência, os adquirentes dos produtos, constatando a oferta de melhores preços por pessoa jurídica localizada em um determinado estado da Federação, desconhecendo (ou não) ser o vendedor beneficiário de incentivo fiscal, adquire dele a mercadoria, recebendo-a com o destaque de alíquota interestadual, de acordo com a legislação de regência do ICMS, e creditando-se do valor do imposto destacado em nota fiscal.
Apesar da aparente regularidade do documento emitido, é certo que o valor do imposto pago pelo vendedor da mercadoria é muito menor que aquele destacado e, consequentemente, creditado pelo adquirente.
Analisando-se a questão sob a ótica da estrita legalidade, e desconsiderando-se as desigualdades regionais notadamente existentes e que costumam justificar tal prática, está-se diante da concessão de incentivos às custas alheias. Além disso, induz à prática de concorrência desleal, já que contribuintes que recebem incentivos podem vender seus produtos por preços muito menores que aqueles praticados por quem se submete ao regramento constitucional de regência do ICMS.
Todo esse quadro não tardou a induzir os estados prejudicados a realizar glosas de créditos tomados por aqueles contribuintes adquiriram tais mercadorias. Ato contínuo, os grandes contribuintes, notadamente aqueles voltados ao varejo, passaram a exigir dos vendedores localizados em estados concessores de incentivos, que prestassem declarações no sentido de que não usufruíam de tais benefícios, ou, se usufruíssem, que se responsabilizariam pelo pagamento do ICMS e respectivas penalidades caso os adquirentes fossem autuados em decorrência da glosa de créditos.
Nesse momento, as pessoas jurídicas que se mudaram para estados longínquos, em busca de um diferencial tributário, passaram a se deparar com o risco de ver todo o seu investimento perdido.
A despeito da aparente legitimidade do procedimento adotado pelos Estados que se viram prejudicados, é necessário perguntar: dada a repartição de Poderes estabelecida pelo art. 2º da Constituição Federal, tem o Poder Executivo estadual competência para declarar a inconstitucionalidade de incentivos concedidos por outro estado? Essa competência não é atributo exclusivo do Judiciário?
Apesar da óbvia constatação de que somente ao Poder Judiciário cabe a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, fato é que os estados que se sentem prejudicados acabam por lavrar autos de infração milionários contra contribuintes que adquirem produtos incentivados, os quais são obrigados a contratar advogados e garantir execuções fiscais para poderem exercer seu direito de afastar as glosas realizadas.
Ao final de uma demanda de anos, o contribuinte glosado deverá ter seu direito reconhecido, o que, por outro lado, implicará a condenação do estado a ver o princípio da não cumulatividade e as demais regras constitucionais desrespeitadas e seus cofres literalmente arrombados.
Ao estado que se sente prejudicado cabe a propositura de ação direta de inconstitucionalidade perante o STF, visando ao afastamento da norma concessora de incentivos do Sistema Tributário Nacional. E aqui se entra mais a fundo no caos e na insegurança jurídica.
Primeiramente, há que se ressaltar que o Supremo já deixou claro seu posicionamento sobre a inconstitucionalidade dos incentivos fiscais concedidos sem autorização de convênio. Inclusive, em 2011, 14 deles foram afastados pela Corte Suprema, sob o entendimento de que benefícios fiscais, para serem válidos, devem necessariamente ser aprovados no âmbito do Confaz.
Porém, tais declarações de inconstitucionalidade não trouxeram os resultados pretendidos. Não há, até hoje, manifestação sobre a atribuição de efeitos ex tunc ou ex nunc às decisões, ou seja, não ficou definido se o reconhecimento das inconstitucionalidades retroage à data da criação das regras tidas por inconstitucionais ou se surtem efeito apenas a partir da decisão do STF.
E esta definição é de suma importância, já que, se for pela aplicação dos efeitos ex tunc, a regra de concessão dos incentivos fiscais deve ser afastada desde sua instituição, de tal forma que o estado que concedeu o incentivo fiscal e que contou com a confiança das pessoas jurídicas que ali se instalaram será obrigado a exigir desses mesmos contribuintes a totalidade dos valores que deixaram de ser pagos, sob pena, inclusive, de descumprimento das leis de responsabilidade fiscal.
Ao contribuinte de boa fé, que se fiou nas normas oriundas do Poder Legislativo estadual ou de acordos firmados individualmente com o governo local, caberá socorrer-se da via judicial para valer-se da propositura de ação de indenização para recuperação dos prejuízos, seja com os investimentos realizados, seja com os lucros cessantes.
Lembre-se que a maioria dos investimentos realizados em estados com pequena infraestrutura e longe dos principais centros consumidores pode deixar de ser viável dado, por exemplo, os custos de transporte até os mercados consumidores, inviabilizando a própria manutenção do estabelecimento.
Por outro lado, caso os contribuintes localizados em estados concessores de incentivos fiscais venham a ser obrigados a recolher os tributos que não foram quitados, os estados destinatários das mercadorias não mais poderão glosar os créditos tomados pelos contribuintes que adquiriram mercadorias incentivadas.
Quem acompanha de perto essa verdadeira guerra de poder constata que há muito a discussão saiu da esfera jurídica para tomar um cunho pessoal, podendo-se dizer que há verdadeiro ódio aos estados que se encontram “do outro lado”, seja ele qual for.
Nos bastidores do poder, o que se tem é o condicionamento de qualquer concessão para parte dos estados à aceitação de outras exigências feitas pelos demais, de tal forma que se torna impossível chegar-se a qualquer consenso.
Não por outro motivo, não é difícil se escutar, ainda que no ardor dos debates e sem a racionalidade que o tema exige, que melhor seria se houvesse a separação dos estados e a criação de novos organismos políticos, dada a impossibilidade de convivência sob o pacto federativo e as imensas perdas que estados de um lado e de outro vêm sofrendo.
Fato é que investidores estrangeiros que procuram o Brasil para fazer negócios estão desistindo do país. De um lado, se assuntam com esse emaranhado de inconstitucionalidades, que muitas vezes não se coadunam com seus princípios organizacionais. De outro, rapidamente descobrem que, se aqui se instalarem sem o gozo de incentivos fiscais, seus produtos não se sustentarão no mercado em decorrência do desequilíbrio concorrencial, já que produtos similares aos seus são vendidos por valores menores, pelo fato de seus fabricantes se beneficiarem de tais incentivos.
Pior que isso é a constatação de que várias empresas estrangeiras estão repensando a sua permanência no Brasil exclusivamente em decorrência de questões fiscais e, principalmente, da insegurança jurídica.
Enquanto isso, nem advogados, nem os próprios estados, têm qualquer segurança sobre onde essa problemática vai parar. E se alguém disser que sabe qual é a resposta, com certeza está mentindo.
Perspectivas imediatas
Para que se possa analisar as perspectivas para o fim de tal insegurança, há que se acatar a constatação de que, se de um lado a postura adotada por parte dos estados é inconstitucional, de outro é fato a existência, ainda nos dias de hoje, de fortes desigualdades estruturais e econômicas entre os vários estados e que ensejaram esse quadro.
Se a inconstitucionalidade tem que ser afastada, as desigualdades têm, no mínimo, de ser minimizadas para se chegar a um acordo. Para isso, só um grande consenso nacional, com ambos os blocos cedendo em suas convicções, pode levar a uma solução.
Nesse caminho, grande passo já foi dado com a edição da Resolução do Senado 13/2012, por intermédio da qual foi fixada a alíquota de 4% nas operações interestaduais com produtos importados, cabendo ao Estado de destino da mercadoria o recolhimento do ICMS correspondente ao diferencial entre a alíquota interestadual a alíquota interna.
E são exatamente medidas como esta que devem ser adotadas para se alcançar o fim da guerra fiscal. Porém, não é isso que se tem vivenciado atualmente. O tortuoso caminho que vem sendo trilhado visando ao encerramento da Guerra Fiscal é descrito por Osvaldo Santos de Carvalho e Marcelo Amaral Gonçalves de Mendonça[2] que, em suma, esclarecem que, em novembro de 2012, a União apresentou proposta que previa a redução paulatina e uniformização das alíquotas interestaduais; além disso, propôs a convalidação dos benefícios já concedidos, porém, com a impossibilidade de concessão de novos incentivos. Mas foram apresentadas inúmeras propostas e emendas, de modo que a proposta de reforma do ICMS se transformou em um verdadeiro “Frankestein”.
Há que se ressaltar que, de acordo com uma das propostas de alteração legislativa apresentada, não só os incentivos fiscais já concedidos seriam validados, como também, em face deles, seriam mantidas as alíquotas do ICMS efetivamente vigentes para cada um de seus beneficiários, de modo que conviveriam no Brasil dezenas de alíquotas interestaduais, sem regras fixas, a depender do estado de origem do bem e dos incentivos aos quais estaria cada contribuinte específico submetido.
Veja-se que, mantida essa nova “ideia”, poderá haver a incidência de várias alíquotas de ICMS para operações com bens idênticos, a depender se o contribuinte remetente fazia jus ou não a um ou outro incentivo fiscal concedido no passado. Trata-se do caos.
Se a expectativa do leitor deste trabalho era, ao seu final, encontrar “a resposta”, infelizmente não há como atendê-la. Ao contrário, a constatação que pode ser feita é a de que o art. 1º da Constituição, que prevê que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”, caiu em desuso e qualquer previsão de que este país volte a viver sob os desígnios da constitucionalidade e da legalidade estão bem longe, ao menos no que tange à estruturação e cobrança do ICMS.
De tudo o quanto foi exposto, a conclusão a que se chega é a de que há uma total falta de consenso por parte dos estados no que tange ao encerramento da guerra fiscal, em total desprestígio ao pacto federativo, constatando-se que cada estado quer o melhor para si e às favas com a união indissolúvel dos estados e com a busca do bem comum no Brasil.
Porém, partindo-se do pressuposto de que esse mal há de ter fim, deve-se destacar que a solução do problema passa, necessariamente, pela imediata manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre os efeitos das declarações de inconstitucionalidade já realizadas, pela paulatina e definitiva unificação de alíquotas do ICMS nas operações interestaduais, tal como se deu com relação aos produtos importados e pela convalidação dos incentivos já dados, mantendo-os por um prazo de tempo razoável, menor possível, a fim de se tentar minimizar o caos que tal medida causaria aos crédulos contribuintes que se fiaram às leis, decretos e acordos firmados pelos estados concessores de incentivos fiscais.
Afora isso, é necessária que haja inteligência política, de tal forma que todos os estados se componham pensando no Brasil como um todo, antes que investidores estrangeiros e brasileiros resolvam investir em outros países e que a recessão e o desemprego voltem a reinar.
[1] Cf, HORVATH, Estevão, ZOTELLI, Valeria; Vedação de crédito de ICMS sobre recolhimento de diferencial de alíquota e a não cumulatividade. Tributação em foco: a opinião de quem pensa, faz e aplica do direito tributário. Recife : IPET, 2013, p. 367.
[2] CARVALHO, Osvaldo Santos de; MENDONÇA, Marcelo Amaral Gonçalves de. A Reforma do ICMS e a Deterioração da Competitividade de Mercado e do Ambiente de Negócios no Brasil. No prelo.
por Valeria Zotelli é advogada, sócia do escritório Miguel Neto Advogados, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora convidada em cursos de especialização e MBA.
Fonte: Conjur
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