Questão tormentosa para qualquer contribuinte é se defrontar com a exigência imposta pela União, Estados e Municípios – ratificada pelos tribunais – de que sejam pagos tributos nas operações em que ocorre a inadimplência da quantia ajustada por parte do tomador do bem, do direito ou do serviço. Tormentosa porque, se o chamado dever fundamental de pagar tributos é aceito pela maioria como um pressuposto da vida em sociedade, tão certo quanto a morte, como já apontava Benjamin Franklin, o direito de não pagar tributos nas operações inadimplidas deve ser tido como cláusula pétrea de um sistema constitucional minimamente justo.
Para desespero desses contribuintes não foi assim que o Plenário do STF concluiu ao decidir em 2011, por maioria, com repercussão geral, a matéria que lhe foi apresentada no RE 586.482, relativa às contribuições para o PIS/COFINS. No referido julgamento o STF reconheceu a validade da tributação das receitas inadimplidas em nosso sistema constitucional tributário, por considerar, ao menos no caso específico dessas contribuições, que seus respectivos fatos geradores ocorrem com o aperfeiçoamento do contrato de compra e venda, e que o inadimplemento é evento posterior que não compõe o critério material das hipóteses de incidência. Arrematou dizendo que a legislação ordinária não prevê hipótese de exclusão das receitas inadimplidas das bases de cálculo das contribuições, o que só seria possível quando fato superveniente anulasse o fato gerador do tributo, como no caso das vendas canceladas, considerando ainda que vendas canceladas e inadimplidas não se equiparam.
Pretendemos ressuscitar essa controvérsia, primeiro, por um motivo processual. Enquanto no CPC/1973 os tribunais não se sentiam obrigados a analisar todas as questões levantadas pelos contribuintes, o CPC/2015 não permite ao julgador proceder de tal forma, visto que a novel legislação processual só considera fundamentada a decisão judicial que enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador (§ 1º do artigo 489), o que viabilizará a análise de determinados argumentos não considerados anteriormente.
Segundo, por uma questão de oportunidade: as nomeações da Ministra Rosa Weber e dos Ministros Roberto Barroso e Edson Fachin, e agora, recentemente, do Ministro Alexandre Moraes, permitem, ao menos em tese, mudança da maioria. Isso tudo dentro de um novo contexto em que o próprio STF assentou, em 19/10/2016, que o fato gerador que ocorre na operação de saída da substituição tributária é presumido e que seu aspecto quantitativo pode ser revisto a pedido do contribuinte (ADI 2777 e RE 593.489), pretensão muito semelhante a que se defende aqui.
Terceiro e último, mas não menos importante, porque consideramos esse um requisito para um sistema constitucional minimamente justo. Se muitas vezes é difícil convencer os contribuintes a pagar tributos diante de uma carga tributária desproporcional ao retorno em serviços essenciais, é praticamente impossível convencê-los a pagar tributo em situação tão injusta, não coerente, não razoável. Vale aqui a frase do Ministro Celso de Mello no julgamento do Recurso Extraordinário 754.554, que afirmou com muita propriedade que O poder público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade.
Procurando delimitar de maneira mais objetiva a amplitude da discussão, não se pode negar que, em relação ao PIS/COFINS, o referido julgamento prejudicou especificamente pessoas jurídicas que não podem optar pela tributação através do regime de caixa. No entanto, o mesmo critério é aplicado em outros tributos federais como o IPI[1], além de ICMS[2] e do ISS[3], para citar os mais relevantes[4]. Pode-se dizer, então, que a referida decisão possui repercussão em relação à maior parte dos tributos, de onde sobressai a sua relevância para as conturbadas relações fisco-contribuinte.
É nesse contexto que pedimos licença, primeiro, para apontar de maneira muito resumida as razões constitucionais que levaram os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello a votar em favor dos contribuintes no julgamento do RE 586.482, e, segundo, para destacar as questões infraconstitucionais ignoradas pelo referido julgamento e pelas demais decisões proferidas tanto pelo STF quanto pelo STJ.
O Ministro Marco Aurélio iniciou ressaltando que não podemos confundir institutos jurídicos diversos: o instituto do desfazimento do negócio e o da inadimplência. Ao entrar no mérito ponderou que No tocante ao desfazimento do negócio, quando aquele que é sujeito passivo do tributo não tem prejuízo maior, não há a incidência do tributo. Mas se ocorrer o negócio jurídico com a entrega do serviço ou do bem, verificado o inadimplemento, o autor do negócio jurídico tem duplo prejuízo: não recebe o valor e tem ainda que recolher o tributo. A equação, Presidente, não fecha, para mim não fecha, sob o ângulo da ordem jurídica constitucional, decididamente não fecha. Geraldo Ataliba legou-nos ensinamento muito interessante, sobre a distinção que cabe fazer quando se cogita de receita, proclamando: “o conceito de receita refere-se a uma espécie de entrada.” Que entrada? Escritural, tendo em conta a formalidade alusiva à venda? Não. De início, a incidência do tributo pressupõe vantagem, aporte de riqueza, para aquele que se mostra obrigado a proceder ao recolhimento. Apontou que não se pode fechar os olhos, em primeiro lugar, à capacidade contributiva, que não se faz presente, quando o sujeito passivo do tributo não tem um ganho, não tem um aporte em termos de riqueza. Ao final consignou que não há precedente específico sobre o tema –, para divergir e prover o recurso interposto, entendendo, portanto – e, às vezes, é difícil dizer o óbvio –, que receita auferida é receita auferida, é receita que teve ingresso na contabilidade do contribuinte, na contabilidade do sujeito passivo do tributo. Fora isso é dizer: que belo sócio é o Poder Público, é o Estado gênero!
Como as questões constitucionais estão muito bem delineadas pelo referido voto, pretendemos destacar aqui aquelas questões infraconstitucionais não consideradas, isto é, temos o objetivo específico de provocar uma reflexão dos leitores quanto aos artigos 113, 125, 127 e 128 do Código Civil, que tratam especificamente dos requisitos e condições dos negócios jurídicos, em sua interpretação conjugada com os artigos 116 e 117 do CTN.
Com base nesses dispositivos pode se afirmar que o fato gerador pode envolver a ocorrência de situação de fato (inciso I do artigo 116) ou uma situação jurídica (inciso II do mesmo artigo 116). Porém o artigo 117 ressalva que neste último caso os atos ou negócios condicionais só se reputam perfeitos ou acabados quando verificadas as condições suspensiva (inciso I) ou resolutória (inciso II). De outro lado a legislação civil prevê que os negócios jurídicos, quando subordinados à condição suspensiva, não se consideram formalizados enquanto a condição não for implementada (artigo 125), enquanto aqueles subordinados à condição resolutiva (artigo 127), e podem ser resolvidos se não implementada aquela condição, devendo tudo ser interpretado de acordo com a boa-fé e com os usos (artigo 113).
Dentro desse panorama legislativo, vamos direto ao ponto e fazemos a seguinte pergunta: no momento em que duas partes se comprometem, por contrato, a primeira, a vender, e a segunda, a pagar o preço pela compra, cada qual com seus direitos e deveres, pode se considerar que o contrato foi cumprido e que o negócio jurídico perfectibilizado, se uma delas não cumpre sua parte? Uma parte dará quitação à outra, se provocada? Certamente que não. Não dará porque não houve o adimplemento do contrato.
É evidente que o descumprimento do contrato por uma das partes, no caso, pelo não pagamento do preço, dá direito à resolução do contrato. Em outras palavras, só ocorre o negócio jurídico – a compra e venda por exemplo – e consequentemente o fato gerador – com o pagamento do preço e com a entrega da coisa. Saber como se dará a resolução de eventual contrato não adimplido, com ou sem a devolução da coisa, com retorno total ou parcial ao status quo ante, é questão absolutamente irrelevante para a legislação tributária, porque ela não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado (artigo 110 do CTN). Logo não se trata de falar de regra de exclusão de base de cálculo que demandaria uma interpretação literal (artigo 111 do CTN), mas de critério que permite a não inclusão na base de cálculo de quantia que não foi recebida, porque desfeito, resolvido, o negócio, e por isso, inexistente o fato gerador.
O que estamos defendendo é que nas transações em que há a necessidade de pagamento a prazo, o negócio jurídico existe, mas sua eficácia estará suspensa até que implementada a condição suspensiva (pagamento), que poderá de fato ocorrer e perfectibilizar o negócio (gera quitação entre as partes), mas não ocorrendo o pagamento estará resolvido o negócio (gera a extinção do negócio jurídico). Daí porque, ausente o implemento da condição suspensiva (pagamento), não se pode falar que a situação jurídica esteja definitivamente constituída na forma exigida pelo artigo 116, inciso II do CTN. É dizer, para que uma situação jurídica seja reputada definitivamente constituída, é imprescindível não apenas sua existência, mas também a sua plena eficácia. Tudo para dizer que no plano tributário o fato gerador só ocorrerá quando for possível que todas as partes obtenham o direito à quitação de suas obrigações. Entendemos que essa interpretação é a que melhor considera o princípio da capacidade contributiva.
Com a devida vênia, entendemos que essas questões não foram analisadas pelas decisões proferidas pelo STJ ou STF, o que justifica esta provocação que fazemos aos leitores para refletir sobre essas breves e não exaustivas considerações. Não deixemos que a discussão se apague, é necessária uma revisão da posição firmada pelos Tribunais.
Notas e Referências:
[1] No RE 490616 / SC (Rel. Min. CELSO DE MELLO, 04/10/2012), decidiu-se que em relação ao IPI vale a mesma tese da decisão proferida no RE 586.482, relativo ao PIS/COFINS.
[2] No REsp 1.308.698 o STJ decidiu em 06/12/2016 que a empresa não possui direito de recuperar o ICMS pago sobre prestações de serviço de telecomunicações que restaram inadimplidas pelos tomadores-usuários, inclusive após terem sido baixadas como perdas no balanço patrimonial. A matéria será analisada pelo STF com repercussão geral através do Tema 705 (“705 – Possibilidade de compensação do ICMS incidente sobre a prestação de serviço de comunicação em relação à qual houve inadimplência absoluta do usuário.”).
[3] No Resp 189.227 fica clara a posição do STJ no sentido de tributar, pelo ISS, serviços não remunerados: “Tributário. ISS. Serviço Realizado e Não Pago. Decreto-Lei 406/68 arts. 8º e 9º. 1. O fato gerador do ISS é a “prestação do serviço”, não importando para a incidência o surgimento de circunstâncias factuais dificultando ou impedindo o pagamento devido ao prestador dos serviços. Tais questões são estranhas à tributação dos serviços prestados. 2. Recurso sem provimento. (Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, 1ª T, 02/05/2002)”
[4] Kiyoshi Harada resume muito bem essas questões: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/%3Fn_link%3Drevista_artigos_leitura%26artigo_id%3D11678?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12066&revista_caderno=26
por Gustavo Amorim é advogado, integrante da Comissão Especial de Direito Tributário do CFOAB, Presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/SC e associado da ASSET/SC..
Fonte: Emporiododireito.com.br/
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