Juntamente com o fato gerador, a base de cálculo é elemento essencial na determinação da natureza jurídica dos tributos e na diferenciação das suas diversas espécies.
Elementos quantitativo e material da obrigação tributária, a base de cálculo e o fato gerador devem manter absoluta coerência entre si, sob pena de propiciar-se, por meio de regras ou interpretações que não observem essa correlação, verdadeira extrapolação da competência constitucionalmente atribuída aos entes políticos tributantes.
É à luz dessa premissa que devem ser interpretados os dispositivos legais instituidores de tributos nas três esferas da federação.
Nesta coluna, tratarei da incidência do ICMS no valor pago pelos consumidores, a título de garantia estendida das mercadorias que adquirem das grandes redes de varejo, para o que a premissa acima estabelecida será de extrema importância.
No que concerne especificamente à comercialização de mercadorias, a competência tributária constitucionalmente atribuída aos estados teve os seus contornos circunscritos na singela, mas expressiva, definição constante do artigo 155, II, da Constituição Federal: “compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias”.
Vê-se, portanto, que, além dos elementos “circulação” e “mercadorias”, a Constituição faz expressa referência a “operações” como elemento cuja existência é essencial para que haja o nascimento da obrigação de pagar o ICMS na comercialização de bens.
E, por “operações”, a jurisprudência é absolutamente pacífica no sentido de que elas configuram negócios jurídicos (atos mercantis) dos quais decorram a transferência da propriedade das mercadorias cujas saídas sejam promovidas pelos contribuintes[1].
Quanto à base de cálculo, atendendo a expressa delegação constitucional (artigo 155, parágrafo 2, inciso XII, letra i), a Lei Complementar 87/96 determina que ela será o "valor da operação".
Não se discute que esse conceito seja amplo o suficiente para abranger mais do que o mero preço da mercadoria vendida. Tanto assim, que o parágrafo primeiro do artigo 13 da LC 87/96 determina que integra a base de cálculo do ICMS o valor correspondente a seguros, juros, frete e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas.
Esses valores são acrescidos ao preço e, porque inerentes à operação realizada, compõem o seu valor, ou seja, integra o negócio jurídico celebrado entre o contribuinte e o seu cliente, do qual resulta a transferência da propriedade da mercadoria e a sua consequente “saída” do estabelecimento comercial.
Assim se justifica a tributação dos valores referidos no parágrafo primeiro do artigo 13 da LC 87/96.
Mas, por mais óbvio que possa parecer, há que se ressaltar que tais valores acessórios somente serão alcançados pela incidência do ICMS se mantiverem estrita relação com o negócio jurídico que dá ensejo ao nascimento da obrigação tributária. Do contrário, estar-se-á admitindo a inserção na base de cálculo de valores absolutamente estranhos ao respectivo fato gerador.
De fato, não há como o imposto incidir sobre valores relativos a negócios jurídicos que, apesar de relacionados às mercadorias comercializadas, são alheios àqueles celebrados entre contribuinte e o respectivo adquirente (consumidor) para consubstanciar a transferência da propriedade dos bens objeto de circulação.
Tanto assim, que a própria LC 87/96, ao tratar da possibilidade de o frete integrar o valor da operação, faz a expressa ressalva de que, para tanto, ele deverá ser realizado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem. Se o frete for contratado com terceiros pelo próprio adquirente, ele será alheio ao negócio jurídico que dá fundamento à incidência do ICMS, não podendo, consequentemente, ser inserido no respectivo valor da operação.
No que diz respeito aos juros, o Superior Tribunal de Justiça, por meio das suas Súmulas 237[2] e 395[3], pacificou o entendimento de que a venda a prazo e a venda financiada merecem receber tratamentos distintos no que concerne à sua caracterização como elemento integrante do valor da operação. Eis o texto da ementa do AgRg nos EDcl no Agravo de Instrumento 1.196.539-SP, que transcrevo abaixo e bem retrata essa distinção:
“1. A "venda financiada" e a "venda a prazo" são figuras distintas para o fim de encerrar a base de cálculo de incidência do ICMS, sendo certo que, sobre a venda a prazo, que ocorre sem a intermediação de instituição financeira, incide ICMS.
(...)
A "venda a prazo" revela modalidade de negócio jurídico único, cognominado compra e venda, no qual o vendedor oferece ao comprador o pagamento parcelado do produto, acrescendo-lhe um plus ao preço final, razão pela qual o valor desta operação integra a base de cálculo do ICMS, na qual se incorpora, assim, o preço "normal" da mercadoria (preço de venda à vista) e o acréscimo decorrente do parcelamento.
(...)
3. A venda financiada, ao revés, depende de duas operações distintas para a efetiva "saída da mercadoria" do estabelecimento (artigo 2º do DL 406/68), quais sejam, uma compra e venda e outra de financiamento, em que há a intermediação de instituição financeira, aplicando-se-lhe o enunciado da Súmula 237 do STJ: "Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no cálculo do ICMS." (STJ, AgRg nos EDcl no Ag 1.196.539/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, de 03.08.2010)[4]
Vê-se, portanto, que o elemento determinante para a não incidência do ICMS na venda financiada é o fato de que, nessas circunstâncias, há a realização de dois negócios jurídicos distintos, sendo o de financiamento inalcançável pela tributação do ICMS, porque estranho à operação da qual resulta a circulação de mercadorias.
E o que ocorre no caso da garantia estendida ou complementar?
Nos termos da legislação aplicável, há basicamente três espécies de garantia: a legal, a contratual (conferida pelo fornecedor mediante termo escrito) e a estendida, regulada pela Resolução CNSP 296/2013.
Entende-se por garantias do fornecedor a garantia legal e, se houver, a garantia contratual. A garantia estendida tem como objetivo propiciar ao segurado, facultativamente e mediante pagamento de prêmio, a extensão temporal das garantias legal e contratual.
O seguro a ela correspondente é, como dito, facultativo ao adquirente da mercadoria e por ele contratado com a instituição financeira em momento posterior ao contrato de compra e venda celebrado com a empresa comerciante, sendo expressamente vedado condicionar-se a compra do bem ou a concessão de descontos à contratação dessa garantia.
Em regra, nessa transação, a empresa comerciante figura como mera intermediadora na contração do seguro com o usuário final, tornando-se, nessas circunstâncias, prestadora de serviços e, consequentemente, contribuinte do ISS, cuja base de cálculo será exclusivamente o valor da comissão por ela cobrado à instituição financeira.
Os valores relativos à garantia estendida são, por conta e ordem da seguradora, recebidos dos consumidores pela empresa comerciante e, posteriormente, repassados a esta última em prazo previamente por elas acordado.
Note-se que, diversamente das garantias legal e contratual (que são obrigatórias ou previamente estabelecidas), a garantia estendida é instituída por um negócio jurídico absolutamente opcional e independente do contrato de compra e venda que se celebra.
Os contratos de seguro somente influenciarão a base de cálculo do ICMS quando celebrados pelo próprio vendedor da mercadoria (empresa comerciante, contribuinte do ICMS), com repasse dos respectivos valores ao consumidor final. De fato, nessas circunstâncias, tais montantes podem ser considerados inseridos no conceito de valor da operação, tendo em vista que são inerentes ao negócio jurídico do qual decorre a transferência da propriedade das mercadorias objeto de circulação, fato gerador do imposto.
Agora, se o seguro (e essa assertiva também se aplica ao frete) é contratado diretamente pelo consumidor final junto à instituição financeira que o outorga, tratar-se-á de negócio jurídico que não mantém qualquer vínculo formal com o da compra e venda da mercadoria, não podendo, portanto, ser considerado como integrante do respectivo valor, mormente quando se trata de contratação necessariamente posterior àquela de que decorre a circulação da mercadoria, como é o caso da garantia estendida.
E o fato de a empresa comerciante intermediar a contratação desse seguro não muda essa conclusão. Como salientado acima, essa intermediação decorre da relação contratual de prestação de serviços entre a empresa comerciante e a seguradora e, portanto, não tem o condão de influenciar o valor da compra e venda realizada.
Essa é a única interpretação que se pode dar ao disposto no parágrafo primeiro do artigo 13 da LC 87/96, segundo o qual integra a base de cálculo o valor correspondente a seguros, juros, frete e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas. Essa integração a que se refere a lei somente é possível nas hipóteses em que se trate de valores referentes a negócios celebrados entre o consumidor final e a empresa vendedora das mercadorias, e não com terceiros.
Esse entendimento, contudo, não foi compartilhado pelas administrações tributárias das diversas unidades da federação brasileira. Diversos autos de infração foram lavrados contra empresas comerciantes que não tributavam os valores correspondentes a garantias estendidas contratadas pelos seus clientes (na forma acima demonstrada), tendo sido vacilante a jurisprudência administrativa relativa à inserção, ou não, desses valores na base de cálculo do ICMS[5].
Recentemente, contudo, ao julgar recurso interposto pela Fazenda estadual contra decisão favorável ao contribuinte proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a 1ª Turma do STJ decidiu que o montante pelo consumidor a título de garantia estendida não integra o valor da operação sobre o qual incide o ICMS (REsp 1.346.749).
O ministro relator adotou o entendimento de que, apesar de a base de cálculo do ICMS não estar limitada ao preço da mercadoria e poder abranger valores relativos a condições exigidas do comprador como pressuposto para a respectiva compra e venda, não podem ser nela computados montantes relativos a negócios celebrados com terceiros, estranhos à operação que dá ensejo à incidência do ICMS.
Essa decisão, além de interpretar de forma absolutamente correta a legislação que rege a matéria, está em plena consonância com a jurisprudência do tribunal aplicável às situações em que são estabelecidas relações jurídicas paralelas àquela que configura fato gerador do imposto.
[1] "IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS - DESLOCAMENTO DE COISAS - INCIDÊNCIA - ART. 2º, INCISO II DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ANTERIOR. O simples deslocamento de coisas de um estabelecimento para outro, sem transferência de propriedade, não gera direito à cobrança de ICM. O emprego da expressão "operações", bem como a designação do imposto, no que consagrado o vocábulo "mercadoria" são conducentes à premissa de que deve haver o envolvimento de ato mercantil e este não ocorre quando o produtor - simplesmente movimenta frangos, de um estabelecimento a outro, para simples pesagem."(STF, AgRg no AI n° 131.941-1, 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, de 09.04.91)
[2] “Nas operações com cartão de crédito, os encargos relativos ao financiamento não são considerados no cálculo do ICMS.” (Súmula 237, 1ª Seção, de 10.04.2000)
[3] “O ICMS incide sobre o valor da venda a prazo constante da nota fiscal.” (Súmula 395, 1ª Seção, de 07.10.2009)
[4] Há decisões no mesmo sentido no âmbito do STF. A título ilustrativo: ““A "venda a prazo" revela modalidade de negócio jurídico único, cognominado compra e venda, no qual o vendedor oferece ao comprador o pagamento parcelado do produto, acrescendo-lhe um plus ao preço final, razão pela qual o valor desta operação integra a base de cálculo do ICMS, na qual se incorpora, assim, o preço "normal" da mercadoria (preço de venda à vista) e o acréscimo decorrente do parcelamento.” (STF, AI nº 853.737, Rel. Min. Luiz Fux, de 10.04.2012)
[5] Em sentido favorável ao contribuinte, citamos as seguintes decisões: Processo nº 1170000000469, Recurso Ordinário, TAT/SC, 1ª Câmara, de 17.04.2012; Acórdão nº 925, TARF/RS, 2ª Câmara, de 22.09.2010; Acórdão nº 00.187/14-3; Acórdão nº 0013/2010, TATE/PE, 3ª Turma Julgadora, de 22.03.2010; Acórdão nº 397/12, TATE/RO, 1ª Câmara, de 12.08.2013. Em sentido contrário, citamos: Acórdão nº 6.912, CCERJ, Conselho Pleno, de 17.04.2013; AIIM nº 3.040.693-6, TIT/SP, 7ª Câmara Temporária, de 03.12.2008; Acórdão nº 111/11, TARF/RS, Tribunal Pleno, de 10.11.2011, Acórdão nº 18.236/07/3, CC/MG, 3ª Câmara, de 26.06.07.
por Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados, secretário-geral da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), vice-presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor na Fundação Getulio Vargas.