Dentre os múltiplos problemas que acompanham o ICMS, colhe-nos de perplexidade a forma pouco técnica e atabalhoada com que são versados os temas relativos aos “serviços de comunicações”, como a pretensão constante de tributar prestações de serviços digitais ou a própria publicidade veiculada nos provedores, afora as próprias operações do comércio de mercadorias por via eletrônica. Na prática, uma sucessão de afrontas às competências dos municípios, tentativas gravosas de alargamento do campo material de incidência do ICMS para limites não autorizados pela Constituição e até mesmo de criação de barreiras tributárias entre estados.
E o que dizer da tributação do comércio eletrônico? Poucas vezes vimos algo tão canhestro em matéria tributária, depois das multifacetadas tentativas de debelar a chamada “guerra fiscal”, a exemplo das dificuldades geradas pela Resolução do Senado 13/2012. É a melhor evidência da escandalosa omissão do Senado Federal sobre as grandes questões federativas. E isso não se resume ao ICMS. A ausência do Senado nos debates sobre a dívida pública dos estados e negociações com a União é reveladora, contra tudo o que prescreve o artigo 52, V a IX da CF.
Fomentada pelas desigualdades regionais, falta de solução para a crise das alíquotas interestaduais, como método de repartição horizontal do ICMS, ausência de um plano nacional de desenvolvimento regional e intensiva competição entre estados, afora o grave endividamento de muitos destes, chega-nos a Emenda Constitucional 87, de 16 de abril de 2015. Mais uma “jabuticaba”. Uma exceção descabida e totalmente inoportuna, que integra a Constituição com o seguinte regime:
“Art. 155, § 2º:
..................................
VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;
VIII - a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII será atribuída:
a) ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;
b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto”.
E acrescentou ainda o que segue ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a saber:
“Art. 99. Para efeito do disposto no inciso VII do § 2º do art. 155, no caso de operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte localizado em outro Estado, o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será partilhado entre os Estados de origem e de destino, na seguinte proporção:
I - para o ano de 2015: 20% (vinte por cento) para o Estado de destino e 80% (oitenta por cento) para o Estado de origem;
II - para o ano de 2016: 40% (quarenta por cento) para o Estado de destino e 60% (sessenta por cento) para o Estado de origem;
III - para o ano de 2017: 60% (sessenta por cento) para o Estado de destino e 40% (quarenta por cento) para o Estado de origem;
IV - para o ano de 2018: 80% (oitenta por cento) para o Estado de destino e 20% (vinte por cento) para o Estado de origem;
V - a partir do ano de 2019: 100% (cem por cento) para o Estado de destino”.
Com isso, os estados de destino passaram a perceber um adicional do ICMS nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final — notadamente aquelas veiculadas por comércio eletrônico. Para tanto, a alíquota interna do ICMS (do estado de origem) passou a ser usada para segregar o imposto devido aos estados de destino e origem, pela dedução da alíquota interestadual (12% ou 7%), cuja diferença será repartida entre ambos os estados, adicionada à interestadual para o cômputo daquela do destino. A repercussão não poderia ser mais danosa.
Para regular essa matéria constitucionalizada, não adveio uma lei complementar, como reclama a Constituição, mas o Convênio Confaz 93/2015. Ora, um convênio desprovido de autorização constitucional para disciplinar alíquota interestadual, repartição de tributos, atividade de sujeito ativo, formação de base de cálculo, enfim, tudo aquilo que a Constituição confere, reservadamente, à Lei Complementar (artigo 155, parágrafo 2º, XII, “a”, “c”, “d” e “f”, da CF). A inconstitucionalidade do Convênio Confaz 93/2015 é incontornável. Tão grave quanto evidente.
Na sua operatividade, este Convênio Confaz 93/2015 prescreve que o estabelecimento de saída deve emitir Guia Nacional de Recolhimento de Tributos Estaduais (GNRE), segundo a legislação do estado de destino, para pagar a diferença entre as alíquotas interna e interestadual. Somente após gerar e pagar a GNRE (autorizado pelo “site” do estado de destino) o produto pode ser enviado ao comprador.
Não satisfeito com suas tantas inconstitucionalidades, o Convênio Confaz 93/2015 alcançava até mesmo os optantes do Simples Nacional, contra não somente o quanto previa a Lei Complementar 123, de 2006, mas especialmente o regime constitucional do tratamento favorecido à micro e pequena empresa (artigo 146, III, ‘d’ e parágrafo único da CF). Isso porque a manutenção do modelo de arrecadação do Convênio Confaz 93/2015 com aquele do DAS (Documento de Arrecadação do Simples Nacional) findaria por gerar uma inevitável dupla tributação quanto à parcela relativa ao ICMS embutida no montante do Simples.
Corretamente, o ministro Dias Toffoli concedeu liminar para suspender a cláusula 9ª do Convênio Confaz 93/2015, pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.464, para excluir as micro e pequenas empresas optantes pelo Simples desse regime nefasto. Quanto aos demais aspectos, não se pronunciou, remanescendo em vigor o Convênio Confaz 93/2015.
O resultado? Inibiu o florescimento e fortalecimento do comércio eletrônico no Brasil, ao contrariar o princípio da técnico da neutralidade tributária, afetou a unidade do federalismo, ao segregar os estados (diversos sites deixaram de vender para alguns estados) e discriminar seus consumidores (artigo 3º, IV da CF), instituiu uma velada “limitação ao tráfego de bens”, por tributo estadual, o que é vedado pela Constituição (artigo 150, V, da CF) e gerou um emaranhado burocrático de duração permanente, pois, mesmo após 2019, dificilmente o estado de origem deixará de exigir os documentos relativos à saída da mercadoria de cada estabelecimento.
Poderíamos prosseguir com vários outros exemplos do comércio eletrônico, como as tantas dificuldades de separação entre serviços de valor adicionado e aqueles típicos serviços de comunicação, ou mesmo com as tentativas de alcançar serviços sujeitos exclusivamente à competência municipal. Voltemos os olhos, por fim, para algo que talvez possa melhor evidenciar como todas essas tormentosas questões encontram-se muitas vezes desalinhadas: a publicidade em sites e provedores.
Matéria que inusitadamente ainda aguarda conclusão no âmbito do Supremo Tribunal Federal (em repercussão geral) diz respeito à celeuma sobre se há ou não incidência do ICMS na veiculação de publicidade na internet, o que desde logo afirmamos ser absolutamente indevido, pelos seguintes motivos:
- a atividade dos provedores de acesso à internet é serviço de valor adicionado, que não está sujeito à incidência deste imposto, nos termos da Súmula 334, do STJ;
- a veiculação de publicidade na internet não é comunicação, pois não há um alvo receptor determinado, tampouco interação entre o emissor e o receptor;
- há três relações distintas, as quais não se confundem: (a) a relação jurídica entre o anunciante, que paga a veiculação de publicidade no provedor; (b) a relação jurídica entre provedor e os assinantes que contratam serviços específicos do provedor; e (c) a relação fática entre este e seus usuários livres, que têm acesso gratuito ao conteúdo disponibilizado nos sites;
- eventual serviço de comunicação somente poderia ocorrer na relação entre provedor e usuários indeterminados, que têm acesso gratuito (e poucos são os pagos) ao sites, logo, com ausência inconteste de base de cálculo para cobrança do ICMS-Comunicação, ante o fato jurídico tributário do “acesso” pelos usuários aos conteúdos;
- quanto ao consumo de serviços de telecomunicações, os usuários que acessam o site, por qualquer instrumento, já sofrem a incidência do ICMS comunicação, na medida que usam seus respectivos serviços de acesso à internet (banda larga, internet discada, pacote de minutos pós-pago ou pré-pago), sujeito ao ICMS ao longo de toda a etapa;
- e pelo fato de os usuários acessarem os sites de modo gratuito, não há que se falar em incidência do ICMS, nos termos do artigo 155, §2º, X, ‘d’, da CF, incluído pela EC 42/2003, que dispõe sobre a não incidência do ICMS: “Nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita”.
Na internet, distintas atividades complementam-se, mas não se podem confundir, jurídica ou tecnicamente, pelo conjunto de fenômenos e regimes jurídicos tão diversos que se agrupam, para que a rede possa funcionar.
Com vistas a essa distribuição de atividades, encontramos três grupos bem definidos de sujeitos que atuam no âmbito da internet, com atividades também diferentes, a saber: i) as prestadoras de serviços de telecomunicações; ii.a) os provedores de acesso à internet; ii.b) os provedores de serviços de internet; e os iii) distribuidores de nomes de domínios e de endereços IP.
A atividade de veiculação de publicidade promovida no espaço digital de seu provedor não constitui prestação onerosa de serviço de comunicação, de modo que escapa à materialidade constitucionalmente prevista, no artigo 155, II, da CF/88, para fins de definição da competência tributária dos estados-membros da federação brasileira. Não há prestação de serviços de comunicação nessa atividade, salvo a possibilidade de emprego da analogia extensiva, vedada pelo artigo 108, parágrafo 1º, do CTN.
O que se deve identificar, para os fins do ICMS-Comunicação, é a presença da prestação onerosa de serviço de comunicação de qualquer natureza, quer dizer, de mensagem de qualquer espécie e veiculada por quaisquer meios que tenham condições efetivas para o provimento daquela finalidade.
Para a competência constitucional do ICMS, não importa o ato natural de comunicação, mas a “prestação de serviço de comunicação de qualquer natureza”, na forma do artigo 2º, III, da LC 87/1996, mediado por negócio jurídico que deve ter como “causa” jurídica a prestação de serviços que permitam a concretização de tal propósito, seja qual for o meio ou o conteúdo da mensagem.
O contrato de acesso à internet é aquele mediante o qual o provedor coloca à disposição do usuário todos os meios necessários para que este possa ter acesso à rede, em determinadas condições, segundo um preço ajustado entre si. Adicionalmente, o provedor poderá agregar serviços, facilidades e aplicações tecnológicas, como níveis adicionais de segurança, acesso ilimitado, espaço disponível, arquivos de dados etc. O contrato de divulgação de publicidade consubstancia-se em verdadeiro contrato de cessão de uso do espaço virtual, ou de locação deste espaço. A obrigação imposta ao provedor não é obrigação de fazer, mas sim obrigação de dar, de ceder o seu espaço virtual para o anunciante. Pelo contrato de divulgação de publicidade, o provedor não está obrigado a prestar nenhum serviço. A única prestação onerosa de serviço de comunicação, nos termos do artigo 155, II, da CF/88, ocorre na relação entre os usuários e as concessionárias dos serviços de telecomunicação.
Destas características, tendo em vista a presença de um destinatário indeterminado da publicidade, já se conclui que não há comunicação na veiculação de publicidade, pois a comunicação, como veremos detalhadamente a seguir, pressupõe um destinatário determinado e específico. E diz André Mendes Moreira: “É sobre o serviço de comunicação — e não sobre a comunicação isoladamente considerada — que incide o ICMS”[1]. Igualmente na lição de Roque Carrazza:
“Não se confundem com os serviços de comunicação — não podendo, destarte, ser tributados por meio do ICMS — os serviços de propaganda, ainda que levados a efeito por empresas ligadas ao setor das comunicações. (...) a simples divulgação de propaganda publicidade (por outdoors, banners, alto-falantes, emissoras de rádio, emissoras de televisão, internet etc.) não tipifica prestação de serviço de comunicação, seja porque a empresa que a realiza não coloca à disposição de terceiros os meios e modos para que troquem mensagens, seja porque o destinatário não é identificado, seja, ainda, porque não interage com o emissor”[2].
A veiculação de publicidade na internet não é comunicação, pois não há um alvo receptor determinado, tampouco interação entre o emissor e o receptor. Prestação de serviço de comunicação somente sofrerá a incidência do ICMS se for onerosa. O acesso livre e gratuito ao conteúdo disponível nos sites é divulgação de imagens, cuja cobrança de ICMS encontra óbice no artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea 'd', da CF/88. Os usuários que acessam o site já suportam o ICMS-Comunicação, na medida em que usam seus respectivos acessos à internet (banda larga, internet discada, pacote de minutos pós-pago ou pré-pago, WiFi etc.).
A partir da orientação firmada nos Embargos de Divergência no Recurso Especial 456.650/PR, posteriormente cristalizada na Súmula 334, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que não incide ICMS sobre o serviço de provimento de acesso à internet, uma vez que o serviço prestado pelo provedor (i) não se enquadra como serviço de telecomunicação, e antes depende dele, na condição de usuário; (ii) tampouco configura serviço de comunicação, no sentido relevante do direito tributário.
De igual modo, não servem de base de cálculo, ao lançamento e à cobrança do ICMS-Comunicação, os valores recebidos, pelo provedor, dos seus anunciantes. Isso porque a veiculação de publicidade, por meio da aludida cessão de espaço virtual do provedor, igualmente, não corresponde à prestação onerosa de um serviço de comunicação, evadindo-se, pois, ao âmbito da materialidade da referida exação.
E caso incidisse ICMS-Comunicação, quer sobre as atividades de provedor de internet, quer sobre as atividades de veiculação de publicidade no espaço virtual de tal provedor, os estados findariam por arrecadar duas vezes o mesmo tributo, sobre uma única prestação onerosa de serviço de comunicação; prestação esta a qual, como dito acima, é desempenhada, com exclusividade, nas duas situações em tela, pelas concessionárias dos serviços de telecomunicação — tributadas à alíquota de 25% — de cujos serviços são tomadores tanto o provedor, quanto seus usuários.
Confirma-se, assim, que a veiculação de publicidade, por meio de provedores de internet, refoge ao conceito constitucional de prestação de serviço de comunicação, porquanto a mensagem, veiculada, por um anunciante, por meio do espaço virtual do provedor, dirige-se a um sem-número de pessoas, por difusão; ausente o ato comunicacional, associado ao critério material do ICMS-Comunicação, descabe falar de fato jurídico suficiente para autorizar a pretensa imposição.
Por fim, este breve estudo sobre ICMS tem o propósito de prestar reverência à memória de um dos mais significativos professores do nosso Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Na semana passada, os estudos do ICMS, a tributação e a academia brasileira, na sua mais ampla dimensão, ficaram menores, com a perda do professor Alcides Jorge Costa. Foi, dentre todos, o jurista mais comprometido com as reformas tributárias e responsável pelas alterações legislativas mais relevantes do ICMS[3]. De humildade singular, atravessou gerações e cultivou a admiração de todos pelo seu modo sereno de ensinar a história ou a doutrina e de desvendar a complexidade do nosso sistema tributário. A este notável mestre de hoje e sempre, nossas homenagens e sincero reconhecimento. Descanse em paz, professor Alcides.
[1] MOREIRA, André Mendes. A tributação dos serviços de comunicação. São Paulo: Dialética, 2006, p. 65.
[2] CARRAZZA, Roque Antonio. O ICMS. São Paulo: Malheiros. 2015, p. 174.
[3] COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na lei complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 156.
por Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).
Fonte: Conjur
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