quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O ADI nº 05, O Ônus de Prova e a Ditadura da Receita Federal

Creio que, em qualquer época, eu teria amado a liberdade; mas, na época que em vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la.

(Alexis de Tocqueville)

A lei 13.254 de 2016 instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT, permitindo aos contribuintes a regularização de ativos mantidos no exterior. Tal programa permitiu que o contribuinte regularizasse ativos obtidos de forma lícita, sendo afastada a possibilidade de regularização de bens e ativos oriundos da prática de ilícitos, como tráfico de drogas, corrupção, tráfico de armas, dentre outros crimes.

Tal regime teve objetivo de aumentar a tributação e permitir que os brasileiros se regularizassem sem a aplicação de punições. Esse foi um movimento mundial, tendo sido adotado por diversos países, como Estados Unidos e Argentina, por exemplo.

Tais medidas foram adotadas em razão da adesão de 128 países, incluindo o Brasil, à Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal, que previu a troca automática de informações fiscais e bancárias entre os países signatários.

Como se não bastasse, em 2015, o Brasil aderiu ao Foreign Account Tax Compliance Act – FATCA,  um tratado que permite a troca automática de informações bancárias e movimentação patrimonial entre Brasil e Estados Unidos.

Após tais medidas, seria interessante permitir a regularização de ativos no exterior para contribuintes que não tenham cometido alguns crimes, pois reduziria a base de informações a ser fiscalizada e aumentaria a arrecadação.

Com essa troca automática de informações, paraísos fiscais históricos como a Suíça perderam sua principal característica que era a manutenção de contas numeradas, onde era possível esconder numerários de origem lícita ou ilícita. Esse movimento foi, por óbvio, um passo importante no combate à prática de ilícitos de toda sorte, como sonegação, lavagem de dinheiro, corrupção e etc.

Como se pode ver, a criação do RERCT, permitindo a regularização ou repatriação dos ativos e bens mantidos no exterior com a anistia de diversos crimes, como a evasão de divisas e a própria sonegação fiscal, seguiu um movimento global.

Com a edição da lei em análise, diversas dúvidas surgiram, no entanto, o diploma legal previu com clareza que caberia a adesão ao regime mesmo que houvesse sido praticados alguns crimes, previstos no art. 5º § 1º da lei nº 13.254/16, ora em análise, quais sejam, os crimes contra ordem tributária previstos na Lei 8.137/1990; crime de sonegação de que trata a Lei 4.729/1965; sonegação de contribuição previdenciária, constante do artigo 337-A Código Penal; falsificar documento público; documento particular; omitir declaração e uso de documento falso, delitos previstos no artigo 297, 298, 299 e 304 do Decreto-Lei 2.848/1940; crime contra o sistema financeiro, integrantes da Lei 7.492/1986 e crime de “lavagem” ou ocultação de bens, constantes da Lei 9.613/1998. Não cabia a comprovação da origem dos ativos, o que ficava claro na norma em análise.

No entanto, a Receita Federal do Brasil, por meio do Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 5, de 04 de dezembro de 2018, alterou o entendimento ao arrepio da lei de Repatriação, de modo que ao ser fiscalizado o contribuinte terá a obrigação de comprovar a origem dos valores e bens regularizados/repatriados. Vejamos:

“A RFB, mediante intimação, concederá prazo razoável para que o optante ao RERCT apresente a comprovação sobre a origem lícita dos recursos regularizados”.

Ademais, na forma do art. 9º da lei que instituiu o RERCT, o contribuinte perde o benefício da lei de Repatriação caso os valores declarados sejam fruto de práticas ilícitas. Todavia, a própria lei anistia os crimes em questão. Com isso, a exigência da receita de comprovação de origem dos valores viola o objetivo da lei e fere a segurança jurídica e boa fé objetiva do contribuinte, que se embasou na norma para regularizar sua situação perante o fisco. Sobre a proteção à confiança, leciona Canotilho:

“O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direto.”[1]

Por óbvio não defendemos a absoluta impuniblidade, mas que a fiscalização seja ônus do poder público, que deverá provar a origem ilícita dos valores mantidos no exterior e não do contribuinte que declarou e reconheceu os valores mantidos no exterior fundados na impossibilidade de tal declaração ser utilizada contra si. A Receita não pode submeter o contribuinte ao seu julgo, sob o risco de vivermos em uma ditadura. Que sejam produzidas as provas necessárias para a punição do contribuinte que tenha praticado algum ilícito, com o respeito aos princípios fundamentais que não podem ser afastados, em qualquer hipótese, sobretudo com o objetivo meramente arrecadatório. A proteção à confiança não pode ser um manto para a prática de ilícitos, mas é um princípio que precisa ser observado, como leciona Couto e Silva:

“É certo que o futuro não pode ser perpétuo prisioneiro do passado, nem podem a segurança jurídica e a proteção à confiança se transformar em valores absolutos, capazes de petrificar a ordem jurídica, imobilizando o Estado e impedindo-o de realizar as mudanças que o interesse público estaria a reclamar. Mas, de outra parte, não é igualmente admissível que o Estado seja autorizado, em todas as circunstâncias, a adotar novas providências em contradição com as que foram por ele próprio impostas, surpreendendo os que acreditaram nos atos do Poder Público.” [2]

No caso em questão, aquele contribuinte que de boa fé buscou sua regularização não poderá ser prejudicado, não sendo razoável a necessidade de prova lícita dos valores regularizados ou repatriados. O ônus da prova da culpa do contribuinte é do poder público, sendo completamente desarrazoado obrigar o contribuinte a comprovar sua inocência, sob pena de uma crise de segurança jurídica no país.

Estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica são pilares do direito. O cidadão necessita saber sob qual ordenamento jurídico está submetido e quais serão os efeitos das suas ações. Essa premissa básica do direito está sendo desrespeitada pela edição do ADI nº 5, sobretudo porque no ordenamento jurídico brasileiro, o ônus da prova é de quem acusa e não do acusado.

[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7a Edição, Coimbra – Portugal: Ed. Almedina, 2000, p. 257.
[2]  COUTO E SILVA, Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o Prazo Decadencial do Art. 54. da Lei do Processo Administrativo da União (Lei no 9.784/99). Revista da Procuradoria-Geral do Estado, Porto Alegre, volume 27, no 57, 2003, p. 38.

Joaquim Leitão Júnior
é Delegado de Polícia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Jataí. Professor de cursos preparatórios para concursos públicos.

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