Os tribunais administrativos tributários estão em crise. No âmbito federal, o Carf — apesar de sua decantada qualidade técnica — tem funcionado aos soluços, sacudido ora por suspeitas de corrupção, ora por greves, ora por liminares que impedem o julgamento de casos ou alteram o seu resultado. No plano estadual, reina a entropia, cada estrutura tendo regras próprias de composição e funcionamento. O mesmo vale para os municípios; ou melhor, para a minoria deles que mantém algum órgão do gênero.
O remédio é aperfeiçoar, e não extinguir, pois esses tribunais são essenciais para a garantia de uma tributação justa: é a revisão que fazem do lançamento — pois aqui não cabe esperar o consentimento do devedor, como ocorre nos títulos executivos privados — que legitima o acesso direto do credor à execução, com salto sobre o processo de conhecimento. Interpretando o artigo 5º, inciso LV, da Constituição, o STF já afirmou que o contencioso administrativo em dois graus é direito fundamental do contribuinte (RE 389.383/SP).
O mesmo diploma poderia submeter a câmaras especializadas dos tribunais administrativos estaduais os processos dos municípios sem condições ou interesse para, atendendo àqueles requisitos mínimos, criar a sua própria estrutura de julgamento.
A sistemática, semelhante à adotada nos tribunais de Contas (CF, artigo 31, parágrafos 1º e 4º), não atentaria contra o federalismo. Basta notar que teria aplicação subsidiária, visando efetivar, diante da omissão do poder público, o direito fundamental de acesso à jurisdição administrativa. Repetindo: o município poderia facilmente subtrair-se à instância revisora estadual, desde que instituísse a sua, na forma da lei.
Quanto à composição dos tribunais, temos que a forma paritária — com metade dos integrantes indicados pelo Fisco e metade pelos contribuintes — não é um dogma, podendo-se perfeitamente admitir julgadores profissionais recrutados em concurso específico, à condição de que organizados em carreira apartada da fiscalização e dotados de garantias de imparcialidade similares às outorgadas ao Judiciário.
A manter-se o modelo paritário, que é a nossa tradição, três pontos merecerão cuidado. Primeiro, o resguardo da efetiva paridade, vedando-se o funcionamento de câmaras desequilibradas. Tal anomalia atualmente se verifica no Carf, pela dificuldade de recrutarem-se conselheiros representantes dos contribuintes (que ganham muito menos do que os do Fisco!), e tem ensejado liminares suspendendo o julgamento de feitos naquele órgão.
Segundo, a prevenção de conflitos de interesses no espírito dos julgadores. Para os representantes do Fisco, isso se faz impedindo-se que tenham participação nos valores sobre os quais decidem. A vedação existe para o Judiciário (CF, artigo 95, parágrafo único, II) e deve, pelas mesmíssimas razões — moralidade e imparcialidade —, ser estendida aos juízes administrativos.
A bem dizer, a inconstitucionalidade da MP 765/2016, que destina aos fiscais federais 100% das multas arrecadadas, não seria sanada com a mera supressão do benefício para os auditores cedidos ao Carf. Ainda que restrito aos auditores dedicados à fiscalização, o bônus continuaria a representar apropriação de receita pública para fins privados (ADI 1.145), vinculação de receita à remuneração de servidores (CF, artigo 37, inciso XIII) e ofensa à impessoalidade da administração (STF, Representação 904), entre outros vícios que apontamos em parecer ora pendente de votação no Conselho Federal da OAB.
Já para os representantes dos contribuintes, evitam-se os conflitos de interesses proibindo-se que atuem como advogados. A incompatibilidade, trazida pelo artigo 28, inciso II, do Estatuto da OAB, passou a ser aplicada de forma literal pelo Conselho Federal da OAB apenas em 2015, e mesmo assim só para o Carf — mantendo-se a interpretação anterior (mero impedimento para advogar contra o ente a que servem) para os membros dos demais tribunais administrativos.
O tema suscita paixões, mas aplaudimos a nova orientação e predicamos a sua extensão aos estados e municípios, sem nenhum demérito aos advogados que, seguindo a orientação do Conselho Federal, atuaram ou — nos tribunais locais — continuam a atuar como julgadores. A crítica é à regra (ou a uma certa interpretação dela), e não às pessoas que a observam. E nada tem que ver com suspeitas de corrupção, para as quais o tratamento é policial, mas, sim, com o ganho de eficiência decorrente da dedicação exclusiva de todos os julgadores ao tribunal, e principalmente com o imperativo de transparência, hoje muito mais rigoroso do que outrora.
O terceiro tema refere-se ao tratamento do empate. Pensamos que a solução atual é inadequada, seja por vulgarizar um mecanismo — o voto de minerva do presidente — concebido para resolver a igualdade acidental em cortes com número ímpar de assentos, seja por estimular o alinhamento automático dos conselheiros do Fisco nos casos de vulto. Inverter o critério, como têm feito recentes liminares que definem o empate como vitória do contribuinte, mantém o problema, apenas transferindo o benefício indevido para o outro lado. E acabará por legitimar a Fazenda a contestar em juízo as decisões que lhe forem contrárias, em lance de esquizofrenia institucional: o poder público propondo ação contra um ato seu.
Melhor será eliminar o voto dobrado para qualquer das partes, conservando-se, em caso de empate, a suspensão da exigibilidade do tributo até a sentença de 1º grau, desde que o contribuinte ajuíze ação anulatória em até 60 dias do fim do processo administrativo. O juiz será o desempatador, e o débito deverá ser garantido após a sentença, se esta for de improcedência. Trata-se, é claro, de alteração a ser feita pelo legislador, e não por decisões judiciais ativistas.
Duas observações finais: qualquer modelo, paritário ou não, repele o recurso hierárquico, mantido em algumas legislações estaduais, como a do Rio de Janeiro. Ofende o contraditório e o due process atribuir-se a apenas uma das partes, encerrado o debate no âmbito de órgão técnico, a faculdade de suscitar a decisão política do secretário da Fazenda, nada menos do que o chefe da arrecadação.
E convém, face à elevada sofisticação das questões processuais e de mérito discutidas nos tribunais administrativos, exigir que o particular seja sempre representado por advogado (alteração do artigo 1º do Estatuto da OAB), para maior benefício do próprio contribuinte e para — com a garantia da qualidade técnica dos debates — tirar-se o máximo proveito dessa instância, desafogando-se na medida do possível o Poder Judiciário.
por Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Fonte: Conjur
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