Alguns dos apreciadores de vinhos costumam dizer que existem bons vinhos e vinhos não tão bons. Não existiriam, na opinião deles, vinhos ruins. Trazendo essa simbologia para a seara das disputas judiciais, cabe uma pequena adaptação: além das boas brigas e das brigas não tão boas, existem seguramente as brigas ruins.
Explico: por longos anos praticamente todos os Estados da Federação resistiram a permitir aos contribuintes, sujeitos à chamada sistemática de substituição de tributária, a restituição de valores de ICMS antecipada e indevidamente recolhidos.
Ao que parece, a discussão sobre recuperação de ICMS da substituição tributária voltará aos tribunais
Muitas vezes, e é aí que reside a divergência, o valor presumido para pagamento do imposto supera o valor efetivamente praticado quando da saída do produto, resultando em pagamento a maior. Justa, portanto, a restituição ao contribuinte substituído da diferença indevidamente recolhida.
A Constituição, por sua vez, tem previsão expressa (artigo 150, parágrafo 7º), no sentido de que fica assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Durante anos, contudo, os Estados entenderam que "não realização" do fato gerador equivalia somente à não realização de operação de venda.
Os Estados de São Paulo e Pernambuco foram por algum tempo exceções. Permitiam a devolução de valores indevidamente recolhidos igualmente nas saídas de bens em valores inferiores ao (valor) presumido. Se renderam, entretanto, à posição dominante e acabaram ajuizando ações diretas de inconstitucionalidade de suas próprias legislações, justamente para retirar-lhes os efeitos e alcançar competências passadas.
Como o resultado das ações diretas propostas demorou longos anos, em 2009 o Estado de São Paulo, pragmaticamente, alterou sua legislação para permitir a restituição da diferença de ICMS exclusivamente quando as saídas a menor envolvessem produtos com preços mínimos ou únicos fixados por autoridade competente. Essa legislação vige até hoje em São Paulo. Exemplo que, numa primeira impressão, poderia evidenciar conduta isolada do Estado, mas que exemplifica a insegurança jurídica a que estão expostos os contribuintes no país diante das inúmeras oscilações legislativas.
Somente em outubro de 2016, a Suprema Corte, em sede de repercussão geral (RE nº 593849), entendeu que onde se lê "não realização do fato gerador" deve-se incluir as hipóteses de saída do bem em valor inferior ao presumido. Na mesma oportunidade o Supremo julgou improcedentes as ações diretas de inconstitucionalidade de São Paulo e de Pernambuco e, portanto, constitucionais as normas que, à época, previam o direito à recuperação do imposto indevido em todas as saídas de produtos por valor inferior ao presumido.
As decisões das ações diretas, todavia, foram tardias, pois analisaram legislação cuja redação não mais subsiste: tanto Pernambuco como São Paulo alteraram suas normas internas, sendo que São Paulo, como dito acima, limitou o direito à recuperação do imposto à hipótese de saída de produtos com preços fixados por autoridade competente.
Aliás, nem em São Paulo, nem em Pernambuco, nem em qualquer outro Estado há previsão, atualmente, de restituição de imposto em relação a todos os produtos com saída por valor inferior ao presumido.
Ao que parece, entretanto, a discussão decidida pelo Supremo em 2016 voltará aos tribunais, muito em função da edição da Portaria CAT 42, por São Paulo, iniciativa que, tudo leva a crer, deverá ser replicada pelos demais Estados, no sentido de limitar o direito a tal crédito.
É que São Paulo, ao estabelecer procedimento para a recuperação de valores de ICMS indevidamente recolhidos no contexto da substituição tributária – supostamente em linha com o decidido pelo Supremo -, limita o crédito às hipóteses da lei ainda vigente, ou seja, à saída dos produtos com preços regulados por autoridade competente.
A obrigação acessória recém-publicada por São Paulo regulamenta, portanto, não o texto da lei declarado constitucional, mas a sua mais recente versão, que não foi validada pelo Supremo Tribunal Federal.
Embora a nova discussão deva (re)começar em São Paulo, é quase certo ser uma tendência a ser seguida pelos demais Estados. Afinal, a perda de arrecadação sempre foi motivo para o poder público justificar ilegalidades e inconstitucionalidades, e postergar devoluções de tributos reconhecidamente indevidos.
Esse é só o começo de uma nova, requentada e previsível mal sucedida disputa que deve alcançar âmbito nacional. O que veremos se iniciar em São Paulo e contaminar os demais Estados é mais uma briga ruim, símbolo das idiossincrasias do exercício abusivo do poder de tributar.
Ao lado das boas brigas, e das não tão boas, existem sim, diferentemente dos vinhos, as brigas ruins. Ruim para quem litiga, ruim para quem julga e ruim para quem, por meio dos impostos que paga, financia todo o sistema judicial excessivamente demandado. Aos contribuintes resta torcer para que essa briga ruim não leve décadas para ser definitivamente decidida, realidade nada incomum no país.
Glaucia Lauletta Frascino é sócia do escritório Mattos Filho
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Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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