quinta-feira, 23 de março de 2017

Sobre a teoria da prova no procedimento administrativo tributário e o emprego de presunções

Sumário: 1. Palavras introdutórias; 2. A prova no procedimento administrativo tributário; 3. O ônus da prova; 4. Os meios de prova como explicitação da linguagem competente exigida pelo legislador e os métodos presuntivos de constituição dos fatos jurídicos; 5. Presunções e a subsunção do fato à norma e a fenomenologia da incidência; 6. Presunções e infrações subjetivas; 7. Considerações finais.

1. PALAVRAS INTRODUTÓRIAS

O exercício da competência tributária sujeita-se aos denominados “princípios constitucionais tributários”, os quais, identificados como limites objetivos ou como valores, delimitam as possibilidades legiferantes impositivas, além de funcionarem como vetores interpretativos.

Pois bem, entre tais comandos, em posição de indiscutível preeminência, situa-se o princípio da tipicidade tributária, que se define em duas dimensões: i) no plano legislativo, como a estrita necessidade de que a lei adventícia traga no seu bojo, de modo expresso e inequívoco, os elementos descritores do fato jurídico e os dados prescritores da relação obrigacional; e ii) no plano da facticidade, como exigência da estrita subsunção do evento aos preceitos estabelecidos na regra tributária que o prevê, vinculando-se, obviamente, à adequada correspondência estabelecida entre a obrigação que adveio do fato protocolar e a previsão genérica constante da norma abstrata, conhecida como regra-matriz de incidência.

Corolário inevitável da aplicação desse princípio é a necessidade de que os agentes da Administração, no exercício de suas funções de gestão tributária, indiquem, pormenorizadamente, todos os elementos do tipo normativo existentes na concreção do fato que se pretende tributar e, bem assim, dos traços jurídicos que apontam uma conduta como ilícita.

Por outro lado, o princípio da vinculabilidade da tributação, construído da implicitude do Texto Supremo e inserido no artigo 142 do Código Tributário Nacional, traduz uma conquista no campo da segurança dos administrados, em face dos poderes do Estado moderno, de tal maneira que o exercício da administração tributária encontra-se tolhido, em qualquer de seus movimentos, pela necessidade de aderência total aos termos inequívocos da lei, não podendo abrigar qualquer tipo de subjetividade própria aos atos de competência discricionária.

No procedimento administrativo de gestão tributária, não se permite ao funcionário da Fazenda o emprego de recursos imaginativos, por mais evidente que pareça ser o comportamento delituoso do sujeito passivo. Para tanto, a mesma lei instituidora do gravame, juntamente com outros diplomas que regem a atividade administrativa, oferecem um quadro expressivo de providências, com expedientes das mais variadas espécies, tudo com o escopo de possibilitar a correta fiscalização do cumprimento das obrigações e deveres estatuídos.

Ao relatarem o evento tributário, é imprescindível que os agentes da Administração demonstrem-no por meio de uma linguagem admitida pelo direito. Nesse ponto, ingressamos no campo das provas da ocorrência factual que devem ser aptas para certificar a ocorrência do fato. Em outras palavras, comprovar a legitimidade da norma individual e concreta que documenta a incidência tributária significa promover a verificação de que o acontecimento fáctico narrado e a relação jurídica instaurada mantêm estrita correspondência com as provas montadas e apresentadas mediante formas lingüísticas selecionadas pelo direito positivo. Nesse sentido, a utilização de presunções e ficções, em virtude do princípio da tipicidade cerrada, deve ser comedida e jamais referir-se à constituição do fato jurídico tributário ou do fato relacional estampado no conseqüente das normas individuais e concretas tributárias.

2. A prova no procedimento administrativo tributário

O procedimento administrativo, tal qual o processo judicial, têm suas raízes fincadas na Constituição. O artigo 5º, LV, dispõe: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Esse é o campo de eleição da prova, no seu perfil de justificação da crença na verdade de um fato. À mingua de um tratamento legislativo apropriado e, quem sabe por isso mesmo, pela carência de elaboração doutrinária específica, a realidade é que o estudo da teoria da prova, nos domínios do procedimento administrativo tributário, tem-se mostrado insuficiente, suscitando dificuldades imensas ao aplicador da lei fiscal, quer seja ele o órgão do Poder Tributante, ou o próprio contribuinte, quando lhe caiba demonstrar a legitimidade jurídica de condutas atinentes ao cumprimento de deveres que a lei impõe. Não é preciso dizer que tal deficiência provoca, muitas vezes, situações de dúvida, prejudicando o clima de juridicidade que há de acompanhar tão delicada função do Estado, nas suas relações com os administrados.

PAULO CELSO BERGSTRON BONILHA consigna tal dificuldade, referindo-se com palavras críticas à ausência de preceitos  legislativos sobre tão importante aspecto do assunto de que tratamos. Ouçamo-lo: A legislação do processo administrativo tributário é lacunosa e assistemática e dessa vicissitude também se ressente a disciplina da prova. A integração analógica de preceitos do processo comum para suprir essas deficiências é freqüente. Essa forma de integração da legislação é admissível por se tratar de normas de direito tributário formal (“in” “Da Prova no Processo Administrativo Tributário” RT, 1995, pág. 127).

Ora, por mais que o registro dessa lacuna seja unanimemente proclamado pela doutrina de prestigiados autores, breve reflexão sobre a matéria é suficiente para exibir a gravidade do problema.

Com efeito, nenhum acontecimento do mundo, nenhuma transformação que se dê no chamado “campo dos objetos da experiência”, assim exteriores que interiores ao ser humano, pode configurar-se como factum, sem que se apresente revestido em linguagem. Wittgenstein já dissera, no seu Tractatus, que os limites do mundo são os limites de nossa linguagem. Há, por isso mesmo, uma linguagem social, praticada entre os integrantes da comunidade, constituidora dos fatos sociais, mas há também, como sabemos, uma linguagem jurídica, apta para apreender os eventos que o legislador elegeu para compor as hipóteses das normas do direito, às quais associa enunciados relacionais, disciplinadores de condutas intersubjetivas (relações jurídicas), com o que regula os comportamentos sociais, modalizando-os em obrigatórios (O), proibidos (V) e permitidos (P).

É certo que, por vezes, o direito admite a utilização de expressões da linguagem natural, para atestar a realização de eventos ocorridos no setor sobre o qual legisla. Todavia, é enorme a gama de situações da vida social em que a ordem jurídica exige uma linguagem específica, prescrevendo documentos e estabelecendo condutas que, marcadamente, refogem do trato ordinário que as pessoas mantêm na comunicação usual. É exatamente nesse intervalo que se verifica discrepância entre o mero acontecimento social e o fato jurídico, propriamente dito. Fala-se, por isso, numa verdade material que nem sempre se identifica com a verdade jurídica.

Com o desenvolvimento das pesquisas e o surgimento das Ciências da Linguagem e com o aparecimento da Semiótica, enquanto teoria geral dos signos empregados na comunicação, é algo pacífico nos dias de hoje expressar-se o direito positivo numa linguagem que lhe é privativa, identificando-o em face da multiplicidade de outras linguagens que vão recobrindo os vários campos atingidos pela percepção do ser humano. E dentro da latitude semântica da expressão linguagem jurídica há segmentos do sistema em que os meios de manifestação comunicacional dos participantes ficam restritos a fórmulas determinadas e adredemente estabelecidas, tendo em vista os valores de certeza e de segurança que a ordem normativa visa a realizar. Entre essas porções do todo sistemático estão, por certo, o direito penal e o direito tributário. Nesses confins da organização jurídica das condutas sociais, já por tradição de longo período, são restritos os modos de utilização da linguagem, em face da comprovação das ocorrências factuais. Nem todos os recursos da comunicação ordinária são admitidos para efeito de atestar a realização de acontecimentos nessas áreas. Pelo contrário, os modos de expressão ficam reduzidos pelo legislador, que se torna exigente, procurando circunscrever os eventos que descreve de maneira precisa, rigorosa, tudo, certamente, para implantar valores de segurança e de justiça na aplicação do direito.

Daí porque, sendo falha a legislação, claudicando na estipulação dos meios e instrumentos a que devem se cingir os destinatários das normas jurídicas aplicáveis, ficarão comprometidas também aquelas estimativas que hão de presidir o desempenho da atividade estatal.

Ao intérprete das regras penais e, o que mais nos interessa agora, ao exegeta dos preceitos tributários, caberá voltar-se aos princípios constitucionais, lá buscando os valores que deverão orientar a compreensão dos fatos e o estabelecimento cuidadoso dos direitos subjetivos e dos deveres correlatos.

No âmbito do procedimento administrativo tributário, a prova há de ser feita em toda a sua extensão, consoante esquemas rígidos de aplicação das regras atinentes, de tal modo que se assegure, com todas as garantias possíveis, as prerrogativas constitucionais de que desfruta o contribuinte brasileiro, de ser gravado apenas nos exatos termos em que a lei tributária especificar.

3. O ônus da prova

Durante muitos anos foi admitida a tese de que o ônus da prova, em matéria fiscal, era incumbência do contribuinte. Daí as palavras de Francesco Tesauro: Por longo tempo, a jurisprudência atribuiu o ônus da prova ao recorrente, com motivações diversas e contraditórias: por exemplo, partia-se de premissa de que o ônus da prova incumbiria sempre ao autor; ora se afirmava que o autor agiria pelo lançamento negativo de débito do imposto; evocava-se enfim, a presunção de legitimidade do ato administrativo.

Com a evolução da doutrina, nos dias atuais, não se acredita mais na inversão da prova por força da presunção de legitimidade dos atos administrativos e tampouco se pensa que esse atributo exonera a Administração de provar as ocorrências que afirmar terem existido. Na própria configuração oficial do lançamento, a lei institui a necessidade de que o ato jurídico administrativo seja devidamente fundamentado, o que significa dizer que o Fisco tem que oferecer prova concludente de que o evento ocorreu na estrita conformidade da previsão genérica da hipótese normativa. Caso o sujeito passivo venha a contestar a fundamentação do ato aplicativo lavrado pelo Fisco, o ônus de exibir a improcedência dessa iniciativa impugnatória volta a ser, novamente, da Fazenda, a quem quadrará provar o descabimento jurídico da impugnação, fazendo remanescer a exigência. Vê-se, no fundo, que é função precípua do Estado-Administração empregar a linguagem jurídica competente na produção dos atos de gestão tributária. O pressuposto de fato da incidência deve ser relatado de maneira transparente e cristalina, revestido com os meios de prova admissíveis nesse setor do direito, para que possa prevalecer e surtir os efeitos próprios, quais sejam os de constituir o vínculo da obrigação, unindo o particular ao Fisco, em termos da satisfação do objeto prestacional.

Cumpre reiterar que o conhecido “atributo”, denominado como pressuposto de legitimidade dos atos administrativos, aqui discutido com o nome de “lançamento tributário”, vem sendo submetido a duros questionamentos. Indaga-se: uma vez que todo ato jurídico, produzido pelo particular ou pelo órgão público, vale até prova em contrário, que juridicamente o desconstitua, por que só os atos administrativos gozariam da presunção de legitimidade?  Não seria esse um traço presente em todos os atos jurídicos?

Dúvidas como essas foram enfraquecendo o teor de “imperatividade” que os atos emanados do Poder Público sempre ostentaram. Seja qual for a fonte ejetora do ato, valerá ele até prova em contrário, o que significa reafirmar a necessidade premente de observar-se a linguagem estipulada pelo direito objetivo, como linguagem competente, nos vários campos de incidência das normas jurídicas.

4. Os meios de prova como explicitação da linguagem competente exigida pelo legislador e os métodos presuntivos de constituição dos fatos jurídicos

A convicção do julgador deve ser estabelecida conforme os meios ou instrumentos reconhecidos pelo direito como hábeis, no sentido de comprovar os acontecimentos sociais. Reafirmo, a propósito, que nem sempre os expedientes da linguagem natural, tão atuantes no intercurso diário de nossas relações, são recolhidos pela ordem jurídica. No procedimento administrativo são admitidos os meios de prova tidos como idôneos no processo comum. Entretanto, por virtude de sua peculiaridade, são muito pouco utilizadas a prova testemunhal e a inspeção judicial, assim como a providência do depoimento pessoal. Ao mesmo tempo, pode dizer-se que o instrumento probatório de maior importância e também de maior utilização é a prova documental. As demonstrações e informações fiscais que acompanham um auto de infração, a despeito de ficarem “documentadas” nos autos do procedimento, não são o que chamamos de “provas documentais”, podendo ser infirmadas com outros documentos colhidos junto ao contribuinte ou a terceiros.

Nem sempre, no entanto, a prova é tida como “fato”. Às vezes, poderá ser utilizada para referir-se a vínculo, como ocorre nos casos das presunções. Ingressamos aqui nos estudos da aplicabilidade das presunções na sistemática das provas.

Supor que um fato tenha acontecido ou que sua materialidade tenha sido efetivada, não é o mesmo que exibir a concretude de sua existência, mediante prova direta, conferindo-lhe segurança e certeza. Nesse sentido, os recursos à presunção devem ser utilizados com muito e especial cuidado. No campo do direito tributário, não deve a presunção manter atinência intrínseca aos aspectos estruturados da norma de incidência tributária, mas apenas referir-se a elementos (situações/fatos) que possam conduzir à tipificação da figura impositiva.

Na presunção legal encontraremos, de um lado, o fato presuntivo e, de outro, o fato presumido. Considera-se provado o fato legalmente presumido. E o que justifica essa previsão legal? Por que o fato presumido adquire, de pronto, status de fato provado? Tal se justifica pelo vínculo de associação prescrito pela lei. Desse modo, fala-se em presunção relativa, que admite prova em contrário; mas, não havendo prova em contrário, a associação se mantém; dado o fato presuntivo, deve ser o fato presumido, porque não houve prova em sentido oposto.

Há também aquela chamada “presunção humana”, que  é uma associação que nós fazemos em face de juízos de valor sobre elementos de prova. É o que ocorre quando, verificados os fatos “F1”, “F2”, “F3”, “F4”, eu digo: “Diante desses acontecimentos, dou por certificado o fato ‘F5’”. Temos que considerar também a existência da presunção absoluta, embora seja inadmissível na esfera tributária.

Se considerarmos os valores máximos acolhidos por nosso Texto Constitucional, principalmente em termos de tributação – segurança e certeza – que sustentam os cânones da legalidade e da tipicidade, torna-se extremamente problemático captar a figura da presunção, sempre fértil para suscitar imprecisão, dubiedade e incerteza.

São distintos os traços jurídicos da presunção e dos indícios. A primeira, quando acolhida no texto legislado, dispensa o agente público de outras providências probatórias, sendo-lhe suficiente indicar a presença físico-material do sucesso que faz presumir o fato investigado. O indício, por sua vez, é o motivo para desencadear-se o esforço de prova; é o pretexto jurídico que autoriza a pesquisa, na busca de comprovar-se o acontecimento factual. Exibida a linguagem competente do evento presuntivo, havendo autorização da lei, o funcionário pode dar por encerrada sua tarefa fiscalizatória. O vínculo lógico entre o fato presuntivo e o fato presumido cumprirá o restante do trabalho. No que tange, porém, aos indícios, a situação é diferente, porquanto a mostra concreta de sua existência, também em linguagem competente, dará ensejo, apenas, ao desencadeamento dos mecanismos de investigação. Juridicamente verificados os indícios, servirão eles de ponto de partida para a procura daquilo que se chama a verdade material dos fatos pesquisados, programa que há de ser efetivado mediante a utilização dos meios de prova em direito admitidos.

Providência salutar para o exegeta que lida com a linguagem jurídica é lembrar-se, a cada momento, que o sistema brasileiro de direito positivo, dispensando cuidado especial a certos campos de atuação da disciplina normativa, não acolhe, excluídas raríssimas exceções, a técnica presuntiva para efeito de caracterização do “fato jurídico tributário”. Permite, sim, em outros setores da atividade tributária, mas resguarda o instante da subsunção, qualificador que é do fenômeno jurídico da incidência.

5. Presunções e a subsunção do fato à norma e a fenomenologia da incidência

Segundo nossa perspectiva do conhecimento do fenômeno jurídico, os signos “fato” e “norma” referem-se a entidades conceptuais. Desse modo, é correto falarmos em subsunção do fato à norma e, toda vez que isso ocorre, com a conseqüente efusão de efeitos jurídicos típicos, estamos em presença da fenomenologia da incidência/aplicação e produção do direito. Em substância, recorta o legislador eventos da vida real e lhes imputa a força de suscitar os comportamentos que entende valiosos, garantindo seu ato de vontade mediante a pressão psicológica de sanções, associadas, uma a uma, a cada descumprimento de dever estabelecido. Mas os sujeitos de direito, resistindo ao temor de punição, podem ser alvo do aparato coativo, inerente ao Poder Público, momento em que se desenvolverá efetivamente o procedimento sancionatório.

O objeto sobre o qual converge o nosso interesse é a percussão da norma tributária em sentido estrito ou regra-matriz de incidência. Nesse caso, diremos que houve subsunção, quando o fato (fato jurídico-tributário) guardar absoluta identidade com a hipótese normativa.

A devida compreensão do fenômeno da incidência tributária tem o caráter de ato fundamental para o conhecimento jurídico, posto que assim atuam todas as regras do direito, em qualquer de seus subdomínios, ao serem aplicados no contexto da comunidade social. Seja qual for a natureza do preceito jurídico, sua atuação dinâmica é a mesma: opera-se a concreção do fato previsto na hipótese, propalando-se os efeitos jurídicos prescritos na conseqüência. Mas esse quadramento do fato à norma tem de ser completo, para que se opere a subsunção. É aquilo que se tem, como já exposto, por tipicidade, que no Direito Tributário, assim como no Direito Penal, adquire extraordinária importância. Para que se configure o fato jurídico tributário, a ocorrência da vida real tem de satisfazer a todos os critérios identificadores tipificados na hipótese. Que apenas um não se verifique, e a dinâmica que descrevemos ficará inteiramente comprometida.

É precisamente nesse núcleo fundamental que não pode operar a presunção, quando pensamos na existência concreta de uma figura tributária, tornando-se desnecessário aduzir que assim é porque a atividade impositiva do Estado mexe com dois valores essenciais à vida em sociedade, quais sejam o direito de propriedade e o direito de liberdade.

6. PRESUNÇÕES E INFRAÇÕES SUBJETIVAS

Ainda com relação às presunções na Teoria das Provas, cumpre tecer, por fim, algumas considerações no que tange às infrações tributárias. O discrime entre infrações objetivas e subjetivas abre espaço a larga aplicação prática. Tratando-se da primeira, o único recurso de que dispõe o suposto autor do ilícito, para defender-se, é concentrar razões que demonstrem a inexistência material do fato acoimado de “antijurídico”, descaracterizando-o em qualquer de seus elementos constituintes. Cabe-lhe a prova, com todas as dificuldades que lhe são inerentes.

Agora, no setor das infrações subjetivas, em que penetra o dolo ou a culpa na compostura do enunciado descritivo do fato ilícito, a coisa se inverte, competindo ao Fisco, com toda a gama instrumental dos seus expedientes administrativos, exibir os fundamentos concretos que revelem a presença do dolo ou da culpa, como nexo entre a participação do agente e o resultado material que dessa forma se produziu. Os embaraços dessa comprovação, que nem sempre é fácil, transmudam-se para a atividade fiscalizadora da Administração, que terá a incumbência intransferível de evidenciar não só a materialidade do evento como, também, o elemento volitivo que propiciou ao infrator atingir seus fins contrários às disposições da ordem jurídica vigente.

As dificuldades probatórias a que nos reportamos, sejam as experimentadas pelo sujeito passivo, no caso de impugnar pretensões punitivas por ilícitos de natureza objetiva, sejam aquelas outras que os funcionários da fiscalização tributária enfrentam para certificar a infração subjetiva, nem sempre são adequadamente suplantadas. Nos autos de infração, o agente limita-se a circunscrever os caracteres fácticos, fazendo breve alusão ao cunho doloso ou culposo da conduta do administrado.

Isto não basta. Há de provar, de maneira inequívoca, o elemento subjetivo que integra o fato típico, com a mesma evidência com que demonstra a integração material da ocorrência fáctica.

Exige-se que se verifique a vontade concreta do agente de perpetrar ato lesivo aos interesses da fiscalização. Não teria sentido apenar os intervenientes nas operações de efeitos tributários cujas atividades foram regularmente praticadas, não causando, voluntariamente, danos ou obstáculos ao Fisco e à exigência de tributos.

Breve análise dos julgados do Egrégio Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda confirma o critério ora exposto, evidenciando a imprescindibilidade da presença do dolo para fins de aplicação de sanções administrativas:

“INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. Constatado que houve erro material na Declaração de Importação de mercadorias devidamente manifestadas e consignadas em fatura comercial, e evidenciada a míngua de dolo ou fraude na operação, em que foram devidamente recolhidos os impostos, não há como prosperar a exigência de multa do controle administrativo das importações, por ocasião da retificação da declaração apresentada pelo importador. Recurso provido” [1](grifei).

“IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. CLASSIFICAÇÃO FISCAL. AFUGAN TÉCNICO. A mercadoria comercialmente denominada Afugan Técnico, ingrediente ativo Pyrazophos 660, na forma como foi importada, identificado pela Labana como ‘preparação fungicida’ à base de uma solução de Pyrazophos em Xileno, classifica-se no código NBM 3808.20.99 da tarifa vigente à época da ocorrência do fato gerador. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. MULTA POR FALTA DE GUIA. A multa prevista no art. 526, II, do Regulamento Aduaneiro é incabível quando o produto importado guarda correspondência com a descrição feita pelo importador e este está imbuído de boa-fé. DECLARAÇÃO INEXATA. MULTA DE OFÍCIO. Incabível a aplicação de multa de ofício na hipótese destes autos, posto que houve apenas classificação fiscal errônea, sem que tenha vestígios de dolo ou má-fé por parte do importador, estando o produto descrito corretamente. Fundamentação: ADN Cosit n. 10, de 16/01/1997. JUROS DE MORA. APLICABILIDADE DA TAXA SELIC. A falta de pagamento de imposto no prazo legal sujeita a aplicação dos juros de mora, calculados com base na taxa SELIC. Compete exclusivamente ao Poder Judiciário o controle da constitucionalidade das normas jurídicas. Recurso parcialmente provido” (grifei).

É justamente por tais argumentos que as presunções não devem ter admissibilidade no que tange às infrações subjetivas. O dolo e a culpa não se presumem, provam-se. A despeito disso, predicando contornar os obstáculos que adviriam à atividade de fiscalização dos tributos, caso tivesse ela de pautar-se dentro desses parâmetros estritamente legais, serve-se o legislador do apelo à presunção, que equipara, desatinadamente, as infrações subjetivas às objetivas. Tais preceitos brigam com a organização do nosso direito positivo, que não comporta equiparação dessa índole, agredindo a sólida estrutura de institutos jurídicos seculares e maculando a inteireza de direitos fundamentais consagrados no texto do Estatuto Supremo.

Na trilha dessa orientação, que prestigia soberanamente o ordenamento jurídico como sistema, em detrimento da letra fria e isolada dos escritos da lei, já existem importantes manifestações do Poder Judiciário, emanadas, principalmente, do antigo Tribunal Federal de Recursos, repudiando peremptoriamente o emprego de interpretações presuntivas no plano de ilícitos que requerem os elementos subjetivos na integralidade do seu enunciado. De fato, o tema das presunções no direito tributário deve ser observado com mais cautela.

Em razão das próprias especificidades do sistema tributário brasileiro, os recursos à presunção devem ser utilizados com muito cuidado. Nesse subdomínio do jurídico, não convém que a presunção mantenha atinência intrínseca com os aspectos estruturados da norma de incidência tributária. Há apenas de referir-se a elementos (situações/fatos) que possam conduzir à tipificação da figura impositiva.

Se considerarmos os valores máximos acolhidos pelo Texto Constitucional, principalmente em termos de tributação – segurança e certeza – que sustentam os cânones da legalidade e da tipicidade, torna-se extremamente problemático captar a figura da presunção, sempre pronta a suscitar imprecisão, dubiedade e incerteza.

Uma providência salutar para o exegeta que lida com a linguagem jurídica é lembrar-se, a cada momento, que o sistema brasileiro de direito positivo, dispensando cuidado especiala certos campos de atuação da disciplina normativa, não acolhe, excluídas raríssimas exceções, a técnica presuntiva para efeito de caracterização do “fato jurídico tributário”. Permite, sim, em outros setores da atividade tributária, mas resguarda o instante da subsunção, qualificador que é do fenômeno jurídico da incidência.

Observado este pressuposto, entendo que a lavratura do lançamento, por exemplo, deve dar-se em conformidade com os meios ou instrumentos reconhecidos pelo direito como hábeis.

Reafirmo, a propósito, que nem sempre os expedientes da linguagem natural, tão atuantes no intercurso diário de nossas relações, são recolhidos pela ordem jurídica. No procedimento administrativo são admitidos os meios de prova tidos como idôneos no processo comum. Entretanto, por virtude de sua peculiaridade, são muito pouco utilizadas a prova testemunhal e a inspeção judicial, assim como a providência do depoimento pessoal. Em obséquio ao rigor, todo instrumento probatório se reduzirá à prova documental, pois em qualquer instância, seja do procedimento administrativo, seja do processo judicial, a linguagem escrita é a única capaz de objetivar os signos jurídicos.

Vale salientar, a propósito, que não se permite ao funcionário da Fazenda o emprego de recursos imaginativos, por mais evidente que pareça ser o comportamento delituoso do sujeito passivo. É imprescindível a cabal demonstração de causalidade entre o fato, considerado como indício, e a efetiva existência do ato infrator. É o registro que faz Luís Eduardo Schoueri[2]

“O dever de provar a relação de causalidade é tão importante quanto a prova da ocorrência do indício. Enquanto este é matéria que se encontra no campo dos fatos, a relação de causalidade caminha para o campo do pensamento, permitindo que a contra-prova se dê de modo próprio. Assim, para que se desminta a relação de causalidade entre o indício e o fato a ser provado, pode-se não só mostrar que a referida relação não atende aos reclamos da lógica (prova abstrata, lógica) como, simplesmente, demonstrar que a ocorrência do indício permitiria não só a ocorrência do fato alegado como também de outro diverso”.

Em outras palavras, não pode haver sombra de dúvida sobre a concreção do fato que dá causa à autuação administrativa, sendo inaceitável adotar a figura da presunção, tendo em vista que ela consiste no processo lógico em que de um fato conhecido infere-se fato desconhecido e, portanto, incerto.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessume-se, de todo o exposto, que há de ser grande o cuidado de quem participa da atividade jurídico-tributária, no sentido de registrar essas aparentemente pequenas diferenças, evitando, com isso, a prática de grosseiras violações de mandamentos constitucionais. Aquilo que parece consubstanciar pequeno desvio, no caminho da interpretação dos preceitos jurídico-tributários, acaba se constituindo numa flagrante inconstitucionalidade, ao esbarrar em princípios fundamentais do direito positivo brasileiro.

Nossos tribunais, judiciais como administrativos, têm procurado, reiteradamente, preservar esses valores consagrados no Texto Supremo,  rejeitando  propostas de tributação edificadas sobre meros indícios ou aplicando processos presuntivos que a lei não autoriza[3].

Tudo isso,  é importante que se renove, porque a atividade jurídico-tributária, no Brasil, há de ser desenvolvida em clima de total aderência aos textos legais, além de observância rigorosa dos grandes primados que a Lei Fundamental proclama. Tal concepção, que penetra hoje os sistemas positivos de todos os países civilizados, dista de permitir qualquer traço de arbitrariedade, afastando também, quase sempre, os atos de competência discricionária que poderiam vir a ser praticados pelos funcionários do Estado-Administração nesse campo de atividade administrativa.

[1] Terceiro Conselho de Contribuintes, 2ª Câm., Ac. 302-37114, Rel. Cons. Corintho Oliveira Machado, j. 09/11/2005

[2] Processo administrativo fiscal, 2º vol, São Paulo, Dialética, p. 85.

[3]PROCESSO FISCAL. Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida. (Agravo em Mandado de Segurança n° 65.491, de 28.08.70, Resenha Tributária) – IMPOSTO DE RENDA. PROCESSO FISCAL. Não pode ser instaurado com base em mera presunção (Agravo em Mandado de Segurança n° 75.335, de 19.05.75, Resenha Tributária, 1977). – ACUSAÇÃO FISCAL PRECÁRIA – Baseada em elementos indiciários colhidos de anotações particulares do contribuinte – Infração presumida- Provido o recurso – Decisão unânime. ( Proc.DRT-4 nº 6.986/91, julgado em sessão da 4º Câmara Especial, de 20.11.92 – Rel. José Augusto Sunfeld Silva – Ementário TIT, 1996).-  AGENDA DE ANOTAÇÕES – Insuficiência de provas para embasar a autuação por saída de mercadorias sem emissão de notas fiscais – Improcedente acusação em face de fragilidade da prova obtida “agenda de anotações” – Provido o recurso – Decisão unânime. (Proc. DRT- 1 nº 13.668/91, julgado em sessão da 2º Câmara Especial, de 30.04.93 – Rel.David Gusmão – Ementário TIT, 1996).

por Paulo de Barros Carvalho é Professor Titular e Emérito da USP e da PUC-SP. Presidente do IBET. Fundador da Editor Noeses. Membro titular da Academia Brasileira de Filosofia.

Fonte: IBET

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