Um dos temas de maior destaque no cenário jurídico brasileiro atual é, sem dúvida, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846, de 2013). A percepção dos males da corrupção, algo já assumido na realidade internacional já de alguns anos, causou um forte impacto, no Brasil, sob muitos matizes. Um dos mais significativos, sem dúvida, diz respeito à ideia do compliance, ou, mais particularmente, do criminal compliance.
Há alguns anos muitos escritórios e estúdios jurídicos nacionais vêm se dedicando aos setores de compliance. Após a publicação da Lei 12.846, no entanto, a dimensão da preocupação passa a ser outra. Os muitos ramos do direito passam a falar e externalizar opiniões nem sempre bem compreendidas pelo mercado. De modo curioso, segundo alguns, isso se verifica de forma bastante aguda no que diz tange à advocacia criminal. As causas e razões para tanto, não raro, passam de modo despercebido. Alguns mitos, pois, devem ser postos por terra.
Em primeiro lugar deve ficar bastante claro que a preocupação com o compliance diz, sim, respeito próximo – mas não exclusivo – à área criminal. Como já se pontuou em diversos países, como Alemanha ou Itália, a lógica que gere o sistema anticorrupção, estabelecendo responsabilidades para empresas envolvidas com atos corruptores, é notadamente de ordem penal. Mesmo não havendo, como no caso brasileiro, lei de caráter explicitamente criminal, as noções de cumprimento de deveres específicos, a serem estabelecidos em programas de compliance, obedecem um raciocínio penal.
Está a se descortinar um admirável novo mundo, onde dados do direito empresarial, comercial, tributário e penal acabam por se fundir
Por certo, isso acaba por estabelecer um novo firmamento ao direito penal. Não mais se trata de um direito com vistas somente a reprimir fatos delituosos, mas de um direito com proposta preventiva, e que acaba por estabelecer novos paradigmas. Existe uma dificuldade perceptível para que muitos penalistas, que foram alfabetizados sob as luzes de um tratamento post factum, entendam sua nova missão. Mas esse é um passo absolutamente necessário, mesmo que não se aceite algumas das premissas que parecem trazer nova dimensão ao cenário penal. Um exemplo disso se encontra, claramente, no que se entende por responsabilidade penal da pessoa jurídica.
O direito penal tradicional tem enormes dificuldades para aceitar a responsabilidade de entes coletivos. Quando da promulgação da Constituição Federal de 1988 – onde, em seu art. 225, fez-se uma menção sobre a possibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica -, inúmeras foram as objeções dos penalistas. Estas se fizeram só aumentar quando, ao depois, em 1998, foi publicada a Lei dos Crimes Ambientais – Lei nº 9.605/98 – a qual fez expressa previsão da mesma. Note-se, entretanto, que essas objeções foram também vistas mundo afora. No entanto, depois de várias pressões internacionais, em especial de entidades como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a realidade internacional em boa medida passou a aceitar a presença da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Não se trata, com isso, de fazer loas a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Muito pelo contrário. Mas é imperioso reconhecer que se cuida de uma tendência aparentemente inescapável. Do mesmo modo, é de se constatar que começa a ser desenhado também um novo defensor penal, não unicamente reativo, mas também preventivo. E é nesse cenário que se afigura a importância crucial do penalista para a elaboração e implantação de programas de compliance.
Isso, de pronto, acaba, por sua vez, em implicar em duas outras colocações. A primeira diria respeito a explicação oculta desse fato. Diversos ensaios têm sido publicados, no exterior, mencionando o porquê da necessidade do penalista na elaboração desses programas. Além da colocação já feita, é de se ver que, em última medida, poder-se-ia dizer que isso se justifica, pois o penalista seria o profissional mais indicado para elucidar e prevenir praticas que podem, eventualmente, resultar em condutas de prática de corrupção. A se imaginar que a presença de um programa de compliance pode ser efetiva, também, na diminuição das penas a serem impostas às empresas, o bem lidar com as noções penais empresariais parece fundamental.
A segunda, por sua vez, diria respeito ao fato de não se tomar um programa de compliance como se fosse ouro dos tolos. Não é qualquer pessoa que pode ser tida como capacitada para sua elaboração. Não são meros cursos de curta duração que podem legitimar quem quer que seja para sua feitura. Existem muitas formas de pretensa avaliação dos programas de compliance, quer quanto à sua efetividade, quer quanto à sua seriedade. Em todas as situações leva-se sempre em conta a formação dos encarregados da elaboração do programa. O seu caráter técnico e acadêmico verte-se em suma importância, e deve ser levado em conta. Assim, a elaboração de programas sem base ou assistência técnica necessária, além de não servir para quase nada, pode, mesmo, ser vista como elemento de reprovação do programa, e nada mais.
Está a se descortinar um admirável novo mundo jurídico, onde dados do direito empresarial, comercial, tributário e penal acabam por se fundir. Deve-se, antes de tudo, ter em mente que as anteriores verdades aparentemente absolutas estão em mutação. Pode existir toda a sorte de críticas acerca desse novo direito – talvez demasiadamente influenciado por premissas econômicas ou de autorregulação – mas há de se ter em mente que as empresas que pretenderem postar-se em termos concorrenciais adequados ou, ainda, que busquem evitar problemas jurídicos devem, sim, buscar ajustar-se a uma nova ética empresarial. E para que se dite essa nova ética, deve-se, sim, buscar o amparo penal adequado.
por Renato de Mello Jorge Silveira é professor titular da Faculdade de Direito da USP e Advogado
Fonte: Alfonsin.com.br
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