sexta-feira, 13 de julho de 2018

A perda de identidade das contribuições sociais e o federalismo fiscal

Em trabalho publicado há 11 anos[1], procurei evidenciar a paulatina descaracterização das contribuições sociais em razão da Desvinculação de Recursos da União (DRU). Isso porque, dentre as diversas modalidades de receitas públicas existentes no Direito brasileiro, as contribuições sociais figuram no texto constitucional como a espécie tributária cuja peculiaridade está em que sua cobrança/arrecadação é necessariamente vinculada a certa e determinada finalidade pública.

A leitura da Constituição de 1988 não deixa margem a dúvidas: enquanto os impostos se destinam a financiar genericamente as despesas públicas, sem que o legislador possa vincular sua arrecadação a órgão, fundo ou despesa (vide artigo 167, IV), a nota essencial do regime jurídico constitucional das contribuições sociais é a vinculação de sua arrecadação a uma específica finalidade (financiamento da seguridade social, financiamento do ensino fundamental público, financiamento de certas e determinadas modalidades de intervenção no domínio econômico).

As contribuições sempre foram vistas com ressalvas pela doutrina. Isso porque foi com o aparecimento do Estado fascista, que tinha por base uma organização social corporativista, que as finanças parafiscais ganharam prestígio e aumentaram consideravelmente[2]. Esse fator, a nosso ver, fez com que a admissão das contribuições parafiscais como espécie tributária distinta das demais gozasse de certa “antipatia” por parte da doutrina, uma vez que, muitas vezes, representavam, ao contrário dos impostos, uma fuga ao princípio da legalidade e ao controle orçamentário, os quais são expressão do ideal democrático no campo tributário.

Aliomar Baleeiro[3] advertiu que, diante da possibilidade de se estabelecer uma finança excepcional (a pretexto de delegação do poder tributário e aplicação especial de receita), sem que suas respectivas arrecadações fossem objeto de controle orçamentário nem que suas aplicações sofressem a fiscalização dos tribunais de conta, “as instituições democráticas receberam, em pleno coração, um golpe bastante perigoso”.

No entanto, como ressalta Morselli, o que diferencia essencialmente o tributo parafiscal dos demais tributos é o fato de que não visa atender a um fim político, mas sempre a uma necessidade de ordem econômica e social. Vale dizer, os tributos clássicos atendem a um fim político, ou seja, correspondem às receitas de que o Estado necessita para fazer frente às suas despesas. O Estado, assim, cria obrigações para os cidadãos e distribui o produto da arrecadação da maneira que melhor lhe parecer. Os tributos parafiscais, ao contrário, implicam uma destinação de natureza social ou econômica da qual não pode fugir o Estado ou entidade beneficiária. Dessa forma, a contribuição representa um proveito para os contribuintes não por laços políticos, mas por intermédio de afinidades econômicas ou sociais[4].

As críticas doutrinárias ao modelo das finanças parafiscais foram extremamente valiosas e através delas é que a CRFB/88 corrigiu as diversas distorções relativas a essa exação. A primeira das correções foi submeter as contribuições ao controle orçamentário, como garantia do consentimento democrático através do Congresso Nacional, das despesas a elas relativas. A segunda foi deixar clara sua natureza tributária.

No entanto, o modelo de finanças públicas adotado pela CRFB/88 vem se deteriorando desde 1994 por meio da desconstrução de qualquer conceito discernível de contribuição. Isso porque o poder constituinte derivado passou a promulgar emendas constitucionais que desvincularam cada vez mais os recursos das contribuições das finalidades a que se destinavam segundo o texto originário da Constituição.

A partir da publicação da ECR 1/94, foi instituído o Fundo Social de Emergência (FSE), que teria sua duração limitada entre 1994 e 1995. Em março de 1996, porém, sobreveio a EC 10/96, que prorrogou o FSE até 1997 e alterou sua denominação para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF). Ato contínuo, a EC 17/97 prorrogou o FEF até 31 de dezembro de 1999[5]. Finalmente, a EC 27/00 criou a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que foi prorrogada sucessivamente pelas emendas constitucionais 42/03, 56/07, 68/11 e 93/16.

O pano de fundo dessas alterações se sustenta nos seguintes fatos: 1) o potencial arrecadatório das contribuições de seguridade social/Cide é muito maior do que o dos impostos federais; 2) aproximadamente metade da arrecadação dos impostos federais é distribuída para estados e municípios (por força dos artigos 157, I, 158, I, 159, I e II da CRFB/88), ao passo que a arrecadação das contribuições fica praticamente toda ela nos cofres federais[6]; 3) o endividamento público e, por consequência, as despesas com juros da dívida pública interna/externa cresceram exponencialmente a partir de 1995.

O aumento da carga tributária (o que foi feito prioritariamente por meio do majoração e criação de novas contribuições sociais), aliado às mencionadas desvinculações, teve como uma das consequências a concentração do poder fiscal nas mãos da União. Tal quadro ficou ainda mais acentuado a partir de duas decisões do Supremo Tribunal Federal. A primeira, proferida no RE 228.321 (relator ministro Carlos Velloso, j. 1º/10/1998, DJ 30/5/2003), permitiu que o exercício da competência residual em relação às contribuições de seguridade social (artigo 195, parágrafo 4º) só se submetesse à exigência de lei complementar (artigo 154, I), permitindo assim que a União criasse novas contribuições sociais sobre cada um dos pressupostos de fato dos impostos elencados nos artigos 153, 155 e 156 da CRFB/88. A segunda foi tomada na ADI-MC 2.556 (relator ministro Moreira Alves, DJ 8/8/2003), quando o STF se manifestou claramente sobre a possibilidade do rol das contribuições sociais gerais ser mais amplo do que as figuras previstas expressamente nos artigos 212, parágrafo 5º e 240 da CRFB/88.

Diante do que foi exposto, é possível concluir que, em relação à parte das contribuições sociais que vem sendo regularmente desvinculada para produção dos superávits primários, o arcabouço normativo dessa espécie tributária foi completamente desfigurado. Os montantes desvinculados cumprem as funções dos impostos residuais, sem, contudo, se sujeitar às limitações próprias dessa espécie tributária, tais como partilha do produto da arrecadação com estados e municípios e impossibilidade de utilização de pressupostos de fatos reservados aos demais entes federados.

Tais circunstâncias vêm permitindo que o alerta dado pelo ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do RE 242.431[7], do risco de "dinamitação do sistema tributário da federação", se torne uma triste realidade.

[1] SAMPAIO, Junia Roberta Gouveia. O financiamento da Seguridade Social. 2007, Sergio Fabris Editora.
[2] FARIA, Sylvio Santos. Aspectos da Parafiscalidade. Livraria Progresso, p. 33.
[3] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à Ciência das Finanças. 15 ed. Forense, 1998, p. 292.
[4] FARIA, Sylvio Santos. Aspectos da Parafiscalidade. cit. p 45.
[5] O artigo 3º da EC 17/97 trouxe também a previsão de compensação de perdas aos municípios porque foram desvinculadas as receitas do ITR.
[6] Em 2003, por pressão dos estados, criou-se o artigo 159, III da CF, que determinou a repartição da arrecadação da Cide-Combustíveis com estados e municípios (vide emendas constitucionais 42/2003 e 44/2004).
[7] No RE 242.431, o ministro Sepúlveda Pertence criticou a posição majoritária no Pleno do STF por ocasião do julgamento da natureza jurídica do Adicional de Tarifa Portuária (ATP). A maioria do Pleno (RE 218.061) julgou que o ATP, porque arrecadava recursos dirigidos aos cofres da União e destinados a obras de infraestrutura portuária, constituía uma Cide, ao passo que o ministro Sepúlveda Pertence defendeu que a figura constituía um imposto criado fora do regime previsto no artigo 154, I da CRFB/88. Para mais detalhes sobre esse julgamento acerca da constitucionalidade do ATP, vide GODOI, Marciano Seabra de. Sistema tributário nacional na jurisprudência do STF. São Paulo: Dialética, 2002, p.100-102.

Junia Roberta Gouveia Sampaio é conselheira do Carf, mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora de Direito Tributário do Centro Universitário UNA e da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

Fonte: Conjur

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