quarta-feira, 13 de abril de 2016

13/04 Integridade tributária e a regularização de ativos lícitos no exterior

O uso de paraísos fiscais e de contas no exterior com recursos não declarados têm sofrido seus maiores golpes nos últimos anos. Antes desse recente vazamento de documentos de um escritório de advocacia panamenho (Panama Papers), tivemos o SwissLeaks (vazamento das contas do HSBC da suíça) e o LuxLeaks (vazamentos sobre a legislação luxemburguesa dos “rulings”, com negociação da base de cálculo ou da alíquota aplicável aos impostos). Portanto, outros podem estar por vir. Enquanto isso, transformações notáveis condicionam mudanças de cultura e da própria legislação nos mais variados países, inclusive no Brasil.

O episódio “Panamá Papers” evidenciou muito bem o quadro de rejeição social às velhas práticas que marcaram a era dos “paraísos fiscais”, para manter disponibilidades e titularidade de ativos, recursos ou bens situados no exterior. Especialmente no quadro de crise econômica internacional,[1] um novo padrão de moralidade eleva-se e considera inconcebível que justamente os mais ricos prefiram ocultar-se em estruturas de “offshores” para atingir o êxito de evitar a tributação. Daí serem todos confundidos, como se estivessem em situações idênticas, tanto aqueles que detém recursos de origem lícita e estão declarados no País de residência ou de nacionalidade, o que é permitido, quanto os que não estão declarados, apesar de ter origem lícita, e aqueles que possuem origem ilícita e não são declarados.

Não basta que o titular seja uma pessoa proba e honesta ou que os recursos sejam frutos do trabalho ou do emprego legítimo do capital e da renda. Onde quer que estes se encontrem, dentro ou fora do País, o dinheiro e os ativos devem estar declarados às autoridades competentes e os impostos devidos, pagos periodicamente.

Para o controle da titularidade de contas bancárias, na comunidade internacional, algumas iniciativas estão em curso e deverão gerar grande impacto sobre as contas de recursos no exterior, tanto os de origem ilícita, quanto os de origem lícita, mas não declarados. Depois da entrada em vigor do acordo americano FATCA (Foreign Account Tax Compliance Act), em setembro de 2015, recentemente, a Câmara de Deputados aprovou, no dia 23 de março passado, o Projeto de Decreto Legislativo nº 84/2015, que autoriza a ratificação da “Convenção Multilateral sobre Assistência Administrativa Mútua em Assuntos Fiscais”, da OCDE, que permitirá as trocas de informações sobre contas bancárias a partir de 1º de janeiro de 2017. O texto seguiu para o Senado, em regime de urgência.

A conclusão é simples, mas definitiva: o mundo mudou. Aqueles que se jactavam de não pagar impostos ou de utilizar-se de planejamentos tributários internacionais supostamente eficientes já não encontram adesão. Daí a superação dos chamados “planejamentos tributários agressivos” coincidir com meios predispostos para a construção de uma era do Fisco Global, com prevalência dos valores de uma “integridade tributária” (tax compliance) sobre qualquer pretensão de fuga dos sistemas tributários.

É nesta nova conjuntura que se inserem os programas de “Offshore Voluntary Disclosure”, como justiça de transição entre os tempos de sigilo bancário pleno e os novos modelo de transparência e controlabilidade de dados fiscais de contas com depósitos de origem “lícita”. Dos 132 países que integram o chamado Foro Global, 49 países já instituiram programas semelhantes, como Inglaterra, Canadá, Alemanha, Estados Unidos, Japão, Itália, Espanha, Hungria, India, China e outros.

No Brasil, este Programa recebeu o nome de “Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária” – RERCT, criado pela Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016, foi recentemente regulamentado pela Secretaria da Receita Federal por meio da Instrução Normativa RFB nº 1627, de 11 de março de 2016 e, pelo Banco Central, mediante a Circular BACEN nº 3.787, de 17 de março de 2016. No último dia 04 de abril, o Ato Declaratório Executivo RFB nº 2, de 01 de abril de 2016, aprovou o formulário eletrônico da Declaração de Regularização Cambial e Tributária (Dercat).

Este Regime de regularização teve início nos trabalhos da “CPI do HSBC”[2] e por determinação do Senador Randolfe Rodrigues, autor do PLS nº 298/2015.[3] Mais tarde, evoluiu pelo reconhecimento da sua importância, pelo Ministro Joaquim Levy, como parte do Ajuste Fiscal, para compartilhar recursos com os Estados e Municípios. Portanto, nada tem que ver com propósitos de caráter político ou alinhados com interesses partidários. E, para assegurar essa característica, foi oportuna a emenda apresentada em Plenário, pelo Deputado Bruno Covas, para afastar sua aplicação a políticos ou ocupantes em cargos públicos com função de direção, extensivo aos cônjuges e parentes até o segundo grau.[4]

Quem voluntariamente aderir à regularização deverá promover a declaração e pagar 15% de imposto sobre o valor total a ser regularizado, a título de ganho de capital, além de multa de 15% sobre a mesma base. Presume-se, na forma do art. 4º, § 8º, como no caso de depósitos (art. 3º, I e III), o saldo existente em 31 de dezembro de 2014, conforme documento disponibilizado pela instituição financeira custodiante. E tudo lançado em declaração transparente, limitadamente a recursos de origem lícita, com o dever de guarda dos documentos necessários.[5]

O RERCT limita-se materialmente pela declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita (art. 1º, da Lei nº 13.254/2016), não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no País. É defeso o alcance a recursos de origem “ilícita” de qualquer natureza. E quem assim proceder sofrerá a imediata “exclusão” do programa, pela fraude à respectiva declaração.

Esta declaração estará protegida pelo sigilo fiscal, como qualquer declaração de imposto sobre a renda. Só pode ser alcançada por decisão judicial que tenha outros motivos suficientes para autorizar alguma quebra de sigilo de dados, como ocorre em qualquer outro caso. Portanto, não corrobora com a verdade a alegação de haver alguma restrição a investigações. O que se afirma é a segurança jurídica em favor do declarante, para que a declaração de regularização não seja o “único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal” (art. 4º, § 12 da Lei nº 13.254/2016). Logo, desde que persista motivos adicionais à DERCART para investigações pela Polícia Federal ou pelo Ministério Público, a DERCAT não será obstáculo, caso seja judicialmente quebrado o sigilo fiscal do contribuinte. Tudo conforme o art. 1º, § 4º da Lei Complementar nº 105/2001.[6]

Segundo o art. 31 da IN RFB nº 1.627/2016, a divulgação ou a publicidade das informações presentes no RERCT implicarão efeito equivalente à quebra do sigilo fiscal, sujeitando o responsável às penas previstas na Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, e no art. 325 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. E o parágrafo único esclarece ainda que, na hipótese de a quebra do sigilo ser praticada por funcionário público, o responsável ficará sujeito à pena de demissão além das penalidades ali previstas.

Como dito acima, a declaração não é bastante para afirmar qualquer definitividade da anistia postulada. Conforme o art. 9º da Lei nº 13.254/2016, será excluído do RERCT o contribuinte que apresentar declarações ou documentos falsos relativos à titularidade e à condição jurídica dos recursos, bens ou direitos declarados. Neste caso, serão cobrados os valores equivalentes aos tributos, multas e juros incidentes, sem prejuízo da aplicação das penalidades cíveis, penais e administrativas cabíveis. Ou seja, a exclusão autoriza o afastamento integral dos benefícios da anistia, caso seja verificada eventual utilização do RERCT para recursos de origem ilícita, em qualquer dos casos vedados pela Lei ou por pessoa não autorizada. Neste caso, como prescreve o § 2º do art. 9º, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais adicionais à declaração do contribuinte.

A legislação em vigor encontra-se em plena consonância com as disposições determinadas pelo “Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo” (GAFI/FATF), mormente pelo envolvimento de instituições financeiras na repatriação que o contribuinte pretenda para os recursos depositados no exterior. Com isso, uma vez identificada evidência de operação suspeita, pela instituição de origem dos recursos (§ 13 do art. 4º), esta deverá ser comunicada às autoridades competentes, como em qualquer outro caso. Não há qualquer tolerância com lavagem de dinheiro ou equivalente e nada há na lei que vede tais controles. A anistia a “lavagem de dinheiro” vincula-se diretamente à sonegação fiscal decorrente da “evasão de divisas”, como tipos penais alcançados na hipótese do art. 5º da Lei nº 13.254/2016.

Destarte, espera-se adesão significativa dos contribuintes ao RERCT, neste novo cenário de integridade tributária (tax compliance), o que contribuirá para a recuperação da nossa economia, pela adição de riqueza nova e futuras cobranças de tributos, mas também com o aumento de receitas públicas, fundamental para superar a situação gravíssima dos estados e municípios, que poderão contar com receita adicional das transferências constitucionais, além da própria União, na realização do seu ajuste fiscal.

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[1] Veja-se: https://www.youtube.com/watch?v=4ECi6WJpbzE – Overdose – A próxima crise financeira (doc.); https://www.youtube.com/watch?v=UgstIm2Ee-o – Capitalismo: uma história de amor (doc.); https://www.youtube.com/watch?v=5jORoEE-CEk – Enron: os mais espertos (doc.); https://www.youtube.com/watch?v=xL8hXYGg8mA – O Capital (filme); https://www.youtube.com/watch?v=4UKz8fyPIEE – A grande aposta (filme).

[2] http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/04/30/jurista-diz-a-cpi-que-o-brasil-poderia-repatriar-us-60-bilhoes-com-mudanca-na-legislacao

[3] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/121324

[4] “Art. 11.  Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta Lei.”

[5] Art. 4º, “§ 6o  É a pessoa física ou jurídica que aderir ao RERCT obrigada a manter em boa guarda e ordem e em sua posse, pelo prazo de 5 (cinco) anos, cópia dos documentos referidos no § 8o que ampararam a declaração de adesão ao RERCT e a apresentá-los se e quando exigidos pela RFB.”

[6] Lei Complementar nº 105/2011, art. 1º – “§ 4o A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:

I – de terrorismo;

II – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;

III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção;

IV – de extorsão mediante seqüestro;

V – contra o sistema financeiro nacional;

VI – contra a Administração Pública;

VII – contra a ordem tributária e a previdência social;

VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores;

IX – praticado por organização criminosa.”

Por Heleno Taveira Torres - Professor Titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Foi Vice-Presidente da International Fiscal Association – IFA. Advogado.

Fonte: Jota

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