segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Artigo 24 da LINDB, lançamento fiscal e o CARF

A Lei 13.655/2018 trouxe inovações à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), com vistas a garantir “segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”. E, de fato, trouxe normas louváveis em prol do seu objetivo.

Conforme amplamente noticiado à época, as inovações foram elaboradas tendo como pano de fundo os processos de controle das contratações públicas, em especial aqueles das instâncias de controle dos gastos públicos, como os Tribunais de Contas e a Controladoria Geral da União. O Projeto de Lei foi, declaradamente, fruto de pesquisa publicada na Obra “Contratações Públicas e Seu Controle”, dedicada exclusivamente ao tema, e foi amplamente discutido na Academia e em audiências públicas, nunca se tendo revelado particular preocupação com eventuais reflexos no Direito Tributário.

Quem imaginaria, então, que o primeiro grande palco de controvérsias sobre a nova legislação surgiria longe das instâncias relacionadas ao controle e supervisão exercidos tipicamente pela Administração Pública, justamente no CARF? Certamente não os idealizadores da Lei, conforme entrevista recentemente veiculada neste site.

Fato é que, hoje, a nova redação da LINDB tem causado polêmica no CARF, diante do entendimento de alguns advogados e conselheiros no sentido de que o artigo 24 recém-promulgado implica que a validade do lançamento fiscal está subordinada à orientação jurisprudencial vigente à época do fato gerador (ou do lançamento fiscal ou, ainda, da época em que foram praticados atos societários com repercussão fiscal futura – a tese advogada ainda não está totalmente esclarecida).

Os autores intelectuais das alterações na LINDB se apressaram em manifestar concordância com tal entendimento, não apenas com o peso de suas notórias credenciais acadêmicas, mas também com ares de “interpretação autêntica”, segundo sustentam alguns defensores da tese.

Ouso discordar.

Se por um lado a vontade do legislador (mens legislatoris) é relevante, por outro, ela não se sobrepõe à vontade da Lei (mens legis). Carlos Maximiliano, sempre preciso, afirmava que “com a promulgação, a Lei adquire vida própria […] separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo”. Isto porque a Lei promulgada passa a se inserir no contexto de um sistema maior e muitíssimo mais complexo do que ela própria: o ordenamento jurídico.

“Reduzir a interpretação à procura do intento do legislador é, na verdade, confundir o todo com a parte” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 19-25).

Neste sentido, Maximiliano atenua a relevância da mens legislatoris lembrando que os motivos que induziram alguém a propor a Lei podem não ser os mesmos que levaram outros (o Congresso Nacional) a aprová-la – e isto é tanto mais verdade quando a partir de um texto restrito se pretende emplacar interpretação ampliativa e improvisada para âmbito ao qual a Lei não foi sequer cogitada.

Assim, discordo dos autores do PL da Segurança Jurídica quanto à aplicabilidade do art. 24 da LINDB à atividade administrativa do lançamento e aos julgamentos proferidos pelo CARF pelo simples fato de que a previsão ali contida não se adequa ao peculiar procedimento de constituição do crédito tributário.

O dispositivo tem como objeto a “revisão” “quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa”, sendo vedado que tal revisão leve a “considerar inválidas situações plenamente constituídas”.

O lançamento fiscal não configura procedimento de “revisão”, uma vez que não cuida de “revisar” a validade de quaisquer atos ou contratos da Administração. Conforme o art. 142 do CTN, lançamento é a atividade tendente a verificar a ocorrência do fato gerador (situação definida em Lei que gera a obrigação tributária), determinar a matéria tributável, calcular o montante devido e identificar o sujeito passivo. Trata-se, portanto, de ato administrativo que aprecia atos/fatos jurídicos e estabelece suas consequências tributárias, não sendo de seu escopo revisar atos nem declarar inválida qualquer situação prévia plenamente constituída.

É impossível extrair da Lei a interpretação de que a validade do lançamento fiscal está subordinada à orientação jurisprudencial vigente à época do fato gerador (ou do lançamento fiscal), e quem assim defende o faz por mera petição de princípio (petitio principii), considerando que tal interpretação, apesar de completamente dissociada do texto efetivamente publicado, estaria de acordo com o propósito geral das alterações na LINDB, de aumentar a segurança jurídica na aplicação do direito público.

Carlos Ari Sundfeld, ao tentar abarcar o lançamento fiscal nas disposições do artigo 24, acaba comprovando a inadequação do dispositivo para reger o lançamento:

O art. 24 proíbe que a administração tributária dê aplicação retroativa a nova interpretação sobre a legislação tributária, de modo que nenhuma revisão de validade de ato singular da autoridade (o lançamento, por exemplo) pode ser feita por mudança da orientação geral a respeito. Aliás, como se sabe, a proibição da irretroatividade da nova interpretação vai além dos simples casos de invalidação de atos administrativos, pois está prevista em termos amplos na Lei Federal de Processo Administrativo (art. 2º, parágrafo único, XIII) e no Código Tributário (art. 100, II, III e paragrafo único, e art. 146).

Ora, o que está dito acima é que o lançamento não poderá ser invalidado, se realizado de acordo com orientação geral anterior: será mantido o ato administrativo (lançamento) feito de acordo com a orientação anterior (que corroborava o lançamento) a despeito de porventura o CARF ter mudado de orientação em favor do contribuinte (para inadmitir o lançamento naquela situação).

A situação é absurda e prejudicial ao contribuinte-administrado, e jamais foi sequer ventilada no CARF antes da Lei da Segurança Jurídica. E certamente não o será agora. Não obstante, é a única conclusão que se poderia colher no caso de entender pela aplicação do artigo 24 da LINDB aos julgamentos proferidos pelo CARF.

O fato é que a Administração Tributária Federal vem de longa data dando exemplos de que prestigia a segurança jurídica naquilo que está ao seu alcance. Pode-se citar caso em que o Fisco Federal, ao mudar de orientação sobre a aplicação da Lei tributária em prejuízo dos contribuintes, manteve a validade do ato administrativo anterior, que beneficiava os contribuintes. Trata-se da IN 243/02, que trouxe nova interpretação sobre as regras de preços de transferência, que gerava ajustes mais gravosos ao contribuinte do que a interpretação veiculada na IN 32/01, que a antecedeu. A Receita Federal jamais fez a nova interpretação retroagir, respeitando a orientação geral anterior, enquanto vigente.

Isso deixa bem evidente o âmbito de aplicação do artigo 24: quando um ato administrativo gera uma situação consolidada em favor do administrado (por exemplo, emite uma licença de funcionamento, assina um contrato, autoriza um pagamento, edita instrução normativa), a mudança posterior de entendimento sobre a validade deste ato não pode afetar a situação consolidada que a própria Administração gerou.

Trata-se de circunstância que não é verificada quando se pratica um lançamento fiscal. A apuração de tributos feita pelo contribuinte, além de não configurar ato administrativo, não gera nenhuma situação consolidada, já que é precária por definição. No lançamento de ofício não há ato praticado que gere situação consolidada em favor do contribuinte. No julgamento de processos pelo CARF, de outro ou do mesmo contribuinte, tampouco há ato administrativo que gere situação consolidada em relação ao contribuinte que esteja sendo autuado.

É flagrante a incompatibilidade das disposições do art. 24 da LINDB com o lançamento tributário e o desenrolar do Processo Administrativo Fiscal. Não se trata, portanto, de dizer jocosamente que o CARF se acha “imune” à Lei de Introdução. O problema é de inadequação do texto legal a um contexto jurídico específico.

A inadequação quanto à atividade administrativa do lançamento é absoluta e intransponível. Simplesmente porque lançamento não constitui revisão de ato administrativo. E a aplicação da regra considerando que o lançamento seria o ato objeto de revisão implicaria necessariamente na sua manutenção, como demonstrado acima.

Transcendendo a questão do lançamento fiscal, há ainda outros reparos a fazer quanto àqueles que advogam pela aplicabilidade ampla e irrestrita do artigo 24 em todos os espectros do Direito. “Normas gerais de interpretação e aplicação de Direito obrigam a todos que interpretam e aplicam o Direito”, é o que se tem dito quanto às alterações na LINDB.

Contudo, não é porque a disposição foi posta na LINDB que ela será necessariamente considerada como norma geral de interpretação. Não se pode, numa canetada, estabelecer a natureza da Lei, e isto foi reconhecido pelo STJ e pelo STF, quando rejeitaram a auto-proclamação da Lei Complementar 118/05 enquanto Lei interpretativa. Menos ainda se poderia fazê-lo por mero critério “geográfico”.

Neste sentido, só é possível afirmar que o artigo 24 da LINDB se reveste de caráter hermenêutico até o ponto em que estabelece que a revisão de atos administrativos “levará em conta as orientações gerais da época“.

Nessa altura do enunciado compreende-se que o aplicador da Lei deve “sensibilizar” seu critério de decisão pelo fato de que o administrado confiou em ato anterior da Administração que o suportava.

Contudo, a partir do ponto em que o dispositivo veda que “se declarem inválidas situações plenamente constituídas“, estabelecendo a consequência dessa “sensibilização” do aplicador da Lei, transborda-se a hermenêutica e passa-se a veicular norma dispositiva de direito material. Constitui um non-facere ao agente que aplica a Lei.

Disso, surgirão duas ordens de consideração. A primeira é que as alterações da LINDB terão necessariamente efeitos apenas prospectivos, aplicando-se apenas para as mudanças de orientação geral ocorridas a partir de sua vigência. A segunda é que a inovação legislativa (pelo menos no que respeita ao art. 24) não se qualifica como norma basilar do ordenamento jurídico brasileiro (norma sobre aplicação de normas), e que suas disposições, que não são simples “normas gerais de interpretação”, devem ser confrontadas com as normas especiais vigentes de cada “subsistema jurídico”.

Quando a LINDB proíbe que se declarem inválidas situações plenamente constituídas em virtude de alteração posterior de orientação, há que se avaliar se tal disposição não contrasta com disposições específicas (expressas ou tácitas) de cada subsistema. Contrastando, não prevalecerá: Lex specialis derogat generalis.

Voltando ao âmbito tributário, a par de não se verificar nenhuma situação plenamente constituída que seja invalidada pelo lançamento fiscal, e descartado o art. 24 enquanto norma geral de interpretação, lembra-se que o art. 146, III, da Constituição Federal reserva à Lei Complementar “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária”. O Código Tributário Nacional (CTN) é o diploma que veicula tais normas e possui regramento próprio e particular sobre os atos e decisões dotados de caráter normativo (art. 100, I a IV), sobre as consequências de sua observância pelo administrado (art. 100, parágrafo único), bem como sobre as limitações à introdução de novos critérios jurídicos (isto é, limitações específicas às mudanças de interpretação – art. 146).

Em conclusão, não se advoga suposta imunidade do CARF quanto às alterações na LINDB. Suas disposições se aplicarão ao órgão naquilo que tenham caráter geral e naquilo que não conflitem com o subsistema específico em que se insere o Processo Administrativo Fiscal, desde o lançamento até a constituição definitiva do crédito tributário.

A norma específica do art. 24 da LINDB nem é inteiramente norma geral de interpretação e nem é compatível com o procedimento específico do lançamento fiscal, não sendo cabível aplicá-la de improviso a contextos para os quais não foi pensada e aos quais não se ajusta, sob pena de se criarem situações esdrúxulas como a demonstrada acima.

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Rodrigo de Macedo e Burgos – Procurador da Fazenda Nacional. Integrante do Núcleo de Acompanhamento Especial da Coordenação do Contencioso Administrativo Tributário da PGFN.

Fonte Oficial: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/artigo-24-da-lindb-lancamento-fiscal-e-o-carf-23082018.

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