A estrutura formal do processo judicial pressupõe sempre a existência de duas partes contrapostas. É famosa a máxima medieval, cuja paternidade é atribuída a Bulgarus: “iudicium est actus trium personarum, iudicis, actoris et rei”. Assim como ocorre com os elementos objetivos da demanda (causa petendi e petitum), que permanecem em regra inalterados até a sentença, as partes que se encontram presentes no início da ação conduzirão o processo até o seu final.
E, uma vez consolidada a estrutura da demanda na fase postulatória e, por via de consequência, delimitados os objetos subjetivo e objetivo da demanda, qualquer tentativa de modificação corresponde ao inválido exercício ex novo de um poder de ação diverso daquele verificado na instauração do processo.
E isso não é admitido pelo artigo 294 do Código de Processo Civil, porquanto a exigência de um efetivo contraditório implica que o thema decidendum haja sido previamente fixado para que os litigantes e o Estado, representado pelo agente do Poder Judiciário, tenham pleno conhecimento dos elementos da demanda.
Tal óbice, por certo, deve ser verificado inclusive durante o procedimento recursal, no qual também se faz inviável inovar a demanda, sendo vedada a alternância das partes, da causa petendi ou do pedido — sem prejuízo da regra do artigo 462, aplicável também em segundo grau —, ainda que haja eventual anuência do adversário, uma vez que não incide, nessa hipótese, a disposição excepcional do artigo 321, in fine.
É possível, no entanto, haver modificação superveniente do elemento subjetivo da demanda durante a tramitação do processo, quando uma das partes falece ou, então, tratando-se de pessoa jurídica, é ela sucedida ou incorporada por outra. Nestes casos, havendo sucessão a título universal, aplicam-se as disposições dos artigos 43, 265 e 1.055 do Código de Processo Civil, procedendo-se à substituição da parte — inclusive em sede recursal —pelo seu sucessor legal, a quem são transferidas todas as posições jurídicas atinentes ao objeto da sucessão, inclusive as de natureza processual.
Regrando, por outro lado, as repercussões processuais da sucessão inter vivos, preceitua o artigo 42 do CPC que: “A alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por ato entre vivos, não altera a legitimidade das partes”. Infere-se que a pendência do processo não é óbice — e nem poderia ser — à fluência normal do comércio jurídico, inclusive no que concerne ao bem ou ao direito litigioso.
Ademais, a teor do parágrafo 1º do artigo 42: “O adquirente ou o cessionário não poderá ingressar em juízo, substituindo o alienante ou o cedente, sem que o consinta a parte contrária”.
Ressalte-se que este transcrito dispositivo, aplicável exclusivamente no âmbito do processo de conhecimento, além de guardar absoluta coerência com o princípio da estabilidade da demanda, visa a impedir que em determinadas circunstâncias, na iminência de perder a causa, um dos litigantes provoque a sua substituição por alguém que não tenha idoneidade econômica para suportar os ônus da sucumbência.
Daí a necessidade de aquiescência do adversário para que a sucessão no plano do direito material possa se projetar e ter efetiva eficácia na órbita do processo.
Importa salientar que a regra do artigo 42 não vigora no processo de execução, especialmente no que se refere à sucessão processual do credor, visto que não há se falar, em tal sede, de “direito litigioso”. Como assevera Ovídio Baptista da Silva, “a litigiosidade que o Código exige para que se aplique o artigo 42 inicia-se para o autor conforme o disposto no artigo 263 e para o demandado como consequência da citação válida, e termina com a extinção da relação processual, com ou sem julgamento de mérito, segundo a previsão dos artigos 267 e 269” (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, São Paulo, Ed. RT, 2000, pág. 188).
Assim sendo, a posição jurídica de proeminência do credor não impede que o cessionário possa sucedê-lo, sem qualquer consentimento do devedor, no processo in executivis. E isso porque o devedor não estará exposto a qualquer risco com a sucessão processual verificada no polo ativo da execução.
Saliente-se que o mesmo ocorre na ação de recuperação judicial, cuja lei especial admite expressamente a cessão de crédito pelo credor, não exigindo qualquer anuência da empresa recuperanda. Com efeito, dispõe o artigo 83, parágrafo 4º, da Lei 11.101/05: “Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários” (v., a respeito, Franciso Satiro de Souza Júnior, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência (obra coletiva), São Paulo, Ed. RT, 2005, pág. 358-359; Manoel Justino Bezerra Filho, Lei de Recuperação de Empresas e Falência comentada, 6ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2011, pág. 194).
Se os credores detentores de créditos trabalhistas podem cedê-los a terceiros, nada obsta, por óbvio, que os titulares de créditos de outras classes possam igualmente ceder os seus respectivos créditos no curso do processo de recuperação judicial.
De aduzir-se, apenas para argumentar, que a regra do artigo 42 do CPC pode prevalecer, na esfera do processo concursal, na impugnação atinente à habilitação de crédito (processo de conhecimento). Aceita a condição de credor e de seu respectivo crédito, a legislação pátria — repita-se — não prevê condição alguma à respectiva cessão, alterando-se assim a pessoa do credor na relação dos créditos habilitados, sem a exigência de qualquer manifestação da recuperanda.
Cumpre enfatizar que os tribunais pátrios, ao interpretarem o âmbito de abrangência do artigo 42 do CPC, excluem a sua incidência, no processo de execução, uma vez que, segundo o artigo 567, II, do mesmo diploma processual: “Podem também promover a execução e nela prosseguir:... II – o cessionário, quando o direito resultante do título executivo lhe foi transferido por ato entre vivos”.
Com efeito, a 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo foi instada a examinar um caso paradigmático no julgamento unânime do Agravo de Instrumento 2098321-51.2014.8.26.0000, no qual restou afastada a incidência do artigo 42, ao decidir que: “... o artigo 567, II, do CPC, consagra a legitimidade superveniente do cessionário que adquiriu o crédito excutido, para figurar no polo ativo da execução. Ao contrário do entendimento da douta magistrada, tal dispositivo não exige o conhecimento da devedora para tornar eficaz a sucessão processual... Ressalte-se ainda que a regra contida no artigo 42, parágrafo 1º, do CPC não se aplica ao presente caso, pois com o trânsito em julgado da sentença que julgou improcedentes os embargos à execução, o direito da exequente deixou de ser litigioso e o CPC possui regra específica nesse sentido...”.
Nessa mesma linha de raciocínio, a 12ª Câmara de Direito Privado do apontado TJ bandeirante, no julgamento do Agravo de Instrumento 2031267-052013.8.26.0000, deixou assentando que, in verbis: “... Comprovada a cessão do crédito executado, fica autorizado o prosseguimento da recorrente na ação executiva, nos termo do artigo 567, II, do Código de Processo Civil”.
Dentre outros precedentes, seguindo tal orientação, a 17ª Câmara Cível do TJ-RS, no recente julgamento do Agravo Interno 70059929315, teve oportunidade de patentear que, textual: “... Nos termos do que dispõe o artigo 567, II, do CPC, pode o cessionário prosseguir na execução, quando o direito resultante do título executivo lhe for transferido por ato entre vivos”.
Registre-se, ainda, que esse sólido posicionamento também impera nos domínios da jurisprudência do STJ. Realmente, a 5ª Turma, no julgamento do Recurso Especial 1.107.890-RS, relatado pela ministra Regina Helena Costa, reportando-se a inúmeros precedentes, sufragou a tese de que: “Havendo regra específica aplicável ao processo de execução (artigo 567, II. Do CPC), que prevê expressamente a possibilidade de prosseguimento da execução pelo cessionário, não há falar em incidência, na execução, de regra que se aplica somente ao processo de conhecimento no sentido da necessidade de anuência do adversário para o ingresso do cessionário no processo (artigos 41 e 42 do CPC), inclusive no tocante aos créditos oriundos de precatório”.
Em senso idêntico, a 1ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 284.190-SP, asseverou, na ementa do respectivo acórdão, que: “Processual civil. Art. 567, II, do CPC. Interpretação. 1. O artigo 567, II, merece ser aplicado sem seguimento da regra posta no artigo 42, parágrafo 1º, do CPC. 2. A aplicação subsidiária das regras do processo de conhecimento ao processo de execução só ocorre quando não há norma específica regulando o assunto. 3. O art. 589 do CPC exige que as regras do processo de conhecimento só sejam aplicadas quando não existir incompatibilidade com o rito do processo de execução”.
Verifica-se, pois, que não mais existindo “direito litigioso”, mas, sim, crédito líquido, certo e exigível, passível de excussão ou habilitação, no âmbito do processo de recuperação judicial, os tribunais pátrios, de um modo generalizado, afastam a incidência da regra do indigitado artigo 42 do CPC.
por José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.
Fonte: Conjur
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