Há anos, os países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) buscam formas de combater a perda de arrecadação tributária causada por estratégias de planejamento tributário internacional. O leitor certamente já tomou conhecimento das reclamações formuladas contra empresas multinacionais que, a despeito do seu gigantismo, da sua grande capacidade operacional em escala global e do inerente poder de que são naturalmente investidas, pagam valores irrisórios aos Tesouros dos países em que operam, em total desconexão com os superlativos volumes de receitas que geram, com a dimensão da sua clientela e com os níveis elevadíssimos de renda auferida pelos seus principais executivos, sem mencionar a qualidade de vida excepcional que esses países, especialmente os mais avançados, proporcionam aos representantes dessas empresas.
Apuração recente do departamento de jornalismo de uma importante rede de televisão da França aponta na mesma direção: uma das empresaslíderes do setor de tecnologia da informação, com presença fortíssima no mercado da segunda economia da Europa, teria desembolsado a título de pagamento de impostos, no período de um ano, somente a modesta soma de € 5 milhões.
MP 685 peca ao não estabelecer critérios precisos sobre o tipo de planejamento que deve ser reportado
Para enfrentar esse fenômeno, chamado de "erosão da base tributável e deslocamento de lucros" (BEPS, acrônimo em inglês para "Base Erosion and Profit Shifting"), algumas iniciativas políticas vêm sendo propostas no âmbito da OCDE. Dentre elas, destacam-se a crescente intolerância ao planejamento tributário agressivo, a cooperação entre Estados e o aumento da coleta de dados sobre contribuintes e seus consumidores.
O Brasil já ensaia os primeiros passos com vistas à adoção de alguns mecanismos inspirados na política de erradicação das condições que levam à erosão da chamada base tributável e à fuga dos elementos constitutivos da renda. Dois exemplos: a tributação antecipada da participação nos lucros devida às empresas controladoras ou coligadas em território nacional, e a recente declaração de planejamento tributário (MP 685/2015).
É preciso analisar objetivamente os problemas gerados pelo planejamento tributário agressivo, deixando de lado certos preconceitos. Isso vale tanto para a abordagem do BEPS quanto para a análise da sua versão nacional.
Ao atacarem o fenômeno BEPS, os países centrais se mostram preocupados com a própria perda de arrecadação. Para eles, o combate ao planejamento tributário não é uma questão de justiça, nem de altruísmo. É fato que a mesma globalização que viabiliza o desmembramento do processo produtivo na busca desenfreada por mão-de-obra mais barata é a responsável pelo processo que em determinado momento engendrou mecanismos que levaram à manipulação da forma de contabilização de certos custos ou "insumos" integrantes do processo produtivo, com a sobrevalorização de elementos marcadamente intangíveis como, por exemplo, a propriedade intelectual.
Um dos riscos que podem decorrer da adoção açodada do plano de ação BEPS reside nos efeitos que as novas políticas de fiscalização tributária podem gerar no ambiente nacional para os negócios. Com o BEPS, a OCDE espera que as empresas passem a pagar mais tributos, não importa para quem. É bem provável que esse "surplus" de receita seja canalizado para o país ou países em cujo território ocorra a etapa com maior criação ou agregação de valor ao produto ou ao serviço.
O cerne das discussões sobre o BEPS parece inequívoco: sem dúvida, o que se busca é fomentar acréscimos arrecadatórios em benefício dos países onde ocorrem as etapas intelectuais cruciais das atividades econômicas. Como se sabe, a informação é atualmente o bem mais valioso dos processos produtivos, seja a decorrente dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento seja a pertinente aos custos com propriedade intelectual. Se o Brasil não se ajustar internamente de modo a trazer maior agregação de valor ao seu processo produtivo interno, abandonando a trilha que aparentemente escolheu de ser um mero exportador de "commodities", findará inelutavelmente por perder arrecadação em consequência das políticas que vêm sendo gestadas no plano internacional.
É igualmente importante adotar a devida cautela e evitar que o combate ao fenômeno BEPS se converta em pretexto para a criação de normas invasivas, desproporcionais ou francamente contrárias à Constituição. Transparência tributária há de ser necessariamente uma via de mão dupla. Questões atinentes, por exemplo, ao peculiar modo de escolha dos membros do CARF e o acesso à aplicação da lei em concreto pelas autoridades fiscais sugerem que ainda subsiste no âmbito da organização administrativo-fiscal brasileira uma forte assimetria em detrimento do cidadão-contribuinte.
Aparentemente, o novíssimo dever de declarar às autoridades fiscais o planejamento tributário favorece o estado de incerteza e tensiona desnecessariamente as relações entre Estado e contribuintes. A MP 685 utilizou palavras vagas e ambíguas que pouco auxiliam na definição de critérios precisos para determinar o tipo de planejamento tributário que deveria ser reportado. Pior: o texto da MP peca ao não estabelecer critérios precisos de admissibilidade ou inadmissibilidade do planejamento tributário. É o pior dos mundos possíveis, pois o contribuinte necessita antecipar ou adivinhar a interpretação que a autoridade fiscal irá adotar, e a penalidade pelo erro no vaticínio é desproporcional à ofensa.
É importante deixar de lado o preconceito maniqueísta, com base no qual se rotulam os contribuintes ora como sonegadores lombrosianos ora como vítimas perenes do sistema e do Fisco, ou ainda como mocinho em eterno pé de desigualdade, conforme variem os interesses.
Em resumo, é salutar manter um olhar atento aos esforços da OCDE para combater o BEPS. Mas, por outro lado, teremos muito a perder se nos limitarmos a transplantar de maneira açodada e irrefletida essas ferramentas de análise e controle, ou se dela fizermos um mero pretexto para fazer o que a Constituição não permite.
por Joaquim Barbosa, advogado, professor universitário, doutor em Direito pela Universidade de ParisII Panthéon Assas, foi membro e presidente do Supremo Tribunal Federal (2003/2014).
Thiago Sorrentino é advogado. Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e professor universitário.
Fonte: Valor
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