quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

04/02 Existe um direito contábil?

Se acompanharmos os doutrinadores modernos, para os quais o "direito" pode ser definido como um conjunto de normas jurídicas (lex), o direito contábil seria a sistematização dos dispositivos normativos que tratam das demonstrações financeiras. Nesse sentido, existem as normas efetivamente legais, tais como o Código Civil, a Lei das Sociedades por Ações e outras leis dispersas, e existem as normas infralegais, oriundas do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, quando aprovadas. As normas jurídico-contábeis, por assim dizer, regulamentam tanto a estrutura das demonstrações financeiras quanto os direitos e as obrigações existentes nas relações da pessoa jurídica com seus contratantes (stakeholders).

De outra parte, no caso de recorrermos aos pensadores clássicos, nomeadamente Aristóteles e Tomás de Aquino, veremos que o "direito" é entendido como relação (jus), na qual se deve buscar a justa distribuição dos benefícios e das responsabilidades entre as pessoas que se relacionam. Se essa concepção do "direito" já conduz a conclusões interessantes na sua aplicação prática, no campo do direito contábil essa seria a definição mais apropriada. Isso porque as demonstrações contábeis concentram as relações jurídicas (contratos) assumidas pela empresa, apresentando o seu patrimônio como o conjunto dessas relações.

Inicialmente, as demonstrações financeiras, de maneira geral, e o balanço patrimonial, de maneira particular, viabilizam o princípio da autonomia patrimonial, pelo qual o patrimônio dos sócios não se confunde com o patrimônio da sociedade (pessoa jurídica). A própria ficção da personalidade jurídica é fruto desse princípio porque, ao lado de propiciar a reunião de esforços para o desenvolvimento de determinada atividade econômica, a constituição da pessoa jurídica limita a responsabilidade dos sócios, por um lado, e garante os credores por outro. As demonstrações financeiras, então, servem para identificar o patrimônio específico da pessoa jurídica (sociedade e empresa), estabelecendo os limites da responsabilidade dos empreendedores (sócios) e da garantia dos contratantes (credores, em sentido bastante amplo).

As demonstrações financeiras, se não solucionam conflitos, servem como instrumento de mediação

O patrimônio da pessoa jurídica retratado nas demonstrações financeiras é formado pelas diversas relações jurídicas que foram estabelecidas para o desenvolvimento da atividade econômica escolhida. Essas relações jurídicas podem ser entendidas como os contratos celebrados pela empresa (pessoa jurídica), com os mais diversos agentes (stakeholders): contrato social (sócios), contrato de trabalho (empregados), contrato de financiamento (instituições financeiras), contrato de aquisição de bens e serviços (fornecedores) e de venda de bens e serviços (clientes), além das relações jurídicas com o Poder Público (órgãos reguladores e administração tributária). Enfim, a reunião desses contratos – a somatória dos devedores da empresa (ativos) subtraída pela somatória dos credores da empresa (passivos) -, resulta no seu patrimônio, na sua riqueza.

Por se tratar de relações jurídicas, a pessoa jurídica está exposta a diversos conflitos, ainda que em potencial, dentre os quais: o tradicional conflito de agência, entre o proprietário (sócio) e o administrador (executivo); o segundo grau desse conflito de agência, entre o acionista controlador e os demais acionistas (de mercado e minoritários); em seguida, os potenciais conflitos com empregados, fornecedores, clientes, financiadores e, inclusive, a comunidade, destacadamente na questão ambiental. As demonstrações financeiras, se não solucionam esses conflitos, servem como instrumento de mediação entre os contratantes, desde a prestação de contas até a apuração de condições de garantia (covenants), passando pela revelação dos seus impactos.

Veja-se um exemplo, baseado em fatos reais: determinada empresa, próspera no passado, tem passado por dificuldades. Um representante comercial, contratado no regime da CLT com remuneração variável (comissão), ingressa com reclamação trabalhista pleiteando o recebimento de alto valor. O reconhecimento contábil dessa contingência (seja como provisão seja se a reclamação for julgada procedente) impacta o resultado do período gerando prejuízo. Por conta disso, o sócio ficará sem dividendo (primeiro efeito). Adicionalmente, o prejuízo reduz o patrimônio líquido, ocasionando a quebra de covenant (segundo efeito). O direito contábil, então, cuida da evidenciação e da regulamentação desses efeitos.

por Edison Carlos Fernandes é professor de contabilidade aplicada ao direito da FGV Direito SP e articulista do blog Fio da Meada, do Valor Econômico.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte: Valor
Via Alfonsin

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