sexta-feira, 13 de julho de 2018

A Lei 13.586/2017 e o cancelamento de autuações na área de petróleo e gás natural

"O pulso ainda pulsa
O pulso ainda pulsa...
(...)
Hepatite, escarlatina
Estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo
Esquizofrenia (....).”
(O pulso, Titãs, 1989)

Rio de Janeiro, domingo, 8 de julho, meio-dia. Um lindo dia de sol. Quente. Intenso vaivém de pessoas no calçadão. Apesar dos pesares, da estupidez e da paralisia, até mesmo do sarampo recentemente diagnosticado, sem falar na esquizofrenia de muitos, a cidade vive, o sangue circula e o pulso ainda pulsa.

Meio-dia e vinte, em um dos muitos grupos de WhatsApp pipoca a notícia da liminar proferida por desembargador de plantão determinando a soltura de Lula. Será mais uma fake news? Procuro confirmar. É verdadeira. Quais os fundamentos da decisão? Atribuição de efeito suspensivo aos recursos ao STJ e ao STF? Não. O fundamento é permitir a participação do pré-candidato no processo eleitoral. Donde provém a competência do plantonista para a concessão da ordem? Quais serão os seus desdobramentos? Para aqueles que achavam que as partidas do Brasil tinham terminado com a derrota para os belgas, um novo jogo se iniciava. Jornalistas e comentaristas se apresentam na TV para analisar o match. Quem vencerá?

A partida só termina perto das 20h, na prorrogação, com a notícia da solução do conflito de competência pela Presidência do tribunal e manutenção da decisão do colegiado determinando o início imediato do cumprimento da sentença condenatória.

A liminar do plantonista foi o resultado esperado de uma artimanha de solertes aliados do condenado, urdida na ressaca da derrota de sexta-feira para a Bélgica. Esse incidente prova que decisões judiciais, só por serem judiciais, não estão necessariamente isentas de partidarismo, de ideologia. A ideologização do Direito tem sido o maior inimigo da democracia. Exemplos não faltam. Da Venezuela de Maduro à recente crise polonesa[1], as tentativas de controlar e influenciar política e ideologicamente o Judiciário são aflorações do autoritarismo que nos remetem ao infame “tribunal popular” (Volksgerichtshof) instituído por Hitler, que entre 1934 e 1945 proferiu mais de 15 mil sentenças, com 5.200 pessoas condenadas à morte[2].

Já faz algum tempo que no Direito Tributário brasileiro a ideologia rompeu a proteção da legalidade para, sob a invocação dos mais variados princípios (capacidade contributiva, isonomia, solidariedade), ou das mais distintas figuras jurídicas (abuso de direito, simulação, fraude à lei etc.) — mas nunca de uma disposição legal específica, porque inexistente —, desconsiderar os efeitos típicos de atos ou negócios jurídicos como justificativa para a prática de atos de lançamento tributário contra os particulares, com a cobrança de multas qualificadas escorchantes (150% e 225%) e em cascata (cumulação da multa de lançamento de ofício com a multa isolada por falta de recolhimento de estimativas).

Um exemplo dessa onda de tributação ideológica do Fisco federal ocorreu no setor de exploração de petróleo e gás natural.

Com efeito, as empresas titulares de concessão para exploração dos campos de petróleo e gás natural, para o desempenho dessas atividades, se valeram de um modelo contratual que envolve a execução simultânea de dois contratos coligados[3]: (i) um contrato de prestação de serviços de perfuração, exploração, avaliação, completação, manutenção e intervenção de poços de petróleo e gás natural firmado com empresas brasileiras; e (ii) um contrato de afretamento ou de aluguel de embarcações marítimas com sistemas flutuantes de produção e/ou armazenamento e descarga (Floating Production Systems – FPS), com sistema do tipo sonda para perfuração, completação, manutenção de poços de petróleo (navios-sonda) ou para atividades de natureza auxiliar, como a colocação de tubos e dutos flexíveis.

De muito o Fisco federal contestava a alocação dos preços contratuais, visto que parcela substancial do valor (80%-90%) era atribuída, pelas licitantes contratantes, à remuneração do afretamento de embarcações marítimas paga a empresas domiciliadas no exterior, proprietárias ou arrendatárias dessas embarcações, ao passo que a menor porção, a diferença (10%-20%), remuneraria as atividades de prestação de serviços desempenhadas pelas empresas locais.

As passagens abaixo, extraídas de ementas de acórdãos do Carf, demonstram que a premissa maior do pensamento do Fisco assenta numa alegada artificialidade dos contratos em questão. Vejamos:

Caso Schain (Acórdão 1402-002.726)
“A partir da análise dos documentos constantes dos autos conclui-se que houve de modo doloso bipartição artificial nos contratos denominados 'de afretamento' e 'de prestação de serviços'.”

Caso Transocean (Acórdão 1103-001.105)
“Motivo central é de artificialidade entre os preços praticados entre a contratante com as contratadas empresas estrangeiras (por afretamento de embarcações), e os preços praticados entre a mesma contratante e a recorrente, controlada das empresas estrangeiras, emergindo a parte do preço pela prestação de serviços à contratante pela recorrente, com os recursos transferidos a essa pelas empresas estrangeiras. Os editais de licitação internacional preveem o limite percentual (sobre o preço global) a ser praticado pela prestação serviços, sem exceção.”

Caso Brasdrill (Acórdão 1202-001.067)
“Em razão da sua inoponibilidade ao Fisco, desconsidera-se a existência formal de dois contratos distintos (de afretamento e de prestação de serviços), uma vez caracterizada a falta de propósito negocial naquela forma de contratação, em virtude de diversos elementos fáticos que demonstram a realização de uma única prestação de serviços.”

Caso OGX (Acórdão 2402-005.452)
“1. As circunstâncias e as peculiaridades do caso concreto demonstram que os serviços de sondagem/perfuração/exploração absorvem o afretamento. Este se constitui em mera atividade-meio, com se depreende do exame dos próprios contratos. (...) 3. A divisão entre afretamento e prestação de serviços foi meramente formal.”
A motivação para adoção do modelo de contratação bipartido estava, essencialmente, na regulamentação do Repetro vigente à época, eis que só se consideram integrantes do regime especial os bens que “pertençam a pessoa sediada no exterior”, “sejam importados sem cobertura cambial” e “procedam diretamente do exterior” (artigo 14 da IN RFB 844/2008).

Acresce que a legislação tributária em matéria de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre residentes no exterior sempre exonerou de imposto, pela adoção de uma alíquota zero, as remessas feitas para remunerar contratos de afretamento e aluguel de embarcações[4], o que tornava menos onerosa a contratação para a fonte pagadora brasileira, dispensada de arcar com os ônus do IRRF pela via do gross up.

Ocorre que o Fisco, em vez de questionar através de critérios objetivos a correção da alocação das parcelas do preço global objeto de repartição (split) entre afretamento e prestação de serviços, observando métodos de preços de transferência, optou por simplesmente desconsiderar a existência dos dois contratos.

Como consequência, materializaram-se inúmeros lançamentos de ofício contra as empresas contratantes do afretamento tendentes à exigência do pagamento de IRRF, Cide, PIS — importação e Cofins —, incidentes sobre remunerações de prestação de serviços pagas a residentes no exterior[5].

Mas o Fisco não se bastou em autuar a “perna” do afretamento. Foram igualmente objeto de ação fiscal as empresas locais prestadoras de serviços. Nesses casos também se invocou a artificialidade da separação contratual como fundamento das autuações, mas as pretensões alcançaram tributos diversos.

Com efeito, algumas autuações entenderam por glosar a dedução de despesas incorridas pela pessoa jurídica brasileira ao argumento de que a receita conexa a tais dispêndios teria sido atribuída ao residente no exterior no contrato de afretamento (acórdãos 1402-002.456 e 1402-001.439). Em outras oportunidades, o Fisco submeteu à tributação valores transferidos pelas sócias estrangeiras a título de mútuo, aporte de capital ou mesmo reembolso de despesas, caracterizando-os como subvenções para custeio tributáveis pelo IRPJ, CSLL, PIS e Cofins (acórdãos 1103-001.105, 1202-001.067 e 3302-005.383).

Ante tão acalorado debate, a questão da adequação dos percentuais do split veio a ser objeto de lei específica, editada para conferir segurança jurídica aos contribuintes. Trata-se do artigo 106 da Lei 13.043/2014, norma de cariz antielisivo, que arbitrou, por ficção legal, o que seria uma repartição global de preços adequada. Veja-se:

“§ 2º No caso do inciso I do caput deste artigo, quando ocorrer execução simultânea do contrato de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e do contrato de prestação de serviço, relacionados à prospecção e exploração de petróleo ou gás natural, celebrados com pessoas jurídicas vinculadas entre si, do valor total dos contratos a parcela relativa ao afretamento ou aluguel não poderá ser superior a:

I - 85% (oitenta e cinco por cento), no caso de embarcações com sistemas flutuantes de produção e/ou armazenamento e descarga (Floating Production Systems - FPS);

II - 80% (oitenta por cento), no caso de embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação, manutenção de poços (navios-sonda); e

III - 65% (sessenta e cinco por cento), nos demais tipos de embarcações”.

Ou seja, a lei reconheceu a legitimidade do modelo de execução simultânea de contrato de afretamento e de prestação de serviços e arbitrou a remuneração que considerou adequada a cada um dos contratos[6]. A parcela do afretamento que exceder aos limites fixados pela lei passou a ser tributada pelo IRRF. Assim, por exemplo, no caso em que o valor total dos contratos é de USD 1 milhão, sendo 90% do valor (USD 900 mil) imputados ao afretamento de um navio-sonda, em que percentual aplicável é de 80%, o excesso de 10% (USD 100 mil) estará sujeito ao IRRF[7].

Posteriormente, a MP 795/2017, convertida na Lei 13.596/2017, veio dispor sobre o tratamento tributário das atividades de exploração e de desenvolvimento de campos de petróleo ou de gás natural e instituir o novo Repetro. Trata-se de providência legislativa de importância capital para o Brasil, editada para criar um ambiente favorável aos investimentos no setor, que deve ser observada por todas as esferas de governo, inclusive e especialmente pela administração fiscal.

Referida legislação alterou uma vez mais os percentuais do split, reduzindo-os de 85% para 70% no caso de embarcações com sistemas flutuantes de produção ou armazenamento e descarga; de 80% para 65% nos casos de embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação e manutenção de poços; e de 65% para 50% quanto aos demais tipos de embarcação, ampliando, assim, o espectro de incidência do IRRF (parágrafo 9º do artigo 1º da Lei 9.481/97).

A disposição mais relevante da nova lei sobre essa matéria é o artigo 3º, que dispõe:

“Aos fatos geradores ocorridos até 31 de dezembro de 2014, aplica-se o disposto no § 2º e 12 do art. 1º da Lei n.º 9.481, de 13 de agosto de 1997, e a pessoa jurídica poderá recolher a diferença devida de imposto sobre a renda na fonte, acrescida de juros de mora, no mês de janeiro de 2018 com redução de 100% (cem por cento) das multas de mora e de ofício”.

A nova legislação, forte no princípio da segurança jurídica, conferiu caráter retroativo aos percentuais do split fixados pela Lei 13.043/2014, ou seja, a fonte pagadora que remeteu valores a título de afretamento que excederam aos percentuais de remuneração global, isto é, acima de 85% no caso de afretamento de embarcações com sistemas flutuantes de produção ou armazenamento e descarga, de 80% nos casos de navios-sonda e de 65% nas demais hipóteses, estará sujeita apenas ao pagamento do IRRF devido sobre o “excesso”, acrescido de juros de mora.

Por seu turno, o novo parágrafo 12 do artigo 1º da Lei 9.481/97 foi categórico em estabelecer que a observância dos percentuais do split não acarreta a alteração da natureza e das condições do contrato de afretamento ou aluguel para fins de incidência da Cide, do PIS-Importação e da Cofins-Importação, ou seja, o legislador foi expresso e específico na sua intenção de manter incólume a qualificação jurídica dos contratos.

Logo, no período anterior a 31/12/2014, todas as remessas que observaram os percentuais de split contratual, que foram fixados de forma inovadora pela Lei 13.043/2014, não estarão sujeitas a tributação. Por outras palavras, o pagamento de um afretamento de navio-sonda, por exemplo, que observou o split máximo de 80%, não está sujeito a qualquer exigência de IRRF, Cide, PIS-Importação e Cofins-Importação, devendo ser canceladas as autuações fiscais lavradas contra as fontes pagadoras.

Mas não é só! Assente que os percentuais da Lei 13.043/2014 se aplicam a fatos geradores anteriores, é evidente também já não subsistir as autuações fiscais de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins lançadas contra as prestadoras de serviços, seja por glosa de despesas, seja por omissão de receitas de subvenção para custeio.

Com efeito, sendo a pretensa artificialidade da segregação dos preços contratuais a premissa maior de todas as autuações nesse domínio, como se viu nas diversas passagens de acórdãos acima citadas, torna-se evidente que a solução legislativa deve ser aplicada também às glosas lançadas contra as prestadoras de serviços.

Não faz o menor sentido que a fonte pagadora que observou os percentuais do split fixados pela Lei 13.043/2014 seja integralmente desonerada de qualquer tributação nas remessas feitas às afretadoras estrangeiras e as empresas locais prestadoras de serviços, que foram autuadas em relação a fatos geradores ocorridos rigorosamente no mesmo período, sejam acusadas de artificialismo do split quando observaram rigorosamente os mesmos percentuais chancelados pelo legislador de forma expressamente retroativa.

O artigo 3º da Lei 13.586/2017 reafirma e confirma a legitimidade do modelo de contratação coligado e bipartido de afretamento e prestação de serviços utilizado pelas concessionárias de exploração e produção de campos de petróleo e gás natural, por consequência, impõe-se, como medida de isonomia e segurança jurídica, o cancelamento das autuações lavradas contra as pessoas jurídicas prestadoras de serviços, nos casos em que os contratos seguiram os percentuais fixados pela Lei 13.043/2014.

[1] https://mobile.nytimes.com/2018/07/04/world/europe/poland-court-protests.html
[2] https://oglobo.globo.com/sociedade/historia/exposicao-em-berlim-revela-detalhes-do-pouco-conhecido-tribunal-de-hitler-22837258. Crédito a Gabriel Leonardos, ilustre colega, presidente do Cesa no Rio de Janeiro, que “postou” oportunos comentários sobre a exposição de Berlim e a crise institucional polonesa.
[3] Os contratos coligados são contratos que, “(...) por força de disposição legal, da natureza acessória de um deles ou do conteúdo contratual (expresso ou implícito), encontram-se em relação de dependência unilateral ou recíproca”. (cfr. Francisco de Paula de Crescenzo Marino, in Contratos coligados no Direito brasileiro, Ed. Saraiva, São Paulo, 2009, p. 223).
[4] Cfr. artigo 1º, I da MP 1.563-7, de 22 de julho de 1997, convertida na Lei 9.481, de 13 de agosto de 1997.
[5] Cfr. Acórdão 2202-003.063 (Caso Petrobras/IRF) e Acórdão 3403-002.702 (Caso Petrobras/Cide).
[6] A legitimidade do modelo bipartido foi afirmada de modo categórico pela 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 3ª Seção do Carf, nos acórdãos 3301-004.591 e 3301-004.592, ambos de 17/4/2018, nos seguintes termos: “Mesmo antes da alteração promovida pela Lei n.º 13.043/2014, é legítima a celebração de contratos de afretamento e de prestação de serviços com execução simultânea, por parte de um único concessionário de exploração de petróleo e gás”.
[7] § 6º A parcela do contrato de afretamento que exceder os limites estabelecidos no § 2º sujeita-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 15% (quinze por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento), quando a remessa for destinada a país ou dependência com tributação favorecida, ou quando o arrendante ou locador for beneficiário de regime fiscal privilegiado, nos termos dos arts. 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996.

Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.

Fonte: Conjur

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